quarta-feira, 30 de setembro de 2009

«Sabedoria popular» e desprezo pelas mulheres

Os provérbios são, como sabemos, sínteses pitorescas de observação, resumos de «sabedoria popular». Ora há, como também sabemos, muitos provérbios sexistas que, embora acusem um certo desgaste, continuam a ser citados a propósito e a despropósito em situações pretensamente hilariantes.
Os provérbios sexistas constituem reflexos vivos do desprezo social pelas mulheres; as visadas não só tem de os ouvir sem recalcitrarem, como é suposto que lhes achem graça, sob pena de serem acusadas de menos dotadas em termos de sentido de humor. Mas é difícil achar graça, a menos que se seja debiloide, a essas manifestações de alarvidade consensual:

«Bate regularmente na tua mulher, mesmo que não saibas a razão, não te preocupes porque ela sabe»
As mulheres são como as batatas, comem-se descascadas ou a murro»
Livre-nos Deus da burra que faz him e da mulher que sabe latim»
Como estes ditados são formuladas em termos de humor e provocam sorrisos coniventes da assitência, qualquer resposta resultará necessariamente patética e assim se continuam a cultivar estas preciosas pérolas de misoginia popular que aceitam e estimulam: (1) a violência contra a mulher, (2) a redução da mulher ao estatuto de objecto sexual, (3) a satirização da mulher que aspira à instrução e ao conhecimento.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Eu não sou feminista, mas…

Este texto é dirigido a todas as mulheres, e são muitas - provavelmente a maioria, que relutam em se reconhecerem como feministas, embora muitas vezes defendam a igualdade de direitos entre mulheres e homens e combatam injustiças flagrantes nas relações entre os sexos. Nele vou procurar entender e explicar a razão de ser desta situação algo paradoxal: mulheres que não querem ser reconhecidas como feministas, mulheres que dizem: eu não sou feminista, mas ….

A hipótese mais plausível é a de que o termo feminista assumiu uma conotação pejorativa e muitas mulheres têm uma percepção negativa do que seja ser feminista. Vejamos como se terá chegado a esta situação.

As feministas e o feminismo começaram a impor-se com alguma relevância a partir de meados do século XIX; o movimento conheceu altos e baixos no decurso do século XX e foi sempre acompanhado de uma série de mal-entendidos, devidamente alimentados e estimulados por quem tem tudo a ganhar e nada a perder com confusões deste tipo e não quer de modo nenhum que as reivindicações das mulheres sejam atendidas. Esses mal-entendidos visavam (e visam) apresentar o feminismo e as feministas a uma luz desfavorável e os seus processos são intencionais, com recurso a raciocínios falaciosos, exploração de ambiguidades e exposição ao ridículo ou mesmo ao insulto.

Quem pretende desacreditar o feminismo sempre faz passar a ideia de que as feministas são mulheres que, não conseguindo realizar-se sexual e afectivamente, dirigem as suas frustrações contra os homens, culpando-os dos seus fracassos. Transmitir esta imagem é muito conveniente pois a partir dela facilmente se desvalorizam as críticas que as feministas possam fazer à sociedade e às suas estruturas opressivas, a partir daí não são as estruturas que são opressivas, são mulheres mal amadas que vêem preconceito, opressão e discriminação onde nada disso existe. Esta argumentação é falaciosa, mas resulta sempre muito bem; ironicamente é conhecida pela designação de falácia ad hominem e consiste em rejeitar o argumento adversário, não com base na análise das suas eventuais inconsistência, mas apelando para algo extrínseco ao próprio argumento, nesta caso a pretensa falta de credibilidade das mulheres que o invocam.

Há também quem alimente o equívoco de que o feminismo é como o machismo, só que de sentido contrário; esta confusão está muito disseminada, mesmo entre as próprias mulheres, mas desvirtua completamente a questão, pois enquanto o machismo assenta na inferiorização do sexo feminino, o feminismo apenas pretende garantir igualdade de estatuto e de direitos entre homens e mulheres; o feminismo luta pela libertação das mulheres, mas obviamente não pressupõe a subordinação ou submissão dos homens, enquanto o machismo pretende e defende a continuação do estatuto de subordinação e de submissão das mulheres aos homens. Quem alimenta este equívoco fá-lo com base no paralelismo que existe entre os dois termos: machismo vem de macho e feminismo de fêmea e a partir daqui torna-se fácil estabelecer a confusão que aproveita a quem se quer opor ao feminismo e dar-lhe má fama.

Como quer que seja, de um modo ou de outro, com estas ambiguidades o objectivo é sempre o de tornar as feministas e o feminismo pouco atraentes, de modo a que não ocorram fenómenos de identificação; e deve reconhecer-se que a manobra tem resultado, pois é frequente encontrar mulheres que, embora aceitem a necessidade de reivindicar a igualdade de direitos, mesmo assim recusam o rótulo de feministas.

Nos media, desde há muito, o feminismo e as feministas são ridicularizadas e as suas posições desvirtuadas e por isso não surpreende que seja preciso coragem para uma mulher se apresentar como feminista e que sejam relativamente poucas aquelas que se atrevem a engrossar as fileiras do movimento, até porque a isto acresce que, como vivem em intimidade com elementos masculinos - pais, filhos, maridos ou irmãos, temem que eles se sintam atingidos pelas suas críticas à sociedade machista e sentem-se restringidas na sua liberdade de pensar e de agir, fazendo concessões para conseguirem alguma paz.

Esta situação favorece quem quer manter o status quo: importa que o movimento feminista seja pouco expressivo, o ideal seria mesmo que não existisse, pois quanto maior for o número de feministas, mais significativo será o seu empenhamento em denunciar situações de opressão, em reflectir sobre as suas causas e imaginar estratégias para as enfraquecer. Ora, a partir do momento em que as mulheres começarem a perceber os mecanismos que têm sido usados para as manter no seu «devido lugar», nada mais será como dantes. Precisamente o trabalho de muitas autoras feminista, ao desbravarem terreno nas mais diversas áreas, revela aquilo que tem estado sempre escondido: os mecanismos e as estratégias mais ou menos subtis que tem estado ao serviço da sociedade de supremacia masculina.

Por tudo isto, de uma vez por todas, importa salientar que as feministas querem acima de tudo ser reconhecidas como pessoas e é isso que a sociedade de supremacia masculina não lhes perdoa, pois pretende que elas continuem a ser simplesmente mulheres, com toda a carga depreciativa camuflada que o termo comporta.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Com os sexólogos todos os cuidados são poucos …



Na década de sessenta do século XX, sexólogos de renome, como Harry Benjamin, Alex Comfort e William H. Master, tentaram passar a ideia de que não há nada de errado com a prostituição - desde que as prostitutas escolham livremente dedicar-se a essa actividade – defendendo que só um preconceito social, alimentado em boa parte por alguns sectores feministas, não permitia aceitar essa realidade.

Com estas sonantes declarações procurava criar-se um clima liberal favorável que tornasse socialmente aceitável a prostituição. Estes sexólogos, numa época em que em vários países começava a surgir legislação anti-prostituição, alegavam que tal legislação teria funestas consequências sociais pois seria responsável por um aumento significativo da homossexualidade, da violência contra crianças, violações, e outras ofensas sexuais, já que a prostituição funcionaria como uma espécie de válvula de escape contra comportamentos desviantes. Entre estas afirmações e as que foram produzidas por Tomás de Aquino no século XIII não há, como podemos conferir, diferenças substantivas: «A prostituição no mundo é como a imundície no mar ou o esgoto num palácio. Retira o esgoto e encherás o palácio com poluição; o mesmo acontecerá com a imundície do mar. Afasta as prostitutas do mundo e irás enchê-lo de sodomia…» Umas e outras reproduzem discursos falaciosos pois pretendem que não se aceite uma tese - neste caso a da eliminação da prostituição, com base nas consequências que dela resultariam - é a conhecida falácia da bola de neve.

Em relação a punições e à criminalização da prostituição era muito interessante o tipo de argumentação que esses sexólogos utilizavam: quanto às prostitutas, embora não concordassem com a penalização, ainda podiam entendê-la, mas em relação aos homens que usavam prostitutas penalizá-los seria, diziam, uma irresponsabilidade, pois que se tratava de pessoas respeitáveis, pais de família, homens de negócios, pacatos cidadãos, isto é, como diz Scheila Jeffreys (1), «os homens não deviam ser tratados da mesma maneira que as mulheres porque os homens eram importantes».
Por outro lado, esses mesmos sexólogos apresentavam as práticas sexuais dos homens com prostitutas como se estas correspondessem ao que o sexo deveria ser, e indirectamente forneciam o modelo para a construção da sexualidade feminina que tomaria por base a erotização da submissão da mulher ao homem, controlador e dominador. Neste aspecto, imitavam os seus confrades do século XIX, da era Vitoriana, que pretendiam fornecer uma visão «científica» da sexualidade masculina, considerando que esta supunha a natural submissão da mulher e o desejo que esta tinha de ser dominada pelo homem.
Por tudo isto se compreende a posição arrojada do psiquiatra Thomas Szasz que considera tal sexologia como um ramo da indústria do sexo que fornece o «imprimatur» da ciência às práticas desta indústria, ou ainda de Steven Marcus que em «The Other Victorians» considera que esta pretensa ciência do sexo incorpora os valores e os métodos da pornografia.
(1) Scheila jeffrey: The Idea of Prostitution

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

(1) Linguagem e sexismo subtil

Como já aqui referi, o sexismo enquanto atitude que discrimina as mulheres permeia toda a sociedade e constitui uma espécie de normativo, isto é, o normal é haver discriminação não é haver igualdade no modo como os dois sexos são tratados, um é tratado como se fosse superior e essencial, o outro é tratado como se fosse inferior e de alguma maneira secundarizado. Ora como o sexismo é a norma, é algo costumeiro e habitual, torna-se extremamente difícil lutar contra ele, seja porque as atitudes não são reconhecidas como sexistas; seja porque são desvalorizadas e consideradas inofensivas. Praticamente podemos dizer que só o sexismo hostil, que se manifesta abertamente e que abertamente atribuiu um estatuto de inferioridade às mulheres é rejeitado e considerado politicamente incorrecto, já o sexismo benevolente e paternalista, que considera a mulher como o sexo fraco que necessita protecção masculina, é endossado mesmo por um número significativo de mulheres e o sexismo subtil nem sequer é reconhecido como sexismo pela maioria das pessoas e na maioria das situações.

O sexismo subtil é de tal modo subtil que passa desapercebido a menos que os comportamentos que o caracterizam sejam definidos como sexistas. Por exemplo, sempre ouvimos dizer: Adão e Eva; Romeu e Julieta; homens e mulheres; a viúva do sr. António; a cunhada do Júlio. E podíamos multiplicar os exemplos que a norma continuaria a sobressair: os homens são sempre nomeados em primeiro lugar; as mulheres em segundo e ainda por referência ao homem, ora esta situação não acontece por acaso, embora pareça acontecer por acaso, de tal maneira é habitual, e não acontece por acaso porque reflecte uma hierarquização social e uma relação de dependência das mulheres em relação aos homens. As pessoas que usam este tipo de linguagem não reconhecem sequer o seu carácter sexista de tal maneira ele está encoberto e de tal maneira é normativo. Dirão uma de duas coisas: ou que estamos a procurar pelo em casca de ovo ou que o melhor é esquecer porque não é significativo.

Mas factos são sempre factos por mais que as pessoas os queiram ignorar: quando a linguagem se refere às mulheres atribuindo-lhes um estatuto hierárquico secundário e de dependência em relação ao homem é óbvio que ela é sexista como sexista é (ainda) a sociedade em que a usamos.
A linguagem, ao descrever as coisas de uma determinada maneira, contribui para que essas coisas se mantenham e perpetuem dessa maneira, por isso é que também a linguagem sexista deve ser denunciada e combatida. Os exemplos que citamos aqui são até dos menos gravosos para a causa das mulheres; há muitos outros, que posteriormente irei apontar, cujos danos são bem mais temíveis.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

A ideologia romântica coopta as mulheres para a causa sexista

A ideologia romântica ganhou força na Europa, sobretudo a partir do século XVIII e manifestou-se na literatura através de novelas que pressupunham um conjunto de atitudes que valorizavam os sentimentos e as emoções e realçavam a importância do amor no casamento. Nos nossos dias, ela persiste sobretudo nos filmes e nas séries televisivas e é assimilada pelas crianças desde a mais tenra idade, através das histórias infantis, mais especificamente dos contos de fadas, tornando-se assim um importante factor de socialização.
Enquanto discurso, a ideologia romântica apresenta um estilo próprio, normalmente reconhecido por uma linguagem efusiva e emotiva, e por um conteúdo que apela aos sentimentos e adopta uma atitude nostálgica em relação à natureza e à própria experiência.
Presente na ideologia romântica está o conceito de que o amor (heterossexual) é o aspecto fundamental da vida de uma mulher, ao qual ela tudo deve sacrificar, incluindo, se necessária, a sua própria independência. Para o homem, o amor também é importante, mas nunca é apresentado nos mesmos termos e sobretudo nunca colide com os seus interesses pessoais nem belisca a sua autonomia, surge mais como um complemento essencial de uma vida feliz e realizada. Esta disparidade de situações deveria dar que pensar às mulheres, mas, infelizmente, na maioria dos casos não dá.
A ideologia romântica aparece assim como uma aliada de uma forma benevolente de sexismo, ao incentivar as mulheres a trocarem a sua realização pessoal pela protecção e amor masculino: se uma mulher quer ter amor, se quer ter a protecção do homem, precisa de fazer uma escolha e essa escolha vai no sentido de sacrificar ambições e interesses pessoais em favor da família. Deste modo, a ideologia romântica reforça os papéis tradicionais do homem enquanto provedor e da mulher enquanto esposa e mãe e apresenta estes papéis com cores tão favoráveis e sedutoras que dificilmente as mulheres lhes conseguem resistir.
A legenda da imagem poderia ser: Casa comigo, por favor, estou pronta a tudo te sacrificar ...

domingo, 20 de setembro de 2009

(2) O que é que há de errado com a pornografia?

Suponho que a pornografia não precisa de ser necessariamente sexista, mas a que anda por aí para consumo da comunidade sexualmente activa, predominantemente a masculina, é sexista e é sobre esta que vou hoje escrever.

Os filmes porno apresentam mulheres jovens com atributos físicos que os machos valorizam: seios volumosos, «bunda» protuberante, pernas esbeltas, rostos convencionalmente bonitos, e homens, nem sempre tão jovens nem tão dotados em termos de beleza, mas que revelam pujança física e exibem normalmente um pénis avantajado, para dizer o mínimo. Depois, através de uma narrativa imagística em que a história é praticamente inexistente, são oferecidas cenas de sexo explícito, com as mais diferentes posições e opções, que normalmente terminam em abundante ejaculação masculina que a jovem, ou jovens acham muito apetitosa e digna de autêntica veneração. A figura dominante é sempre a do macho, as protagonistas estão ali para o adorar e para se submeterem ao seu poder e aos seus desejos.

Vejamos agora porque é que a pornografia (pelo menos este tipo de pornografia) deve ser denunciada e criticada. Não falo em proibição porque julgo que no contexto em que vivemos seria provavelmente impraticável.

A pornografia erotiza a desigualdade entre os sexos - e aqui estamos a falar em inferiorização e submissão de um em relação ao outro, ao tornar essa desigualdade e correspondente inferiorização sexualmente atraentes: mulheres jovens, com atributos físicos que os padrões estéticos dominantes valorizam, mostram-se encantadas com tudo o que fazem, mesmo que o que fazem seja considerado consensualmente degradante por todos os que se propuserem analisar a situação com um mínimo de espírito crítico e mesmo que aquilo que fazem - seja de presumir - não lhes dê de facto nenhum prazer.

A pornografia transpõe para o sexo duro e cru um padrão de comportamento que a sociedade tradicionalmente atribuiu às mulheres: as mulheres ao serviço dos homens, empenhadas acima de tudo em agradar-lhes, sendo submissas e cooperantes. Mas faz mais, numa época em que este padrão de comportamento começa a mostrar sinais de erosão pois cada vez mais e mais mulheres não se comportam em conformidade com ele, a pornografia mente descaradamente em todos os sentidos, mente porque as imagens que mostra, pelo menos da parte de muitas das actrizes porno, ressumem fingimento e falsidade e mente enquanto narrativa sexual ao mostrar o sexo completamente divorciado de qualquer gesto de ternura ou sequer de atenção em relação às mulheres .

O objectivo da pornografia é vender um produto e vender associado um modelo de mulher que reflecte a misoginia de uma sociedade que começa a perceber que não vai continuar a controlar eternamente as mulheres, mas que esperneia enquanto pode.
A imagem que escolhi é a antítese da pornografia e desse modo resume bem o que ha de errado com a pornografia

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

A família, "locus" de afetos mas também de exploração da mulher

O capitalista quer mão-de-obra barata, o chefe de família quer mão-de-obra gratuita. Num caso e no outro há exploração económica e quem não perceber isto é …

A sobrevivência e a continuidade de qualquer sociedade dependem da produção de bens materiais e da reprodução da espécie. Ora, durante muito tempo disse-se, e de tanto se dizer virou verdade inquestionada, que as mulheres não contribuíram para a produção de bens materiais, apenas contribuíram para a reprodução da vida, através dos filhos e dos cuidados que a eles e aos maridos prestavam, no contexto do lar doméstico, sendo os maridos os provedores das necessidades da família através da participação no processo produtivo.
Mas isto sempre foi falso, uma falsidade que se vendeu e que escondeu um crime mais grave. As mulheres, como qualquer estudo antropológico evidencia, não só tiveram a seu cargo as tarefas reprodutivas como também participaram activamente na produção de bens que ou eram consumidos pela família, ou vendidos em feiras e mercados.

Para além dos filhos, por norma numerosos - e sabemos como as crianças exigem atenção e cuidados, as mulheres, sobretudo no mundo rural, mas não só, tratavam das aves de criação, cozinhavam o pão e as refeições, faziam manteiga, compotas, ajudavam na horta e nos trabalhos agrícolas, e ainda fiavam lã e costuravam os vestuários de que a família necessitava. Mas, mesmo quando o único dinheiro vivo que havia em casa era obtido com a venda dos produtos que a mulher fabricava, esse dinheiro ficava naturalmente com o marido e nada havia nem nas leis nem nos costumes que o obrigasse a fazer qualquer repartição. Daí que se pode dizer com inteira propriedade que a relação da mulher com a produção era, e ainda é em muitas circunstâncias e em muitos lugares, uma relação de servidão: trabalhava e trabalha sem horário, sem pagamento, sem possibilidade de reivindicação. Também se pode dizer, com igual propriedade, que a tão badalada exploração capitalista do trabalhador esteve sempre acompanhada da exploração patriarcal das mulheres e que a família não surge só como um locus de afectos, mas também de opressão.

Há quem pretenda continuar com a mistificação dizendo que os bens produzidos no lar pelas mulheres têm valor de uso, servem para satisfazer as necessidades da família, mas não têm valor de troca e por isso é que não se lhes pode atribuir um preço. Mas isto é falacioso, porque esses bens, se não fossem produzidos pelas mulheres no lar, teriam de ser adquiridos e então teriam valor de troca e aqueles produtos que ela produz e que são vendidos em feiras e mercados até têm directamente valor de troca. Logo esta distinção é espúria e o seu objectivo é procurar derivar o estatuto de inferioridade das mulheres da sua pretensa participação secundária no processo de produção. No entanto qualquer pessoa de boa fé sabe que a situação é a inversa, isto é, essa participação só é (considerada) secundária porque é atribuído à mulher um estatuto de inferioridade do qual deriva que tudo o que ela faz seja (considerado) secundário. O capitalista, pela mesma ordem de ideias, estaria autorizado a considerar que o trabalho dos operários é secundário e que o que é fundamental é o dinheiro, a gestão, a capacidade administrativa, etc. etc., justificando assim o estatuto de inferioridade dos trabalhadores.

Todo este processo conduziu à opressão e exploração económica das mulheres, que a análise marxista de classe deixou na sombra; o que foi particularmente grave, porque, enquanto os trabalhadores, trabalhando em conjunto, puderam trocar as suas experiências, tornar objectiva a sua situação de explorados, criar consciência de classe e dirigir o seu ódio para um patrão ao qual atribuíam a opressão, as mulheres, vivendo isoladas umas das outras, sem oportunidades para trocarem experiências - sempre houve o cuidado de resguardar a intimidade do lar, e sem poderem objectivar a situação em que se encontravam, vivendo uma relação ambivalente com o opressor ao qual também as ligam laços de afecto, integradas em diferentes classes sociais, não encontraram condições para criar a consciência de classe indispensável para um empreendimento emancipador.

Nesta situação de servidão e de exploração que a instituição do casamento e a família patriarcal ofereceu às mulheres, a única saída que as mais espertas, ou as mais dotadas - quem pode saber - encontraram foi a de procurarem maridos bem instalados para assim melhorarem a sua condição de servidão, uma gaiola na mesma, mas ao menos, uma gaiola dourada. Quem se atreve a condená-las!?
E depois vem a sociobiologia dizer-nos, muito cinicamente, que as mulheres procuram naturalmente parceiros mais velhos e bem instalados na vida, enquanto os homens procuram mulheres jovens e bonitas. Naturalmente, uma ova!
E ainda não estamos a fazer as contas ao trabalho desenvolvido pelas mulheres para colocarem crianças no mundo, quando começarmos com essa contabilidade é que vamos ter oportunidade para dar um chega a essas subtilezas de distinção entre valor de uso e valor de troca tão gratas aos economistas.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

(1) O que é pornografia? Uma definição problemática

Uma definição selecciona, reflecte e mesmo desfigura a realidade, que é sempre mais rica e que com dificuldade se deixa encerrar e limitar por ela, mas, para nos entendermos, e sobretudo para argumentarmos, não podemos dispensar as definições; estas são as premissas das quais deduzimos outras que nos levam a conclusões e, nesse sentido, à defesa de determinadas teses.
A definição de que partirmos condiciona a conclusão a que chegamos e o curso de acção que consideramos preferível, por isso, não é irrelevante o modo como definimos um conceito, mais especificamente ainda no caso da pornografia que, como sabemos, se encontra longe de ser um domínio consensual. Mas, embora não haja unanimidade, podemos, considerar a existência de três tipos de definições de pornografia, vejamos essas diferentes definições.

(1) Há quem defina pornografia como a exposição obscena do corpo humano e da actividade sexual, ligando portanto pornografia e obscenidade, sendo obscenidade a característica daquilo de que não é decente falar ou apresentar em público; assim, por exemplo, o acto sexual na privacidade da vida de um casal não será obsceno, mas a exposição pública do mesmo será considerada indecente porque decorre «fora da cena» que lhe é apropriada. Esta definição de pornografia foi a dominante - para muitos sectores da sociedade ainda é, e decorre de um enquadramento moral normalmente de fundamento religioso.

(2) Para outros, a pornografia é uma narrativa, através de imagens, da sexualidade humana, é uma espécie de discurso sobre esse tema e enquanto discurso sobre uma realidade goza do direito de liberdade de expressão que as sociedades democráticas garantem aos diferentes tipos de discurso.

(3) Por último, encontramos uma terceira definição, mais recente, que ficou a dever-se às autoras feministas Catharine Mackinnon e Andrea Dworkin, que identifica a pornografia não com um discurso ou um pensamento, mas com um acto, um acto no qual se explicita a subordinação sexual da mulher ao homem, através de imagens e/ou palavras. Enquanto acto que explicita a subordinação de um sexo a outro, com a equivalente depreciação que incorpora, a pornografia incorreria na possibilidade de poder ser indiciada como um atentado aos direitos humanos na pessoa das mulheres.

Cada uma das definições tem implícita uma dinâmica própria que importa analisar. À definição de pornografia como obscenidade pode objectar-se que o conceito de obsceno é de tal modo vago e relativo que fica difícil operar com ele, lembremos, por exemplo, que, no século XIX, falar em público em práticas anticoncepcionais era considerado obsceno e quem o fizesse podia incorrer em comportamento criminal. Por outro lado, é uma definição que implica um valor moral colocado apriori, isto é, parte da ideia que a pessoa faz do que é moralmente correcto e encontramo-la ligada à moral religiosa que propende a depreciar o corpo e a sexualidade e por isso a desaprovar a sua exposição.
A definição da pornografia como discurso e narrativa da sexualidade humana permite assegurar-lhe livre-trânsito, constitucionalmente protegido pelo Estado laico que garante liberdade de expressão aos indivíduos, e permite ainda subtraí-la ao domínio da moral e seus valores. Mas esta definição perdeu a ingenuidade, que aparentemente comporta, a partir do momento em que Mackinnon e Dworkin entraram em cena e apresentaram a sua própria definição de pornografia que veremos em seguida.

A definição de pornografia como acto que explicita e promove a subordinação da mulher ao homem, construída por Mackinnon e Dworkin a partir de evidência empírica de material pornográfico analisado, especificamente filmes pornográficos, reconhece que a pornografia não é simples expressão da sexualidade humana, nem é apenas o reflexo do sexismo da sociedade em que vivemos. A pornografia aparece como uma indústria e como toda a indústria produz um produto. Nesta caso o produto é a subordinação das mulheres, um produto complexo pois a pornografia, começando por ser ela própria produto da desigualdade social entre homens e mulheres, acaba por produzir também essa desigualdade ou, se quisermos, por reforçá-la e, enquanto tal, constitui uma violação dos direitos civis.
Mackinnon e Dworkin recusaram-se a entender a pornografia como um assunto moral no sentido vulgar do termo, de obsceno ou indecente, porque expõe o sexo; para elas, não é aí que o problema da pornografia reside; o problema da pornografia é que ela discrimina as mulheres, é um mecanismo de discriminação que prejudica gravemente as mulheres. Esta definição de pornografia tem o mérito de tornar visível o que estava antes dela invisível e que a definição de pornografia como discurso permitia continuar a encobrir.

Antes de avançarmos, convém fazer o ponto da situação. A definição de Mackinnon e Dworkin, apesar de ter trazido à crua luz do dia algo que se encontrava numa confortável penumbra, apresenta algumas dificuldades; ela foi estabelecida a partir de evidência empírica da pornografia existente no mercado, mas a existência, avassaladora é certo, desse tipo de pornografia não exclui a hipótese de ser produzido outro tipo de pornografia que não explore o sexo dessa maneira; ora, se isso acontecer, isto é, se aparecer um contra-exemplo, a definição deixará de ser apropriada. E se aparecer um contra-exemplo, então a segunda definição vai surgir como mais abrangente e correcta.
De qualquer modo, como, em minha opinião, a produção pornográfica dominante parece integrar-se na definição que Mackinon e Dworkin propuseram é dela que irei partir.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

A «Inveja do pénis» - uma mistificação da cultura falocêntrica

Freud, criador da psicanálise, escrevendo nos finais do século XIX e princípios do século XX, em plena era Vitoriana, defendeu que a inveja do pénis por parte das meninas e o receio de castração dos rapazinhos eram elementos que haveriam de entrar na constituição respectivamente da sexualidade feminina e da sexualidade masculina.

Sempre tive muita dificuldade em aceitar ou sequer compreender esta tese que, a ser verdadeira, deveria corresponder a algo experimentado por todas as mulheres, coisa que de facto comigo nunca aconteceu e penso que com outras mulheres também não. Pareceu-me que Freud estaria a confundir especulação metafísica com realidade. Por isso, foi uma surpresa muito positiva ler o texto de Lois Tyson - que a seguir traduzo, o qual explica de forma soberba e sem deixar lugar a dúvidas o que é isso de inveja do pénis e de receio de castração:

«Muitas mulheres, feministas ou não, têm dificuldade em acreditar que as meninas, depois de descobrirem que os rapazes têm pénis, sofrem de «inveja do pénis», ou do desejo de ter um pénis, ou que os rapazes, depois de descobrirem que as meninas não têm pénis, sofrem de ansiedade de castração, ou do medo de perder o seu pénis. Contudo, a explicação destes dois fenómenos é clara, quando nos apercebemos do contexto cultural em que Freud os observou: a rígida definição de papéis da sociedade Vitoriana, que era usada para oprimir as mulheres de todas as idades e para elevar os homens a posições de dominância em todas as esferas da actividade humana.
Será de estranhar que uma menina queira (pelo menos a nível inconsciente) ser um rapazinho, quando percebe que os rapazinhos têm direitos e privilégios a que se supõe que ela nem sequer deve aspirar? Por outras palavras, quando você vê «inveja do pénis» leia «inveja do poder». É o poder e tudo o que parece acompanhá-lo – auto-estima, divertimento, liberdade, segurança em relação à violação física pelo sexo oposto – que as rapariguinhas invejam.
E o que o rapazinho sente - depois de perceber a sua superioridade social e o poder que esta comporta em relação às meninas – não será ansiedade pela possibilidade de o perder? A frase “É uma menina ou um mariquinhas”, tem o condão de ferir os rapazinhos (e também os rapazes grandes) porque os ameaça com essa perda de poder. A ansiedade da castração é assim melhor compreendida como o receio de ser removido para a posição de ausência de poder ocupada pelas mulheres.» (1)

(1) Lois Tyson: Critical Theory Today

sábado, 12 de setembro de 2009

Os orgasmos das mulheres e a incompetência dos (alguns?) homens

Dada a delicadeza do tema que hoje vou tratar, decidi traduzir um texto de quem se dedicou ao seu estudo e tem portanto uma voz autorizada; espero assim dar um contributo positivo, evitando o tom chocarreiro com que um assunto tão importante é com freqência abordado. Não quer dizer que não se possa brincar, mas a brincadeira também é uma coisa séria:

“Espera-se que as mulheres experimentem paixão durante a relação sexual, quesito básico do comportamento sexual. Contudo, a grande maioria das mulheres (cerca de 70%) não atingem o orgasmo como resultado da relação sexual (Gupta & Lynn, 1972; Hite, 2003). A natureza colocou a fonte primária do prazer do homem no pénis (ponto de contacto durante a relação sexual) ao mesmo tempo que na mulher ela se localiza a certa distância da vagina (no clitóris, situado acima da vagina). Este arranjo, designado por «vagina - clitóris fiasco», implica que o orgasmo conseguido apenas por penetração vaginal não seja o normal para a mulher. Como resultado, há grandes diferenças de género nos motivos para cada um se entregar ao acto sexual, com o homem a enfatizar o orgasmo e a mulher a acentuar a intimidade sexual. No entanto, a descrição cultural da relação sexual (por exemplo, nos filmes e na pornografia) mostra enganadoramente a mulher a atingir o clímax no decorrer do acto sexual, tal como o homem, o que pode levar a maioria das mulheres a acreditarem que há algo errado com elas, se não conseguirem atingir o orgasmo apenas com a relação sexual.

A ideia de que nas mulheres «qualquer coisa está em falta» (isto é, são inadequadas) é uma ameaça que integra muitas crenças culturais acerca da experiência de ser mulher. Freud, numa proclamação que ficou famosa, chamou a isso «inveja do pénis», mas não há evidência empírica que o suporte.
Parece mais provável que as mulheres se sintam sexualmente inadequadas porque esperam que os seus corpos se realizem em paralelo com o do homem durante o acto. Quando isso não acontece, as mulheres podem sentir-se forçadas a simular o orgasmo para agradar aos seus parceiros, pretendendo que a sua resposta biológica é equivalente à deles (Hite, 2003). Não é de surpreender que isto possa levar a ressentimentos em relação ao homem, não apenas pela pressão implícita que sentem para simular o orgasmo (para que os homens possam sentir que «se portaram à altura»), mas também pela diferença de género no prazer sexual (Kamen, 2002; Lavie-Ajayi, 2005).

Freud ligou a inveja do pénis ao facto de que os órgãos sexuais masculinos são visíveis, enquanto os das mulheres estão em grande parte escondidos. A ideia de que as mulheres são «homens defeituosos» porque a sua genitália está escondida remonta a Aristóteles e desde então tem influenciado a teoria biomédica ocidental. Contudo ... parece que os homens (não as mulheres) sofrem de inveja do pénis (isto é, desejo de um pénis maior). Além de que, em termos de puro estado de facto, as mulheres podem ter vantagem. Nas mulheres, a geografia das terminações nervosas dedicadas ao prazer e de tecido que é estimulável durante a excitação abrange uma área que é «pelo menos tão grande, se não maior do que as terminações nervosas e tecidos devotados ao prazer nos homens (Sherfey, 1973). Assim, como a ponta de um icebergue, o próprio clitóris é apenas a porção visível de um vasto conjunto anatómico de tecidos capazes de responderem sexualmente.
Por outras palavras, as mulheres não têm poucos recursos no que diz respeito ao prazer sexual. Contudo é mais provável que elas requeiram actos sexuais que não envolvam a relação sexual propriamente dita (por exemplo, estimulação oral ou manual) para atingirem o orgasmo. Por causa da primazia que culturalmente é atribuída à relação sexual enquanto acto e das falsas concepções em relação aos corpos das mulheres é mais provável que as mulheres não atinjam tanta satisfação sexual quanto os homens."

Laurie A. Rudman and Peter Glick: The Social Psychology of Gender: How Power and Intimacy Shape Gender Relations

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

A origem da sociedade patriarcal

Recuar no tempo e imaginar as circunstâncias que podem ter estado na origem da ordem patriarcal é um exercício especulativo que, como todos os desta natureza, supõe diferentes interpretações. Especular implica ir além da evidência empírica para construir uma explicação que, por esse motivo, não é suficientemente suportada pelos factos; ocorre ainda que a especulação tende a incorporar muitos elementos de «wishful thinking» pelo que devemos ser sempre cautelosos para não tomarmos por verdadeiros os nossos desejos. Aqui, mais do que em qualquer outro campo, a correspondência entre pensamento e realidade é problemática. Feitas estas ressalvas em relação ao pensamento especulativo, vamos agora referir duas interpretações de sentido diferente quanto às origens do sistema patriarcal.

Segundo uma dessas interpretações, a da psicologia evolucionista, foi a selecção sexual a responsável pelo facto de a dominância ser uma característica masculina e a submissão uma característica feminina: estratégias sexuais diferentes em cada um dos sexos teriam levado homens e mulheres a desenvolverem essas características. Mas esta interpretação aparece mais como uma justificação do sistema do que como uma explicação na medida em que acaba por «naturalizar» uma forma de organização social que tem sido extremamente favorável à metade masculina da espécie humana. Curiosamente, mais uma vez, esta teoria atribui à mulher, à vítima, o facto de o macho humano tender a manifestar comportamento de domínio, na medida em que ela, para garantir protecção das arremetidas de outros machos, teria escolhido acasalar com machos dominantes capazes de a protegerem, favorecendo desse modo o estabelecimento desse tipo de comportamento. Assim por ironia do destino, a mulher teria acabado por desempenhar um papel determinante nas próprias origens do sistema patriarcal que, vejam bem, teria vingado porque até lhe era favorável …. Todavia, se aceitarmos esta interpretação, teremos de aceitar o masoquismo como uma característica inerentemente feminina, coisa que o povo até compreendeu muito bem mesmo sem o auxílio da psicologia evolucionista quando diz que «as mulheres gostam de apanhar» ou quando aconselha: «bate na tua mulher, tu podes não saber o motivo, mas ela com certeza sabe»!!

Uma outra teoria, a teoria bio-social, assume que a vantagem da evolução humana em relação a outras espécies reside na sociabilidade e na flexibilidade e, assim, propõe um tipo de explicação que integra os dados da evolução com os condicionamentos sociais e culturais. Reconhece diferenças a nível físico entre os dois sexos, em termos de altura, força física e papéis reprodutivos, mas também reconhece similaridades psicológicas e entende que a dominância não é uma característica inata masculina, mas que foi adquirida na vida em grupo, fruto de dinâmicas específicas da vida social. Neste caso, as diferenças físicas entre os sexos, sobretudo em termos de força física, conjugadas com as diferenças reprodutivas e com arranjos sociais e culturais explicariam a emergência da forma patriarcal de organização da sociedade e esta não teria sido a primeira forma de organização social.

Nas sociedades paleolíticas em que a economia com base na caça e na recolha de frutos era uma economia de subsistência, em que não havia excedentes, dado que os produtos eram perecíveis, partilhar em vez de açambarcar deve ter sido a norma. Por outro lado, a participação das mulheres na economia - na tarefa de recolha de frutos, era compatível com os cuidados com recém - nascidos e demais crianças, e conferia-lhes importância e controlo; neste específico contexto social, diferenças na força física e nos papéis reprodutivos não favoreceram nem tornavam necessário o comportamento de domínio sobre as mulheres ou de competição com os outros homens.
Terá sido com a descoberta e desenvolvimento da agricultura que o quadro social terá mudado. A partir de então verifica-se uma importante divisão do trabalho que implicou o confinamento das mulheres à esfera doméstica com a respectiva perda de independência e de controlo directo sobre os recursos. Neste novo contexto, em que vai surgir riqueza, também vai surgir o desejo de a monopolizar, aumentar e transmitir à descendência legítima e aqui o controlo das mulheres e da sua capacidade reprodutiva vai de facto favorecer a atitude de domínio de uns e de submissão de outras. Não será preciso ir mais longe para encontrar as origens do sistema patriarcal e dos infindáveis e violentos conflitos inter-grupais que a partir daí pontuaram a história da humanidade. Mesmo assim, o domínio de uns e a submissão de outras deveriam ser tão pouco naturais que foi preciso montar uma série variada e complexa de mecanismos ideológicos para garantir a conservação e persistência da ordem patriarcal, mecanismos que ainda hoje se encontram actuantes, embora por vezes precisem de se camuflar para continuarem eficazes.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

“As boas raparigas vão para o céu, as más vão para todo o lado”

De acordo com a ideologia patriarcal só há dois tipos de mulheres, as boas raparigas e as más raparigas, que, numa linguagem menos moderada, serão respectivamente anjos e putas; umas e outras correspondem a projecções dos anseios masculinos: por um lado, o desejo de encontrar uma esposa modesta, recatada e submissa, pronta a sacrificar-se pelo marido e filhos, que garanta a legitimidade da prole; por outro, a necessidade mais lúbrica de encontrar parceiras sexuais facilmente descartáveis, mas atraentes e interessadas, já que, em muitos casos, até é suposto que a esposa legítima não seja fã incondicional do sexo.

Esta dualidade de identidades que a sociedade patriarcal atribuiu às mulheres apresentou duas enormes vantagens: assegurou a possibilidade prática do duplo padrão de conduta que perdoa no homem exactamente aquilo que penaliza na mulher - a promiscuidade sexual; garantiu ainda ao homem o controlo da sexualidade da sua legítima esposa, enquanto gozava com o maior à vontade os deleites do sexo mais variado e multiforme. De facto, o casamento monogâmico foi durante séculos uma invenção masculina que só funcionou para as mulheres. Sem estrutura económica que lhes permitisse reclamar, pois as ocupações fora do lar, muito convenientemente, não eram consideradas apropriadas para senhoras decentes, as boas raparigas limitavam-se a fazer vista grossa.

A boa rapariga foi sempre colocada num pedestal pela ordem estabelecida. Mas, hoje, as raparigas começam a perceber que os pedestais têm um interesse muito relativo. Em primeiro lugar são instáveis e sujeitos a lançar no chão as suas santas à força, que a partir daí serão severamente punidas, às vezes pagando «erros, amor ardente e má fortuna» com a própria vida, castigo exemplar sancionado pela cumplicidade da sociedade e pelos costumes vigentes. Por outro lado, os pedestais reduzem extraordinariamente o espaço de manobra das suas locatárias, condenadas a desempenhar os limitados papéis que a ordem patriarcal lhes prescreve.
Por tudo isto começa-se a perceber que se calhar não é assim tão mau ser a má rapariga da história porque, conforme o título do livro de Ute Ehrhardt, as boas raparigas vão para o céu, (mas) as más vão para todo o lado.

[1] Título do livro de Ute Ehrhardt, publicado pela Editorial Presença.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Novos contos de fadas

Continuando com a pedagogia dos contos de fadas, do blog Olhos e Pensamento, transcrevo dois deliciosos contos para o século XXI:

I- Era uma vez uma linda moça que perguntou a um lindo rapaz: Você quer casar comigo? Ele respondeu: NÃO! E a moça viveu feliz para sempre, foi viajar, fez compras, conheceu muitos outros rapazes, visitou muitos lugares, foi morar na praia, comprou outro carro, mobiliou sua casa, sempre estava sorrindo e de bom humor, nunca lhe faltava nada, bebia cerveja com as amigas sempre que estava com vontade e ninguém mandava nela. O rapaz ficou barrigudo, careca, o pinto caiu, a bunda murchou, ficou sozinho e pobre, pois não se constrói nada sem uma MULHER.2. Conto de fadas para mulheres do séc. 21
II- Era uma vez, numa terra muito distante, uma linda princesa independente e cheia de auto-estima que, enquanto contemplava a natureza e pensava em como o maravilhoso lago do seu castelo estava de acordo com as conformidades ecológicas, se deparou com uma rã. Então, a rã pulou para o seu colo e disse: Linda princesa, eu já fui um príncipe muito bonito. Mas uma bruxa má lançou-me um encanto e eu transformei-me nesta rã asquerosa. Um beijo teu, no entanto, há-de transformar-me de novo num belo príncipe e poderemos casar e constituir um lar feliz no teu lindo castelo. A minha mãe poderia vir morar connosco e tu poderias preparar o meu jantar, lavarias as minhas roupas, criarias os nossos filhos e viveríamos felizes para sempre... E então, naquela noite, enquanto saboreava pernas de rã à sautée, acompanhadas de um cremoso molho acebolado e de um finíssimo vinho branco, a princesa sorria e pensava: Nem fo.....den...do
(Luís Fernando Veríssimo)

P.S: Não fazem mais princesas como antigamente..rsrsrs, mt bommmmm
Postado por Olhos e Pensamentos

domingo, 6 de setembro de 2009

Pedagogia dos contos de fadas

Há quem ironize sobre a tentativa de desconstrução das histórias para crianças e procure ridicularizar as pessoas que o tentam fazer, mas, de facto, não é preciso grande esforço para revelar os preconceitos sexistas que informam essas histórias e com alguma imaginação pode entender-se o efeito perverso que elas tiveram no processo de socialização das jovens e dos jovens. É que os inocentes contos de fada da nossa infância são tudo menos inocentes.
O texto de Lois Tyson que a seguir traduzo desvela com alguma minúcia a estrutura e a «agenda» escondida dos três contos mais populares da nossa cultura: Branca de Neve, Bela Adormecida e Cinderela:
“ O papel de Cinderela que o sistema patriarcal impõe à imaginação das jovens é um papel destrutivo porque equipara a feminilidade à submissão, encorajando as mulheres a tolerarem o abuso familiar, a esperarem pacientemente ser salvas por um homem, e a perceberem o casamento como a única recompensa desejável para aquela que age correctamente. Paralelamente, o papel do príncipe encantado – que requer que os homens sejam protectores prósperos, responsáveis por fazerem as suas mulheres felizes para sempre – é um papel destrutivo porque promove a crença de que os homens têm de ser super-provedores infatigáveis, independentemente das suas necessidades emocionais. (…)
De facto, a leitura feminista dos contos de fadas fornece um instrumento poderoso para ilustrar os meios através dos quais a ideologia patriarcal informa aquelas que parecem ser as mais inocentes das nossas actividades. Consideremos, por exemplo, as sempre populares, «Branca de Neve e os Setes Anões», «Bela Adormecida», e, claro, a «Cinderela». Em todos estes três contos, uma jovem meiga e bela (porque as mulheres têm de ser belas, meigas e jovens para serem objecto de admiração romântica) é salva (porque ela é incapaz de se salvar a si mesma) de uma situação terrível por um jovem corajoso que a arrebata para casarem e viverem felizes para sempre. A intriga implica pois que o casamento com o homem certo é uma garantia de felicidade e a adequada recompensa para uma jovem sensata.
Em todos os três contos, os principais caracteres femininos estão estereotipados, sejam os das «boas meninas» (gentis, submissas, virginais, angélicas), sejam os das «más» (violentas, agressivas, mundanas, monstruosas). Esta caracterização implica que, se uma mulher não aceita o papel de género que o sistema lhe apresenta, então o único que lhe resta é o de um ser monstruoso.
Em todos os três contos, as personagens más, a rainha malvada da Branca de Neve, a fada má da Bela Adormecida, a madrasta e as meias irmãs velhacas da Cinderela, são também vaidosas, mesquinhas e ciumentas, furiosas por não serem tão belas como a personagem principal ou, no caso da fada má, por não ter sido convidada para uma celebração real. Tais motivações implicam que, mesmo quando as mulheres são más, as suas preocupações são fúteis. Em duas das histórias, a jovem casadoira é acordada de um sono de morte pelo beijo poderoso (ao fim ao cabo ele trá-la para a vida) do futuro amante. Este final implica que a jovem, se adequadamente integrada no sistema patriarcal, está sexualmente adormecida até que é acordada pelo homem que a reclama como sua.” (1)

(1) Lois Tyson: Critical Theory Today: A User-Friendly Guide

sábado, 5 de setembro de 2009

Ideologia romântica e socialização

A ideologia romântica atribui à mulher, à «verdadeira mulher», qualidades que considera femininas como a pureza, a modéstia e o espírito de sacrifício e coloca-a num pedestal. Claro que se a mulher interiorizar e aceitar este estatuto será adorada e enaltecida, caso contrário, o opróbrio recairá sobre ela: santa ou puta, cabe-lhe optar.

A ideologia romântica leva as mulheres a trocarem autonomia por aprovação e protecção masculinas, já que as dimensões que as enaltecem aos olhos da sociedade, se forem vividas genuinamente, implicam que elas assumam um estatuto em que se encontram desprovidas de poder real e de capacidade de intervenção na sua própria vida e na vida pública: implicam que se consagrem à família, que se dediquem a cuidar dos outros, que sacrifiquem ambições pessoais, numa palavra que vivam por interpostas pessoas.

Esta ideologia interfere muito precocemente no processo de socialização das meninas, através dos contos infantis que ouvem ao adormecer, dos romances que lêem, dos vídeos recreativos, dos jogos, filmes e programas televisivos a que assistem: a cultura da cinderela é a dieta que lhes é fornecida até à saciedade, revestida de formas diversas, é certo, para a tornar menos enjoativa. Desde cedo, interiorizam que o seu valor reside nos atractivos que o outro sexo nelas reconheça, valem pelos outros, não valem por si mesmas: serem belas, recatadas e afáveis serão qualidades apreciadas no mercado marital e é esse que lhes é proposto quase que em exclusividade. O seu comportamento e as suas expectativas são moldadas por estes mecanismos culturais de socialização a que estão constantemente expostas.

Assim se consegue a acomodação feminina, na infância e na adolescência, e se criam as bases indispensáveis para que o domínio masculino não venha a ser realmente ameaçado na idade adulta.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

(9) Sexo e amor em Erich Fromm - experiência orgíaca e supressão da ansiedade

Erich Fromm (1900-1980) foi um psicanalista alemão de inspiração marxista que em « The Art of Loving» nos deixou as suas reflexões sobre sexo e amor.
Tal como Sartre, também Fromm considera que para compreender o sexo e o amor é preciso partir de uma teoria da natureza humana e entender que o ser humano, arrancado à natureza a que os outros animais estão confinados e a que se adaptam através de práticas instintivas, se encontra numa situação de ruptura com ela que provoca estranhamento e terrível ansiedade que tem origem na indefinição em que se encontra, só quebrada pela inevitabilidade da morte.

No ser humano, a razão, que toma o lugar dos instintos, leva a que o homem se veja como uma consciência separada do mundo e dos outros que apreende dolorosamente os seus limites - entre o nascimento que não desejou e a morte que teme, e que se sente isolado e impotente face a forças que não domina. É nesse estranhamento do homem frente à natureza e aos outros seres humanos que radica a terrível e insuportável angústia que experimenta.

Dada esta condição, o primeiro e fundamental problema que o ser humano vai ter de resolver, obviamente depois de garantidos os recursos necessários à subsistência material, é o de superar essa separação e esse insuportável sentimento de angústia. A solução dependerá do contexto e das idiossincrasias pessoais e pode encontrar-se na procura ascética, nas religiões, na conquista de poder sobre os outros, na procura da sabedoria, na criação artística, e também no amor humano, sendo esta última solução uma das que aparentemente é mais acessível ao comum dos mortais.
Considerando este último aspecto - o amor entre os seres humanos como solução para ultrapassar o estado de separação e de isolamento a que se encontram condenados, Fromm interpreta as experiências orgiásticas, que fazem parte de muitos rituais tribais antigos, como a procura da solução para esse problema e em conformidade vê no sexo e na procura do orgasmo o mesmo objectivo de anular o mundo e com ele anular também o sentimento de estranhamento e de solidão que faz parte constitutiva do ser humano:

“Um meio de alcançar este objectivo encontra-se em todo o tipo de estados orgiásticos. Estes podem assumir a forma de transe auto-induzido, por vezes com a ajuda de drogas. Muitos rituais das tribos primitivas oferecem uma gravura vívida deste tipo de solução. Num estado transitório de exaltação o mundo exterior desaparece e com ele o sentimento de separação. Na medida em que estes rituais são praticados em comum, uma experiência de fusão com o grupo é acrescida o que torna esta solução tanto mais efectiva. Proximamente relacionada com e por vezes misturada com esta solução orgíaca, está a experiência sexual. O orgasmo sexual pode produzir um estado similar ao que é produzido por um transe, ou pelos efeitos de certas drogas. Ritos de orgias sexuais comuns faziam parte de muitos rituais primitivos. Parece que após a experiência orgíaca, o homem pode continuar durante algum tempo sem sofrer demasiado com a separação. Lentamente a tensão da ansiedade cresce, e então é de novo reduzida pela realização repetida do ritual.” (1)

Se o sexo, com a experiência do orgasmo, resolve, ainda que por breves momentos, o isolamento e estranhamento do ser humano, se a experiência orgíaca torna a solução mais efectiva, podemos começar a perceber que a sexualidade humana tem uma função que a afasta nitidamente do reducionismo biológico e fisiológico e começamos também a perceber porque é que os seres humanos dão tanta importância ao sexo e, mesmo contra os costumes instituídos, alguns, nostálgicos de velhos rituais tribais, procuram práticas de sexo em grupo, apesar da intolerância da sociedade face a essas práticas. Mas Fromm considera que “o acto sexual sem amor nunca preenche o vazio entre dois seres humanos, a não ser momentaneamente”. E o amor é uma arte que exige enorme investimento: disciplina, concentração, fé racional e paciência.
(1) Erich Fromm: The Art of Loving