quinta-feira, 29 de abril de 2010

Burqa - uma autêntica prisão ambulante

Com 136 votos a favor e duas abstenções, o Parlamento belga aprovou esta quinta- feira uma lei que proíbe o uso em público do véu islâmico que cobre totalmente o rosto, seja a niqab, seja a burqa, tornando-se assim o primeiro país a penalizar criminalmente esta prática, podendo vir a ser seguido pela França, país que tem a maior comunidade islâmica da Europa.
O argumento utilizado para fazer aprovar a lei invoca questões de segurança que se prendem com a dificuldade em identificar as pessoas que usam este tipo de vestuário e considera ainda que a burqa ou a nicab constituem uma autêntica «prisão ambulante» para as mulheres.
O grupo da amnistia internacional para os direitos humanos condenou a lei dizendo que ela constitui uma violação à liberdade de expressão e à liberdade de religião, o que não deixa de me causar alguma perplexidade. Como é que um organismo tão esclarecido não percebe ou não quer perceber que o próprio uso da burqa é em si mesmo um atentado aos direitos das mulheres enquanto direitos humanos, porque de facto, e vamos deixar de lado a hipocrisia, a burqa ou a nicab não são um símbolo religioso são acima de tudo um símbolo político de uma sociedade que defende valores que a civilização ocidental há muito repudiou, pelo menos formalmente, valores esses que repousam na dominação e controlo das mulheres.

Por isso saúdo o parlamento belga pela coragem de colocar os direitos das mulheres acima do politicamente correcto que seria fechar os olhos em nome do estafado relativismo cultural que tantos atropelos aos direitos das mulheres permitiu e continua a permitir.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

O amor romântico é uma ratoeira

O amor romântico é uma ratoeira: o isco é a promessa de amor, um amor eterno e absoluto; a presa será a mulher. A presa será a mulher porque, ao deixar-se iludir por esse ideal, ela vai comprometer a sua autonomia pessoal, vai desistir dos seus projectos próprios, vai desistir dela própria, pois, dado o contexto em que vivemos, supõe-se que seja ela a fazer sacrifícios bem concretos para manter a união. Em contrapartida o homem precisa aceitar apenas pequenos e insignificantes ajustamentos.

A experiência é pródiga em exemplos de mulheres que, apanhadas na ratoeira do amor romântico na sua juventude, se descobrem mais tarde, e, sobretudo, mais velhas, numa situação tremendamente desfavorecida em caso de divórcio ou de separação, tendo de viver à mingua de uma pensão de alimentos nem sempre prontamente entregue e quase sempre escassa, sem grandes oportunidades no mercado de trabalho e, já agora, também no mercado marital.
A exaltação do amor romântico, a tal ratoeira, é cuidadosamente montada pelos media de entretenimento, nos seriados e sobretudo nas novelas que as mulheres consomem; mas ninguém se preocupa em dizer-lhes que consequências podem advir pois até importa escamotear esse «pormenor» e pintar o quadro com as cores mais resplandecentes.

Ao comprometerem-se numa união romântica os homens tem muito pouco a perder, para eles o «negócio» compensa, mesmo contando com eventuais danos colaterais. Em caso de divórcio, a sua situação financeira não fica grandemente comprometida porque o que terão de pagar compensa bem todo o trabalho gratuito que as mulheres prestaram durante os anos de casamento, tratando deles, da casa e dos filhos. Por outro lado, muito mais facilmente encontram nova companheira, se quiserem, porque para eles a idade funciona, como sabemos, de outra maneira.

As mulheres são presas fáceis do amor romântico porque são condicionadas fortemente desde a mais tenra infância a orientarem-se nesse sentido, além de que, e este é um aspecto extremamente importante, a sociedade só aceita que tenham actividade sexual com esse envolvimento afectivo e sentimental e acabam por interiorizar de tal maneira o condicionamento social que elas próprias repudiam aventuras «amorosas» sem comprometimento afectivo.

Educar as jovens para o casamento romântico e os jovens para a vida activa no mundo profissional tem sido a norma, mas essa é uma norma que perpetua e reforça a sociedade sexista em que vivemos.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

O amor romântico incorpora o essencial das relações patriarcais

O amor romântico se não é uma invenção é pelo menos uma situação afectivo-sexual que ganha contornos bem definidos no século XVIII. Curiosamente, a construção desses contornos coincide com a emergência do movimento feminista e por tal motivo requer alguma atenção porque pode funcionar, e efectivamente tem funcionado, como um entrave à autonomia das mulheres, enquanto deixa inalteradas as possibilidades de autonomia dos homens.
O amor romântico toma como pressuposto que é possível duas pessoas, e estou a falar de relações heterossexuais, fundirem-se numa só, ou pelo menos darem origem a uma nova entidade: um casal, que adquire uma identidade própria. Só que essa identidade, essa fusão de dois num significa normalmente que esse um é masculino, o que não poderia deixar de acontecer no contexto das sociedades sexistas em que homens e mulheres têm vivido.
Com a proposta do amor romântico, muito sedutora para as mulheres pois que além de lhes prometer amor também lhes promete respeito e igualdade de tratamento, só o amor e o respeito são conseguidos, quando são, o que já não parece mau de todo ; mas a igualdade de tratamento vai ser completamente comprometida pelas cedências que as mulheres têm de fazer. Num casal que vive romanticamente o amor é suposto que a mulher abdique, e abdique de bom grado, se for necessário, da sua carreira e ou das suas aspirações pessoais para apoiar a carreira e permitir a realização das aspirações do companheiro; é preciso que se apague enquanto existência autónoma que abdique da sua identidade pessoal enquanto o companheiro a mantém; mas, como escreveu Marilyn Friedman, «Se alguém tem de desistir das suas anteriores ambições a fim de incorporar romance na sua vida, enquanto o seu amante apenas precisa de fazer pequenos ajustamentos, então a relação fará da primeira pessoa uma pessoa substantivamente diferente da que era antes, ao mesmo tempo que a outra continua a ser substantivamente a mesma pessoa.» [1]
Desse modo instalam-se e reforçam-se tantas assimetrias que só com má fé se pode falar em igualdade de tratamento, mas estas são obscurecidas pelo encantamento do amor que é bom pelo menos enquanto dura. Depois, bem, depois, às vezes, já é tarde e é impossível voltar atrás.


[1]Marilyn Friedman: Autonomy, Gender and Politics, Oxford University Press, New York, 2003, p. 126

sábado, 24 de abril de 2010

A intimidação psicológica como mecanismo para manter as mulheres na linha

Continuamos a viver num sistemas de castas que têm por base o sexo, em que uma delas, a das mulheres, é mantida segregada, para que continue a deter um baixo estatuto. Essa segregação, que toma por base a diferença de papéis sexuais, funciona melhor do que a segregação espacial, com base em guetos, porque pode ser mais facilmente camuflada e as mulheres podem mais facilmente ser convencidas de que são «diferentes, mas iguais»; é este o slogan repetido retoricamente por anti-feministas de todas as tendências que se esquecem de dizer que, pelo menos tradicionalmente, essa diferença tem sido construída em termos de hierarquia. Por isso, sempre que ouvirmos este slogan, convém ficarmos espertas.

Mary Daly, no livro Beyond God the Father, denunciou o sistema de castas com base no sexo e mostrou como a Igreja Católica e as igrejas cristãs o têm justificado e promovido; mas também nos alertou para a necessidade de estarmos atentas a disciplinas mais modernas que, de forma bem mais eficiente nos dias que correm, continuam, em novos moldes, o trabalho que antes coube à religião instituída e seus acólitos. No excerto que a seguir apresento ela refere explicitamente a psiquiatria e a psicologia que muitas de nós reverenciamos porque, um pouco ingenuamente, acreditamos na «objectividade» dos novos especialistas, mas que devíamos antes encarar com saudável suspeição e criticismo:

«Em larga medida em tempos recentes o papel da religião enquanto suporte do sistema de castas sexuais tem sido transferido para as profissões da psiquiatria e da psicologia. Feministas apontaram que não foi por acaso que a teoria freudiana emergiu quando a primeira vaga de feminismo estava no ninho. Isso foi parte da contra revolução, do contra-ataque masculino. A psiquiatria e a psicologia têm os seus próprios credos, sacerdócio, aconselhamento espiritual, regras, anátemas e gíria. O seu poder de intimidação psicológica é enorme. Milhões de mulheres, que sorririam perante o rótulo de «herética» ou «pecadora», por recusarem conformar-se às normas da sociedade sexista, podem ser atemorizadas e mantidas na linha pelos rótulos de «doente», «neurótica» ou «não-feminina». Conjuntamente estas profissões funcionam como a «mãe» Igreja da religião secular patriarcal contemporânea e enviam missionários para todo o lado.»
Mary Daly: Beyond God the Father, Beacon Press, Boston, 1985, p. 4

terça-feira, 20 de abril de 2010

Pensamentos sobre feminismo

“Quando eu frequentava o primeiro grau a minha professora indiana disse-me:
Feminismo é o que te diferencia de um capacho. O que significa respeito pelos outros, mas principalmente respeito por ti própria. Feminismo é a capacidade não apenas de lutar por aquilo em que acreditas como mulher, mas também o amor e a mais alta estima por ti mesma e pelo resto do mundo.

Há muito tempo que associo feminismo a humanismo. Em minha opinião, o mundo esqueceu o que significa lutar por justiça a qualquer preço. Direitos iguais são importantes, mas defender os nossos semelhantes é mais importante, porque só então podemos chegar perto de conseguir paz no mundo.
A nossa maior esperança reside não em reprimir mas em encorajar tudo o que é bom.» (Citação d blog http://thefbomb.org/)

domingo, 18 de abril de 2010

O feminismo continua a fazer todo o sentido

A todas aquelas que dizem «eu não sou feminista mas…» e que parecem não entender a necessidade do movimento feminista, lembro estas declarações do Funda das Nações Unidas para a População, que embora datadas de 2000, ainda hoje, dez anos decorridos, permanecem actuais e nos avisam de que a luta contra a injustiça e a opressão sofrida pelas mulheres e pelas crianças continua a ser uma prioridade e que o feminismo continua a fazer todo o sentido.

«…Existem profundas desigualdades económicas e culturais que marginalizam efectivamente metade da população mundial. Esta metade realiza a maior parte do trabalho no mundo, todavia ganha uma fracção mínima do rendimento mundial. Esta mesma metade é frequentemente alvo de violência, é privada de educação e de cuidados de saúde e é-lhe negado um papel na vida civil. Esta metade é composta por mulheres e crianças. A discriminação que têm de suportar, apenas em consequência do género a que pertencem é universal; ocorre virtualmente em todos os países, no lar, no local de trabalho, nos lugares de culto e nos tribunais.»

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Homens e mulheres - estereótipos

No blog sexismo publicitário encontrei este interessante vídeo sobre as diferenças entre homens e mulheres que resume os estereótipos usados para descrever o comportamento dos dois sexos e que nos deve fazer pensar sobre o muito que ainda temos de percorrer para atingirmos um patamar mais igualitário:

quinta-feira, 15 de abril de 2010

A liberdade das mulheres depende da sua participação nas diferentes formas de poder

A libertação das mulheres requer um conjunto de condições objectivas que a tornem de facto, e não apenas de direito, possível. E essas condições para serem preenchidas dependem da participação das mulheres nos diferentes órgãos de poder político em paridade com os homens, bem como da sua participação na vida económica e cultural nos mesmos termos. Enquanto o mundo e os órgãos de decisão pertencerem aos homens em proporções avassaladoras, como ainda hoje se verifica, os obstáculos reais vão permanecer e os progressos talvez continuem a verificar-se, mas num ritmo extremamente lento e com avanços e retrocessos.
A imagem acima documenta duas coisas, uma é a de que, mesmo no mundo ocidental, o número de mulheres nos órgãos de poder político é diminuto, parece-me que conto trinta homens e apenas duas mulheres na foto do governo de Israel, em cima, e mesmo estas duas foram apagadas digitalmente da fotografia que foi publicada por um jornal israelita ultra-conservador que se recusa a publicar imagens de mulheres.
É para estes aspectos que o texto de Natasha Walter chama a nossa atenção e é melhor não fazermos ouvidos moucos e pensarmos que, assim como foi imprescindível aceder ao direito de voto para alterar a nossa situação, também vai ser preciso aceder ao poder político pleno bem como ao económico e cultural para que não mais se repitam situações infamantes como a documentada nesta imagem!


«As mulheres moveram montanhas no sentido de despertarem a consciência das pessoas para a violência sexual e doméstica. Se ainda se encontram em desvantagem na obtenção de justiça para as mulheres que são violadas ou para encontrar protecção para as mulheres em risco nas suas próprias casas não é porque os seus argumentos não são comoventes e convincentes; mas sim porque não há um número suficiente de mulheres nas forças policiais e nos órgãos judiciais para dar todo o peso à palavra da mulher; não há mulheres em número suficiente no Parlamento e nos Serviços Civis para desenhar legislação que faça sentido para as mulheres. Somente quando as mulheres estiverem tão bem representadas quanto os homens nas forças policiais e nos tribunais se encontrará justiça para as mulheres. Somente quando as mulheres tiverem os mesmos papéis no Parlamento e nos Governos, a legislação tratará com igualdade homens e mulheres. Somente quando mulheres e homens tiverem igual independência financeira, as mulheres serão capazes de escapar de relações abusivas, quando o pretenderem; e, se decidirem ficar, saberão que essa é a sua escolha. Enquanto o suporte da desigualdade material não for suprimido, as mulheres não serão livres.”
Natasha Walter: The new Feminism, Virago Press, London, 1999, p. 223-224.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Britney tem orgulho no seu corpo – imperfeições e tudo

Numa atitude no mínimo interessante, consciente de como a publicidade pode pressionar as mulheres e desencadear processos que as levem a viver obcecadas com a aparência e com o desejo de perfeição corporal, imitando os icons do momento, a cantora Britney Spears pediu que as imagens do seu corpo usadas numa campanha publicitária de uma marca de roupa interior, e, obviamente, retocadas com a técnica do photoshop, fossem acompanhadas das imagens equivalentes antes do tratamento digital. E assim é possível ver a Britney real, não apenas o simulacro; e a Britney real continua a ser bela, mesmo com todas as imperfeições que celulite, manchas nas pernas, uma cintura menos delgada ou linhas menos definidas provocam.

terça-feira, 13 de abril de 2010

Mulheres no espaço

«O espaço está em vias de ter uma explosão de população feminina» - Quatro mulheres, uma professora, uma química e duas engenheiras espaciais são as protagonistas; uma delas está em órbita à volta da terra numa cápsula russa, as outras três fazem parte da tripulação do Discovery que está em órbita desde cinco de Abril.

Uma nota curiosa é que uma das astronautas, a japonesa Yamasaki, contou com o apoio do marido que deixou o seu posto de controlador de voo numa estação espacial para ficar a tomar conta da filha do casal, de sete anos, dando assim oportunidade à mulher de seguir a carreira profissional e de fazer História...

domingo, 11 de abril de 2010

Igreja, violência sexual e papeis sexuais tradicionais

O texto de Christine Gudorf, professora de Teologia na Universidade de Columbia, que a seguir traduzo, contém algumas ideias fortes de como as igrejas podem contribuir para a erradicação da violência sexual; resumidamente pode dizer-se que C. Gudorf propõe que as igrejas:

Condenem explicitamente os textos que aceitam ou perdoam a violência sexual;
Apresentem uma imagem da mulher como sendo tão racional, digna e responsável quanto o homem;
Promovam activamente a educação das pessoas no sentido destas tomarem consciência e condenarem a violência sexual;
Deixem de definir masculinidade e feminilidade em termos de domínio/submissão;
Resistam à homofobia e estimulem modelos de trabalho cooperativo que envolvam tanto homens quanto mulheres.
São bons conselhos, mas infelizmente este texto já foi escrito em 1993 e dá ideia que caíram em saco roto, o que é lamentável dado o potencial que as igrejas têm para influenciar as pessoas, tanto para o bem como para o mal.

«É necessária uma condenação consciente de todas as fontes de aprovação da violência sexual. Isso implica que se aceite criticar a Escritura, os padres da Igreja, os teólogos e todos os ensinamentos da Igreja que são omissos no reconhecimento e na condenação da violência sexual e que, por vezes, até a perdoam. Passos da Escritura e da teologia que apresentam mulheres e crianças como despojos legítimos numa guerra, apropriadas e sexualmente controladas por pais, maridos e senhores, ou que compreendem a violência contra as mulheres como uma injúria aos seus proprietários mais do que a elas próprias, devem ser criticados e rejeitados.
As igrejas devem compensar as falhas da Escritura, da tradição e do ensinamento da Igreja apresentando uma imagem consistente das mulheres como seres racionais com dignidade, capacidade de auto-determinação e responsabilidade equivalentes à dos homens. Uma preocupação autêntica com a violência sexual deveria produzir um certo número de mudanças na vida da Igreja e nos seus ensinamentos. Em primeiro lugar, as igrejas poderiam explicitamente condenar a violência sexual, nos púlpitos, em sessões de educação de adultos, nas escolas dominicais, em programas para a juventude.
As igrejas deviam renunciar à tradição de definir masculinidade e feminilidade em termos de domínio/ submissão. O entendimento de que um «verdadeiro» homem tem controlo sobre ele próprio e sobre os outros, de que a masculinidade pode ser medida pela amplitude desta regra, de que um «verdadeiro» homem está sempre pronto para o sexo e de que o seu pénis é mais uma arma para obter tanto sexo como controlo, deve ser firmemente rejeitada.
Do mesmo modo, as igrejas deviam rejeitar a concepção de feminilidade que encoraja as mulheres a serem vítimas passivas, fisicamente fracas, temerosas de conflito, deferentes e dependentes dos homens.
Renunciar aos papéis sexuais tradicionais vai requerer que se repense as expectativas de ministros ordenados e de leigos assim como o entendimento das congregações sobre a liderança em geral. A aptidão para trabalhar cooperativamente com ambos os sexos deve ser um requisito básico para um ministro. Igualmente importante para o ministério é a resistência à homofobia que serve para reforçar uma compreensão muito perigosa de masculinidade e de feminilidade e do sexo como uma actividade de domínio/submissão.
A igreja deve ser um lugar no qual modelos cooperativos de tomada de decisões entre os sexos devem ser promovidos e desenvolvidos.»

Christine E. Gudorf: The Worst Sexual Sin: Sexual Violence and the Church. The Christian Century. Volume: 110. Issue: 1. January 6, 1993.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Violência sexual – arma para manter a ordem social existente

O medo da violência sexual é uma arma poderosa para manter a ordem social no que às mulheres diz respeito porque é um meio de lhes limitar a liberdade de movimentos e de prescrever os comportamentos que nelas serão aceitáveis. Esses comportamentos poderão ir desde o uso da burka ou do véu até à exigência de vestuário considerado não provocativo da libido masculina. Quer dizer, mais uma vez o ónus recai sobre as mulheres pois não se considera que seja necessário os homens restringirem os seus comportamentos agressivos, só é preciso não os provocar.

A sociedade, mesmo em países ditos evoluídos, é complacente para com a violência sexual de muitas maneiras; uma das mais eficientes é culpabilizar a vítima e compreender o agressor, do qual desse modo se desvia a atenção. Seguindo esta estratégia, as pessoas ficam com a consciência tranquila e ao mesmo tempo, dá-se às mulheres uma falsa sensação de segurança, a sensação de que nada lhes acontecerá se se comportarem de acordo com a cartilha machista que defende o duplo padrão em matéria de sexo e que enaltece a mulher recatada e modesta. Mas, esquece-se que deste modo está a estimular-se, ainda que indirectamente, a violência sexual.

Culpar a vítima de violência sexual é de alguma maneira desculpar essa mesma violência, é considerar que há casos em que ela se justifica. Ora, seja qual for a circunstância, em nenhuma situação é admissível o recurso à violência sexual, e, portanto, quem a desculpabiliza está a ser conivente com ela e é bom que comece a perceber que tem uma quota parte de responsabilidade na matéria; e com isto, estou a apontar o dedo a instituições e a muitas pessoas respeitáveis, mulheres incluídas.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Violência sexual e práticas sociais

«A nossa sociedade tolera a violência sexual de inúmeras maneiras. Como as teólogas Beverly Harrison e Carter Heyward sugerem, nós erotizamos a dominação. É sexy para um homem ser maior, mais velho, mais forte, mais rico e socialmente mais poderoso do que uma mulher; o reverso decididamente não é sexy. A nossa sociedade incorpora a dominação e a submissão na sexualidade de um modo que desculpa a violência.

Há um sem número de circunstâncias nas quais sexo sob coação não é olhado como violação, mas como o direito de um homem: se a mulher se veste de forma provocante, se está sob o efeito do álcool ou drogas, se o convida para saírem, se aceita que ele gaste dinheiro com ela, se vai ao apartamento dele, se vai a uma festa, se ele é ou foi casado com ela.
Trinta e nove por cento de alunos do liceu, reportados num estudo, disseram que se justificava forçar a relação sexual se a jovem estivesse bêbada ou pedrada. Num outro estudo, setenta e cinco por cento de alunos universitários disseram que usavam álcool ou drogas para conseguirem sexo.

Os homens parecem não ser capazes de distinguir coerção de consentimento. (…) Esta dificuldade de distinguir entre consentimento e coacção impede oito em cada nove vítimas de reportarem que foram violadas.
Censurar a vítima de violência sexual é um lugar-comum, não só porque torna desnecessário para a sociedade examinar seriamente o nível de violência dominante, mas também porque dá às mulheres (e às crianças e a quem as ama) a ilusão de segurança. Se as vítimas de violação, incesto ou violência física provocam esses comportamentos, então mulheres e crianças «bem comportadas» e responsáveis nada têm a temer.»

Christine Gudorf: The Worst Sexual Sin: Sexual Violence and the Church. The Christian Century. Volume: 110. Issue: 1. January 6, 1993.

sábado, 3 de abril de 2010

Masoquismo e violência doméstica

Se as mulheres forem masoquistas, isto é, se o masoquismo, enquanto gosto pelo sofrimento e capacidade para extrair prazer do sofrimento, fizer parte da natureza feminina, toda a gente fica satisfeita: os homens porque podem controlar e dominar as mulheres sem qualquer receio de serem contestados, as mulheres porque gostarão de ser controladas e dominadas e não sentirão necessidade de se rebelarem contra tal situação. Ora, através dos tempos, tudo se tem feito para convencer as mulheres de que nelas os traços masoquistas são acentuados e sobretudo são inatos e de que a sua natural inferioridade tanto física quanto intelectual exige que se submetam, de bom grado, à orientação do sexo forte. De facto sempre que a mulher procura ser assertiva e investir nela própria em primeiro lugar é logo acusada eufemísticamente de pouco feminina e não eufemísticamente de «machona», neologismo criado no século vinte em época incerta para designar esta nova situação, que ganhou então alguma relevância, em qualquer dos casos - pouco feminina ou «machona», uma mulher que não sabe ou não quer ocupar «o seu lugar» e que se atreve a invadir o universo masculino.

Não é por acaso que uma interpretação frequente do comportamento de vítimas de violência doméstica que não abandonam o companheiro abusador pretende que elas são masoquistas - como o povo diz gostam de apanhar, omitindo convenientemente outras explicações mais plausíveis.
Uma das explicações da «aceitação» da violência doméstica tem a ver com a ambivalência de sentimentos experimentada pela mulher, quase sempre estimulada pelo abusador que, manipulando o poder que detém, também é capaz de revelar facetas e momentos de pura sedução. Outra supõe o receio das consequências que possam ocorrer de uma atitude de rejeição: os casos de polícia registam com muita frequência crimes violentos e até assassinatos praticados pelos ex-companheiros de mulheres que tiverem a coragem de dizer não à violência quotidiana e que acabaram por pagar com a própria vida essa coragem. Mas há outras vulnerabilidades, relacionadas, por exemplo, com a existência de filhos pequenos, carência de recursos económicos e até hostilidade social que explicam porque é que a mulher «aceita os maus tratos».

Em todos os casos acima referidos e estou em crer que correspondem à generalidade, não é necessário invocar o masoquismo inato ao sexo feminino que, bem vistas as coisas, é mais uma grave ofensa que se faz contra as mulheres.