sexta-feira, 28 de maio de 2010

Burqa genital

A Academia Americana de Pediatria propôs recentemente (a notícia é de 21 de Maio de 2010) que as famílias que praticam a mutilação genital feminina pudessem ter a assistência de médicos para efectuarem o ritual de circuncisão feminina, que consistiria apenas num corte «simbólico» e não profundo do clitoris, uma espécie de equivalente da circuncisão masculina. Mas Ayaan Hirsi Ali considera que tal proposta, independentemente das intenções dos médicos norte americanos, torná-los-ia cúmplices na perpetuação de uma grave injustiça.

Em primeiro lugar não há de facto equivalência entre o corte, mesmo que superficial do clitoris e a circuncisão masculina, esta apenas remove parte da pele e não o pénis, o mesmo não acontece com a prática da mutilação genital feminina. Por outro lado, as intenções presentes num caso e no outro são completamente diferentes, pois no caso das meninas o que se pretende é garantir que elas cheguem virgens ao casamento, diminuindo-lhes a libido e assegurando posteriormente a sua fidelidade conjugal. Daí que como Ayaan Hirsi Ali salienta, os pais das famílias que recorrem a esta prática não iriam ficar satisfeitos com o simples «corte simbólico» e iriam recorrer posteriormente a práticas de mutilação mais severas e mesmo à prática de coser parcialmente a abertura da vagina, deixando um pequeno orifício para a saída da urina e do sangue menstrual.
Assim, reconhecer legalmente a prática da «mutilação simbólica» não só não irá prevenir outras ofensas mais graves e severas, bem pelo contrário será como que uma espécie de plano inclinado para a sua aceitação. Portanto a única atitude correcta parece ser a de continuar a criminalizar a mutilação genital feminina, ponto final, sem excepções e sem reconhecimentos simbólicos; esta será a maneira possível de lutar contra uma tal injustiça que atinge milhões de mulheres. A própria Ayaan Hirsi Ali, autora de Nomad : From Islam to America, A Personal Journey Through the Clash of Civilizations, sabe do que está a falar, por experiência pessoal:

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Escolha e liberdade de acção

O conceito de escolha é um conceito fundamental e tem permitido justificar muitas situações, algumas que repugnam a muito boa gente, como é, por exemplo, o caso da prostituição, vendo-se os opositores à legalização desta prática em dificuldade para objectarem ao tipo de argumentação que a ele recorre. Diz-se, assim, que, no caso de o sexo entre a prostituta e o cliente ser consensual, nada podemos objectar, nem temos o direito de interferir. E este é apenas um exemplo, entre muitos outros. Mas precisamos de reflectir sobre este conceito, se quisermos analisar as situações com espírito crítico.

O conceito de escolha, tal como a teoria liberal o entende, pressupõe que ela seja individual, mental e implique ausência de constrangimento; tudo aspectos aparentemente essenciais e inócuos. Mas insistir enfaticamente nestes três aspectos, sem os contextualizar, como Foucault denunciou, pode tornar a escolha ilusória e falaciosa porque:

(1) Ao afirmar-se que a escolha é do indivíduo, esquece-se que o indivíduo não é um átomo isolado, separado do contexto social e cultural em que a escolha ocorre; esquece-se que, para se falar em escolha, é preciso que existam opções credíveis entre as quais possamos, de facto, escolher. Por exemplo, se eu não tiver propostas de emprego compatíveis com as minhas habilitações universitárias, não se pode dizer que escolhi ser recepcionista.

(2) Ao considerar-se a escolha como um acto mental, algo que resulta de deliberação, esquece-se o contexto físico em que a escolha ocorre e as limitações que este pode impor. Por exemplo, se uma mulher, vítima de violência doméstica, não tem outro local para residir nem o apoio de amigos ou familiares, é nitidamente falacioso dizer que ela escolhe ficar com o abusador.

(3) Ao entender-se a escolha como ausência de constrangimento, esquece-se que o poder encontra sempre novas estratégias para a condicionar; esquece-se que o poder não é só repressivo, mas também é criativo. Por exemplo, pode ser que ninguém obrigue uma mulher a usar sapatos de salto alto, nitidamente prejudiciais à sua saúde, mas não se pode ignorar que estes têm sido sempre associados a glamour, sexualidade e poder e que, desde a mais tenra infância, as meninas aprendem que o sapatinho de cristal da Cinderela não serve a mulheres feias!

Clare Chambers escreveu: «O trabalho de Foucault evidencia três problemas do enfoque liberal na escolha. Primeiro, porque a escolha é individual, o enfoque do liberalismo na escolha marginaliza a sua localização social na cultura. Segundo, porque a escolha é mental, o enfoque do liberalismo na escolha marginaliza o papel do enquadramento físico. Terceiro porque o liberalismo concebe a escolha como ausência de constrangimento, o enfoque do liberalismo na escolha ignora os elementos criativos do poder.»*

O conceito de escolha está assim relacionado com o de poder e com os mecanismos que o poder utiliza para controlar situações e pessoas; Foucauld fala nas «tecnologias do poder»: «os novos métodos de poder cujo modo de operar é assegurado não pelo direito, mas pela técnica, não pela lei, mas pela normalização, não pela punição, mas pelo controlo, métodos que são utilizados a todos os níveis e em todas as formas, que vão para além do Estado e seu aparelho.»*

Foucauld evidencia assim que o controlo não é apenas obtido por mecanismos repressivos, pode também ser conseguido de forma mais criativa, por mecanismos extremamente subtis e difíceis de identificar; mas este segundo aspecto foi completamente omitido pela filosofia política liberal que insistia na necessidade de garantir direitos às pessoas, julgando que desse modo poderia limar os dentes da repressão, mas, como não fez a destrinça entre poder repressivo e poder criativo, assistimos a sociedades em que, embora haja mecanismos formais que garantem os direitos das pessoas, na prática esses mecanismos muitas vezes não funcionam e, por isso, a par com a igualdade formal assistimos a tremendas desigualdades fácticas. Não basta limitar o poder do Estado: garantir liberdades formais não vai garantir a autonomia das pessoas porque o poder criativo vai encontrar formas de a limitar ou impedir. Por isso temos de estar particularmente atent@s a coisas aparentemente tão inofensivas como a indústria de entretenimento, a moda, a publicidade ou a pornografia porque hoje o controlo passa por aqui. Infelizmente a maioria das pessoas ainda não o percebeu.
*Clare Chambers: «Sex, Culture, and Justice» Pensylvania University Press, 2008.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Freud e sexualidade feminina

A prática da ablação do clitoris, hoje entendida, por gente civilizada, como uma prática selvagem e uma torpeza inominável que se comete contra as mulheres, encontra justificação em teorias freudianas conhecidas que tiveram tremendo impacto nas mentalidades nos fins do século XIX e no decurso do século XX.

Este caso particular chama mais uma vez a nossa atenção para o perigo de se aceitar acriticamente os dados e as teses dos investigadores, cientistas ou para-cientistas, porque, abrigando preconceitos milenares, muitas vezes, limitam-se a fornecer o racional para esses preconceitos. Não quero com isto dizer que o trabalho científico não seja meritório, tenho-o mesmo em alta conta, mas é preciso estar com atenção porque os cientistas e as cientistas são homens e mulheres como toda a gente, que abrigam preconceitos comuns na sua época, que têm um pensamento voluntarista (wishfull thinking) e que, obviamente, se enganam e iludem com mais frequência do que seria desejável. Vejamos pois algumas das teses da psicanálise freudiana:
O masoquismo, enquanto característica inerentemente feminina; a inveja do pénis; a mulher como um ser sexualmente castrado; o conceito de ferida narcísica são algumas expressões dessas teses e também dos preconceitos que incorporam. Os danos que provocaram, e continuam a provocar, na vida das mulheres são incalculáveis.
Aceitar que as mulheres são por natureza masoquistas e que o masoquismo feminino é fundamental para a preservação da espécie humana; que as mulheres têm inveja do pénis e que se sentem sexualmente castradas, implica defender teses que estão por provar, cabendo o ónus da prova a quem as defende. Construir uma teoria da sexualidade feminina com base nestas premissas é tudo menos sério, por mais respeitáveis que sejam os seus proponentes. Investigadores mais atentos deveriam ter constatado que afinal estavam a dar expressão «pretensamente» científica à visão comum que a sociedade da época tinha das mulheres e da sua sexualidade; mas, provavelmente, estes não estavam tão atentos assim e, numa época conturbada pelas novas e «estranhas» reivindicações das mulheres, esqueceram-se de psicanalisar os seus próprios receios, sentindo-se mais confortáveis no aconchego dos mitos com os quais conviviam de longa data. Esqueceram-se ainda que é possível encontrar explicações mais consistentes para o «aparente» masoquismo feminino e que a famosa inveja do pénis - se é que corresponde a alguma realidade, também tem outro tipo de explicação.

O texto de Sandra Lee Bartky a seguir apresentado descreve bem a concepção de sexualidade feminina defendida por Freud e discipul@s; esta, se levada às suas últimas consequências, justificaria que se procedesse, como se faz em outras culturas, à ablação do clitoris nas mulheres, como meio de facilitar o investimento numa sexualidade vaginal passivo-masoquista. Mas nós sabemos bem como esta prática, nessas outras culturas, responde a motivações de domínio sobre as mulheres bem menos confessáveis e completamente injustificáveis. Vejamos pois o texto:

«Freud e os primeiros psicanalistas nunca puseram em dúvida que a natureza feminina é inerentemente masoquista. Acreditavam que nas mulheres o masoquismo era em larga medida instintivo na sua origem, isto é, era consequência de uma certa canalização da libido do seu primitivo «cathexis» sádico-activo clitoridiano para um investimento vaginal passivo-masoquista.
O que é que isto significa? A jovem sofre uma ferida narcísica ao descobrir a «inferioridade» do seu próprio órgão, isto leva-a a ficar desapontada com o seu investimento clitoridiano «imaturo» e com a auto-estimulação activa do seu próprio corpo; começa então a antecipar a sua realização, primeiro a partir do pai e depois, muito mais tarde, a partir de alguém que o representa. Dado que o potencial da vagina para o prazer sexual é apenas estimulado através da penetração, a mulher psico-sexualmente madura, apta para a relação heterossexual e assim para a reprodução da espécie, deve esperar até ser escolhida e «tomada» pelo macho.
A repressão da sexualidade clitoridiana é necessária para que tal aconteça. A eminente freudiana Helene Deutsch acreditava que, dado que a menstruação, a desfloração e o parto – os principais eventos na vida sexual das mulheres – são dolorosos, o masoquismo feminino é funcionalmente necessário para a preservação da espécie. Maria Bonaparte acreditava que a ideia de relação sexual causava à jovem medo de ser atacada no interior do seu corpo; apenas a transformação da libido sádico-activa na masoquista-passiva podia permitir que uma mulher aceitasse a «continua laceração da relação sexual». Sandor Rado, um outro freudiano, dizia que a extrema dor mental sofrida pela jovem quando descobre a sua «castração» a excitava sexualmente; daí decorreria que ela só conseguiria atingir satisfação sexual através do sofrimento.» *

Sobre a inveja do pénis, que considero ser mais uma mistificação da cultura falocêntrica, volto a citar o texto de Lois Tyson, em Critical Theory Today:

«Muitas mulheres, feministas ou não, têm dificuldade em acreditar que as meninas, depois de descobrirem que os rapazes têm pénis, sofrem de «inveja do pénis», ou do desejo de ter um pénis, ou que os rapazes, depois de descobrirem que as meninas não têm pénis, sofrem de ansiedade de castração, ou do medo de perder o seu pénis. Contudo, a explicação destes dois fenómenos é clara, quando nos apercebemos do contexto cultural em que Freud os observou: a rígida definição de papéis da sociedade Vitoriana, que era usada para oprimir as mulheres de todas as idades e para elevar os homens a posições de dominância em todas as esferas da actividade humana.
Será de estranhar que uma menina queira (pelo menos a nível inconsciente) ser um rapazinho, quando percebe que os rapazinhos têm direitos e privilégios a que se supõe que ela nem sequer deve aspirar? Por outras palavras, quando você vê «inveja do pénis» leia «inveja do poder». É o poder e tudo o que parece acompanhá-lo – auto-estima, divertimento, liberdade, segurança em relação à violação física pelo sexo oposto – que as rapariguinhas invejam.
E o que o rapazinho sente - depois de perceber a sua superioridade social e o poder que esta comporta em relação às meninas – não será ansiedade pela possibilidade de o perder? A frase “É uma menina ou um mariquinhas”, tem o condão de ferir os rapazinhos (e também os rapazes grandes) porque os ameaça com essa perda de poder. A ansiedade da castração é assim melhor compreendida como o receio de ser removido para a posição de ausência de poder ocupada pelas mulheres.»

Em breves e curtas palavras podemos dizer que Freud e correligionári@s contribuíram para a manutenção dos valores da sociedade patriarcal, reforçando a sua misoginia, fornecendo-lhe o racional e colocando ao seu serviço uma retórica forte que fixava a atenção das pessoas, tão forte que ainda hoje, tantos anos volvidos ainda nos são familiares os conceitos e preconceitos que através dela exprimiram.
*Sandra Lee Bartky: Femininty and Domination: Studies in the Phenomenology of Oppression», Routledge, 1992, ps. 52-53


Sandra Lee Bartky: Femininty and Domination: Studies in the Phenomenology of Oppression, Routledge, 1990, p.s 52/3

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Sexismo na publicidade

Nem de propósito encontrei aqui algumas imagens de anúncios publicitários da década de cinquenta do século passado que revelam bem como se encarava com perfeita naturalidade o papel de subserviência da mulher e de supremacia do homem; hoje é preciso mais subtileza para fazer passar a mesma mensagem, o poder é mais criativo, mas em muitas situações continua a insistir em modelos e em estereótipos que importava ultrapassar e não reforçar.

Não há dúvida que esculpir a figura feminina como um elegante cinzeiro de que um homem se serve não parece muito dignificante para as mulheres, mas pelos vistos pelo menos na época era algo com que as pessoas conviviam bem.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Sexualidade feminina e masoquismo

Suponho que muitas mulheres e particularmente muitas feministas, mais conscientes e habituadas a pensar criticamente, convivem mal com a sua sexualidade já que esta, enquanto «constructo social», não pode deixar de reflectir as estruturas opressivas da ordem patriarcal que nos governa e que elas detestam e se propõem combater.

Sandra Lee Bartky, analisando a sexualidade feminina (heterossexual), considerou que neste particular caso pode existir conflito entre a estrutura do desejo feminino - um desejo que se inscreva numa relação de domínio/submissão, e os princípios éticos de autonomia e de liberdade que a mulher emancipada defende para si mesma; reconhece ainda que isto constitui de facto um problema de difícil solução: «Que fazer, por exemplo, quando a estrutura do desejo entra em conflito com os princípios de uma pessoa? Esta é uma questão difícil para quem quer que seja consciente, mas é particularmente pungente para as feministas.» *

Embora seja relativamente fácil criticar as estruturas patriarcais opressivas, é difícil, porventura impossível, libertar-se da própria sexualidade - mesmo quando esta implica também uma dimensão opressiva, porque a sexualidade se encontra, ela própria, no âmago do que a pessoa é e constitui a manifestação de instintos poderosos e avassaladores que podemos recalcar, mas não eliminar.
A dimensão opressiva da sexualidade feminina advém da erotização da dominação - elemento fundamental da sensibilidade masoquista: implica não só aceitar como também apreciar a dominação. Mas que mecanismos terão levado a uma situação tão paradoxal? Como foi possível erotizar a dominação quando o anseio de todo e qualquer animal é ser livre? Quando se reconhece que a liberdade é elemento constitutivo essencial da pessoa humana?

Como diz Sandra Lee Bartky: «O que quer que pertença à sexualidade – não apenas o comportamento sexual, mas também o desejo sexual e a fantasia sexual – tem de ser compreendido no contexto de um sistema mais amplo de subordinação; (além de que) a sexualidade deformada de uma cultura patriarcal deve ser deslocada do domínio escondido da vida privada para a arena da luta, onde uma sexualidade de respeito mútuo «politicamente correcta» entra em conflito com uma sexualidade «incorrecta» de domínio e submissão.»*

Assim, para compreendermos esta complexa questão temos de perceber que nas sociedades patriarcais, em que as mulheres têm vivido e em que têm sido socializadas, as relações de poder entre os sexos se mantiveram sempre profundamente assimétricas: os homens têm poder – físico, económico e intelectual, as mulheres, não. Inicialmente o poder físico superior dos homens deve ter sido suficiente para estabelecer a supremacia; a partir deste, e dado o contexto e as vulnerabilidades em que a vida das mulheres decorria, foi possível aos homens monopolizarem o poder económico e o poder intelectual, mantendo-as sempre à margem do processo, através de mecanismos ideológicos de vária índole e servindo-se do mesmo poder para as dominar.

Ora o poder é sempre fascinante, até porque ele é promessa de liberdade; por isso, as mulheres - que não tinham poder nem liberdade, sentiam-se «naturalmente» atraídas por homens física, intelectual ou economicamente poderosos, numa palavra, por homens dominadores. Poder e dominação apareciam associados e protagonizados pela figura masculina; daí decorreu que a atracção que as mulheres sentiam pelo poder, que elas próprias estavam impedidas de protagonizar, suscitou a erotização da dominação que sempre o acompanhava -, apreciar homens poderosos era apreciar homens dominadores e homens dominadores queriam mulheres submissas e queriam mulheres que gostassem de ser submissas. Encontrar prazer na dominação foi uma forma de poder vicariante reservada para as mulheres.

Hoje, em muitos lugares, as circunstâncias sociais em que decorre a vida das mulheres sofreram alterações significativas; por vezes, elas têm o poder por que sempre almejaram, mas isso é esporádico e casual e nem sequer espelha a realidade prevalecente, além de que, o que é mais importante, as estruturas mais profundas da personalidade ainda não foram afectadas por essas alterações de superfície; não admira, pois, que, neste contexto, as mulheres, mesmo quando começam a afirmar-se na esfera pública, continuem a alimentar fantasias sexuais em que imperam a submissão e a dominação; aliás, é bom salientar que - já para não falar na força avassaladora das religiões, a indústria pornográfica, a moda, a publicidade e a indústria de entretenimento dão uma ajuda preciosa para que a sensibilidade masoquista permaneça, pois já perceberam que ela é a chave, ou pelo menos uma das chaves, para manter o domínio sobre as mulheres.

Como foi a relação assimétrica de poder entre homens e mulheres que condicionou a «opção» das mulheres pela sensibilidade masoquista, é de prever que a situação só comece a alterar-se significativamente quando essa relação de poder se tornar equilibrada, permitindo a construção de uma sexualidade, feminina e masculina, saudável, e não deformada, em que a reciprocidade seja regra e não excepção. Para já, a situação continua sombria pois há muitos interesses a lançarem areia na engrenagem.

De qualquer modo, cumpre dizer, e este é um sinal de alguma esperança, que, mesmo quando as mulheres reconhecem fantasias sexuais que consideram «incorrectas», trata-se, ainda assim, de meras fantasias e essas mesmas mulheres não sentiriam qualquer prazer, bem pelo contrário, se essas fantasias passassem para o campo da realidade; é que as fantasias são suas, são elas que as imaginam, que com elas agem, ao passo que sobre a eventual realidade que lhes correspondesse não teriam qualquer agência; é que imaginar que se é dominada, dada a erotização e o glamour com que a dominação é apresentada, até pode ser sexy, mas confrontar-se directa e concretamente com a dominação, salvo em casos decididamente patológicos, não só não é agradável como é profundamente traumatizante, algo que todas as mulheres repudiam veementemente, como um atentado à sua integridade física e psíquica.
*Sandra Lee Bartky: Femininity and Domination: Studies in the Phenomenology of Oppression. Routledge. p. 45

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Brinquedos e processo de socialização



Encontrei no blog Feminist Philosophers este cartoon que exemplifica muito bem o que se quer dizer quando se afirma que o processo de socialização condiciona fortemente os papéis que se espera mulheres e homens venham a desempenhar. Seria desejável que esse condicionamento não continuasse a marginalizar as meninas da cultura cientifico-tecnológica; ciência é poder e enquanto esta estiver quase que em exclusividade nas mão dos homens é óbvio que também se vão continuar a manter assimetrias que gostaríamos de ver atenuadas.

Brincar é como sabemos uma coisa muito séria e os tipos de brinquedos que podemos propor para as crianças não são inócuos, bem pelo contrário, tanto podem funcionar positiva como negativamente.

terça-feira, 18 de maio de 2010

Masoquismo feminino ou fazer da necessidade virtude!?

É crença corrente e bastante divulgada que as mulheres são masoquistas; mas podemos perguntar se o são de facto, ou apenas - e já não é pouco, se têm comportamentos masoquistas?
O masoquismo é definido como uma perturbação de personalidade caracterizada pela obtenção de sentimentos de prazer através do sofrimento infligido por outros ou pela própria pessoa. Este termo, cunhado nos fins do século XIX pelo neurologista alemão Richard von Kraft-Ebing, foi retomado por Freud que considerou o masoquismo uma característica inerente à natureza feminina.
Na mesma linha interpretativa, a psicóloga Eleanor Galenson, da escola freudiana, considerou que: «coisas como a fantasia de estar a ser agredida ou fantasias de auto-punição são fenómenos que ocorrem mais comummente entre mulheres do que homens». Poderia ter acrescentado também, que essas fantasias sexuais acontecem, não porque as mulheres tenham tendências masoquistas inatas, mas porque o facto de imaginarem fantasiosamente que estão a ser agredidas ou violentadas decorre do molde em que é construída a sexualidade feminina; esta é condicionada fortemente pela erotização da violência sexual, como se pode constatar na pornografia «maistream», mas também na cultura popular e nas normas sociais que presumem sempre que a mulher se deve auto-sacrificar para garantir o bem-estar dos outros e ir ao encontro das necessidades destes, ao invés de investir na satisfação das suas próprias necessidades.
Podemos aceitar que as mulheres, muito mais do que os homens, revelam comportamentos masoquistas e explicar esses comportamentos como resposta à necessidade de evitar a rejeição e a punição social, pois como diz a psicóloga e investigadora canadiana Paula J. Caplan, o comportamento masoquista pode ser atribuído, por um lado, «à crença, baseada em experiência passada, de que é melhor ter expectativas limitadas e (por outro) ao esforço de evitar a punição, a rejeição ou a culpa.»
Caplan reinterpretou o designado masoquismo feminino como uma resposta comportamental que visa evitar a punição social e lidar de modo satisfatório com expectativas de vida e de realização pessoal muito limitadas, rejeitando assim a inevitabilidade do «masoquismo feminino» e também o pretenso carácter inato a que Freud e a psicanálise deram suporte, com os efeitos prejudiciais para a saúde das mulheres que conhecemos; Caplan considerou que este mito freudiano é mais um, entre muitos outros, que importa desconstruir e denunciar. Lendo os seus argumentos não podemos deixar de perguntar como é que a teoria de uma natureza feminina inerentemente masoquista foi tomada a sério durante tanto tempo e por tão boa gente, pois parece bem mais plausível a interpretação de Caplan que considera que o designado «masoquismo feminino», ao invés de ser a procura de prazer através da dor e do sofrimento é antes uma estratégia para evitar a dor.
Assim, por exemplo, quando se diz cinicamente que as mulheres vítimas de violência doméstica aceitam a violência de que são alvo porque são masoquistas, esquece-se - e aqui entra com certeza uma razoável dose de má fé, o contexto em que a existência dessas mulheres decorre e, de entre outros aspectos, o caldo cultural que as leva a aceitar e às vezes a perdoar o agressor, e esquece-se também a fragilidade estrutural da situação em que se encontram; como escreve Caplan: «Algumas destas mulheres são tão vulneráveis que estão ligadas não ao abuso, mas à afectividade esporádica que estes homens exprimem.»

De qualquer maneira, importa também denunciar que, para manter o status quo e a ordem social existente, há toda a conveniência em alimentar o mito do masoquismo feminino pois se nos convencermos de que a «alma feminina» é propensa ao sofrimento e ao sacrifício mais facilmente somos manipuladas e levadas a aceitar situações que de outro modo nos pareceriam intoleráveis.

sábado, 15 de maio de 2010

Jessica Watson - uma verdadeira super-estrela

Jessica Watson, 16, chegou este sábado a Sidney depois de ter enfrentado, durante cerca de sete meses, vagas temerosas, intempéries e intensa solidão, sendo a mais jovem navegadora a alguma vez ter dado a volta ao mundo.
Jessica é um modelo de que este nosso mundo está bem precisado, numa altura em que assistimos a fenómenos estranhos de sexualização de crianças, com a aprovação dos próprios pais, em danças eróticas em que imitam os ícones do momento, ou à participação também de crianças em concursos de beleza e outras futilidades perfeitamente desajustadas em relação à idade em que se encontram.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Simone de Beauvoir e o mito da beleza

A notícia já é antiga, data de 2008, ano em que se comemorou o centenário do nascimento de Simone de Beauvoir; na época provocou acesa polémica, mas hoje volto a referi-la por me parecer que apresenta relação com o mito da beleza, abordado em post anterior.
Começo por recordar que a conceituada revista de centro esquerda Le Nouvel Observateur resolveu comemorar o evento publicando na capa um nu fotográfico da filósofa com o título: Simone de Beauvoir, La Scandaleuse. De imediato o grupo feminista francês Les Chiennes de Gard manifestou o seu repúdio considerando que era a dignidade de todas as mulheres que estava a ser posta em causa.
Não subscrevo esta crítica e respectivo comentário pois me parece decorrer de considerações moralistas que a própria S. de B. não defenderia. Mas há um outro aspecto que interessa realçar: o facto de se publicar um nu de uma filósofa, escandalosa é certo, como defendeu o editor, mas de nunca ter ocorrido sequer a ideia de publicitar um nú de um outro qualquer pensador - até porque o não conformismo da filósofa encontra paralelo em outros pares do sexo masculino, chama a nossa atenção mais uma vez para uma constante no tratamento dado às mulheres, sejam políticas, filósofas ou quaisquer outras, que é o de procurar remetê-las para a esfera da aparência e da futilidade, marginalizando de um só golpe as suas ideias e o seu contributo no domínio do pensamento e da cultura.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

O Mito da Beleza – um estratagema para continuar a manter as mulheres no seu «lugar natural»

Hoje, mais do que nunca, a preocupação com a beleza, considerada inseparável da juventude, continua a manietar as mulheres e a impedi-las de se realizarem acima de tudo como pessoas. Modas, cosméticas e cirurgias estéticas escravizam as mentes de muitas, sobretudo nos países onde a emancipação conheceu avanços mais significativos. E isto não acontece por acaso, acontece porque o «mito da beleza», enquanto mecanismo de controlo social, é actualmente a estratégia mais inteligente para que as mulheres continuem a ocupar o lugar que a ordem patriarcal para elas desenhou - o lugar do secundário e do inessencial.

O texto, que a seguir traduzo, explica bem como tudo isto funciona. Claro que seria desejável que o livro fosse lido na íntegra, mas para já, fica o aperitivo:

«Quando as mulheres se começaram a libertar elas próprias da mística feminina da domesticidade, o mito da beleza compensou o terreno perdido, expandindo-se à medida que essa mística se desvanecia, para levar a cabo o mesmo trabalho de controlo social.
O contra-ataque é muito violento porque a ideologia da beleza é a última remanescente da velha ideologia feminina que ainda tem poder para controlar aquelas mulheres que o feminismo da segunda vaga teria de outro modo tornado relativamente incontroláveis: tornou-se mais forte para levar a cabo o trabalho de coerção social que os mitos acerca da maternidade, domesticidade, castidade e passividade não mais conseguiam realizar. Neste momento procura desfazer, psicológica e veladamente, todas as coisas boas que o feminismo trouxe para as mulheres material e abertamente. Esta contra-força opera para pôr em cheque a herança do feminismo a todos os níveis da vida das mulheres ocidentais. …

Desde cerca de 1830, cada nova geração tem tido de combater a sua versão do mito da beleza. «É muito pouco para mim» disse a sufragista Lucy Stone em 1855, «ter o direito de votar, de possuir propriedade, etc, se não posso manter o meu corpo e os seus usos, como direito meu». Oitenta anos mais tarde, depois das mulheres terem ganho o voto, Virgínia Woolf escreveu que ainda haviam de passar décadas antes que as mulheres pudessem dizer a verdade acerca dos seus corpos. …

A «Beleza» é o sistema de moeda em curso, tal como o padrão ouro. Como em qualquer economia é determinado pela política, e nos tempos modernos no Ocidente é o último e o melhor sistema de crença que preserva o domínio masculino intacto. Ao assinalar valor às mulheres numa hierarquia vertical de acordo com um padrão físico culturalmente imposto, é uma expressão de relações de poder nas quais as mulheres têm de competir de modo não natural por recursos de que os próprios homens se apropriaram. …

O mito da beleza não é de modo nenhum acerca das mulheres. É acerca das instituições dos homens e do poder institucional.
As qualidades que um dado período considera belas nas mulheres são meros símbolos do comportamento feminino que esse período considera desejável: O mito da beleza está sempre de facto a prescrever comportamento e não aparência. A competição entre as mulheres tem sempre feito parte do mito, para que as mulheres estejam divididas umas das outras. A juventude, e até hà pouco tempo a virgindade, têm sido consideradas «belas» nas mulheres já que se enaltece a sua falta de experiência e a sua ignorância sexual. O envelhecimento nas mulheres não é «belo» porque as mulheres tornam-se mais poderosas com o tempo e porque o laço entre as diferentes gerações de mulheres deve ser sempre quebrado de novo: mulheres mais velhas temem as jovens, as jovens temem as velhas e o mito da beleza perpassa todas as épocas da vida das mulheres. Sobretudo é urgente que a identidade das mulheres tenha como premissa a «beleza» para que fiquemos vulneráveis à aprovação externa, trazendo exposto ao ar o órgão sensitivo vital da auto-estima.

Embora de certo tenha havido sempre um mito de beleza tão presente como tem sido presente o regime patriarcal, o mito de beleza na sua forma moderna é uma invenção bastante recente. O mito floresce quando os constrangimentos materiais sofridos pelas mulheres começam a abrandar perigosamente. …
O emergir do mito da beleza foi apenas uma das várias ficções sociais emergentes que se mascararam como componentes naturais da esfera feminina para melhor enclausurarem as mulheres nessa esfera. Outras ficções emergiram em simultâneo: uma versão de infância que requer supervisão maternal constante; um conceito de biologia feminina que exigia que as mulheres da classe média agissem nos papeis de histéricas e hipocondríacas; a convicção de que as mulheres respeitáveis eram sexualmente insensíveis; e uma definição do trabalho das mulheres que as ocupava com tarefas repetitivas, morosas e entediantes, tais como trabalhos de agulha e rendas. Todas estas invenções da era vitoriana serviam uma dupla função – isto é, embora elas fossem encorajadas para que as mulheres expandissem energia feminina e inteligência de modo que não fosse «prejudicial», as mulheres muitas vezes usavam-nas para exprimirem genuína criatividade e paixão.
Mas a despeito da criatividade das mulheres da classe média com modas e bordados e educação de crianças e um século mais tarde, com o papel da esposa suburbana, que decorreram destas ficções sociais, o propósito principal das ficções foi atingido: durante um século e meio de agitação feminista sem precedentes, elas efectivamente contra-atacaram os perigosos novos ócios, interesses literários e relativa libertação de constrangimentos materiais das mulheres da classe média.»[1]

[1] Naomi Wolf: The Beauty Myth: How Images of Beauty Are Used Against Women. Harper Collins e-books

sábado, 8 de maio de 2010

Por que o feminismo continua a fazer todo o sentido

Não resisto a publicitar este vídeo, que uma amiga me enviou, em que Isabel Allende consegue mostrar, com toda a eloquência de uma mulher de paixão, a necessidade de continuarmos a luta por uma outra sociedade, uma sociedade em que a justiça, a atenção e o carinho não sejam palavras vãs.
Como estou com dificuldade em postar correctamente o vídeo, pois não consigo que tenha som, aqui vai o endereço, esperando superar a dificuldade:

quarta-feira, 5 de maio de 2010

O anti-feminismo é o caminho mais fácil

O texto de Simone de Beauvoir que o blog Dos Espíritos me deu oportunidade de rever, fornece o racional que pode ajudar a compreender o fenómeno do anti-feminismo; de facto, ser anti-feminista, assumida ou não, é escolher o caminho mais fácil, é aceitar pactuar com as forças que nos oprimem a troco de protecção (curiosamente protecção em relação a essas mesmas forças), apesar dessa protecção implicar anular-se como sujeito livre que têm de construir a sua própria história e dar sentido à sua existência:

«No momento em que as mulheres começam a tomar parte na elaboração do mundo, esse mundo é ainda um mundo que pertence aos homens; eles não têm qualquer dúvida acerca disso; elas têm poucas. Recusar ser o Outro, recusar a cumplicidade com o homem, isso para elas seria renunciar a todas as vantagens que a aliança com a casta superior lhes pode conferir. O homem-suserano protegerá materialmente a mulher-vassala e encarregar-se-á de justificar a sua existência; com o risco económico ela evita o risco metafísico de uma liberdade que deve inventar os seus fins, sem apelo. De facto, paralelamente à pretensão de todo o indivíduo a afirmar-se como sujeito, que é uma pretensão ética, há também nele a tentação de fugir à sua liberdade e de se constituir como coisa: é um caminho nefasto porque passivo, alienado, perdido, em que se torna presa de vontades estranhas, anulado na sua transcendência, frustrado de todo o valor. Mas é um caminho fácil: evita-se assim a angústia e a tensão da existência autenticamente assumida. O homem que constitui a mulher como um Outro encontrará pois nela profundas cumplicidades.»
Simone de Beauvoir, Le Deuxième Sexe.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Feminismo da Igualdade – uma fachada moderna para o velho anti-feminismo

As mulheres que dizem defender o feminismo da igualdade (Equality Feminism) são cultas, bem sucedidas profissionalmente, politicamente conservadoras ou ex-feministas desiludidas, que se apropriam da linguagem e do estilo das feministas, mas, que, na realidade, são anti-feministas não assumidas. Publicam livros, escrevem em revistas académicas, as mais telegénicas transformam-se rapidamente em estrelas televisivas e organizam-se em associações como por exemplo, a WFN: Women´s Freedom Network e a IWF: Independent women’s Forum. São mulheres como Rita Simon, fundadora em 1993 do WFN ; Danielle Critenden, directora do Women’s Quarterly, Christina Hoff Sommers, autora do livro Who Stole Feminism?, subsidiado e promovido por fundações conservadoras, presença constante em inúmeros Talk Shows televisivos; Laura Ingraham, dissidente feminista; Laura Schlessing que não desiste de flagelar as mães de crianças pequenas que trabalham e ainda a não menos mediática Camille Paglia que assume um discurso modernaço para pescar em águas turvas.
As feministas da igualdade defendem, por exemplo, que as mulheres, enquanto classe, não são vítimas de opressão, esta, em sua opinião, apenas atingiria indivíduos; ignoram assim todos os mecanismos sociais opressivos e negam o próprio sexismo. Repudiam pois um contributo fundamental do movimento feminista que nos anos setenta revelou precisamente que é a sociedade e o modo como está estruturada a vida social que é opressiva para as mulheres, não são indivíduos isolados que oprimem, também casuisticamente, algumas mulheres, são os arranjos sociais que beneficiam e promovem a supremacia masculina e, portanto, o que é preciso é que se operem mudanças nesses arranjos sociais.
As mulheres, dizem-nos, não precisam de tratamento especial para serem bem sucedidas; nesta conformidade abominam o sistema de quotas, isto é, a discriminação positiva, esquecendo que de facto, socialmente, elas próprias já foram favorecidas, de alguma maneira, já foram objecto de discriminação positiva, seja pelo facto de terem nascido em determinadas famílias, de terem relações sociais muito conveniente com quem detém o poder, de terem tido acesso a um determinado tipo de a educação e instrução. Em sua opinião as mulheres não devem ser protegidas por quotas, antes devem lutar e competir em igualdade de circunstâncias com os homens, esquecendo que as circunstâncias não são exactamente as mesmas para uns e para outras e que ainda há, mesmo no Ocidente, inúmeras desvantagens de género que seria de elementar justiça procurar ultrapassar.
As feministas da igualdade não são solidárias com as mulheres em geral e muitas vezes até procuram desvalorizar os factos que mostram como as mulheres enfrentam desigualdades de género, assim por exemplo como refere Jean Hardisty:

«Quando tomam um «mito» como o da relativa relutância das mulheres em comprometerem-se em actos violentos, parecem deliciar-se em o contrariar com histórias e estatísticas que mostram as mulheres como perpetradoras de crimes e de violência.»[1]

Segundo as feministas da igualdade, a violência doméstica não tem as proporções que as feministas lhe atribuem e encarniçam-se em prová-lo, esquecendo que o que seria realmente útil seria denunciar a violência doméstica, que é um facto irrefutável e avassalador, em vez de tentar menorizar a sua dimensão e impacto na vida das mulheres.
Segundo as feministas da igualdade, o assédio sexual no local de trabalho também é uma invenção das feministas que prejudica os homens e esta posição é-lhes muito útil pois como também refere Jean Hardisty:

«É ainda muitas vezes verdade que a solidariedade para com as outras mulheres é uma fórmula segura para falhar num local de trabalho dominado pelos homens. As feministas da igualdade juntaram-se ao clube dos homens, mostrando o cartão de macho em todas as oportunidades, ultrapassando no processo o limiar da decência. Quando atacam o trabalho das feministas em relação ao assédio sexual argumentando que as feministas exageraram a sua importância (e como resultado os homens são oprimidos) estão absolutamente a carácter.»[2]

Claro que as feministas da igualdade, enquanto membros de uma elite, gozam de uma situação de privilégio e mais, só têm o protagonismo que têm, com acesso aos meios de comunicação e à expressão do seu próprio pensamento, com estilos de vida activa que decorrem fora dos limites estreitos da domesticidade, porque antes delas houve muitas mulheres, as feministas - que elas desprezam, que lutaram por isso, pela igualdade de educação e de oportunidades; são hipócritas e mal agradecidas. São mulheres com graus académicos e com carreiras profissionais bem sucedidas, curiosamente em alguns casos essas carreiras foram construídas às custas das feministas, pois só lhes dão a audiência que dão porque elas atacam o movimento feminista. É muito conveniente apresentar as próprias mulheres, sobretudo se são jovens e charmosas, a proferirem discursos anti-feministas, como acontece com por exemplo Anne Coulter, hoje já não tão jovem, mas ainda charmosa, que profere os maiores impropérios contra as mulheres, mas que se transformou numa autêntica estrela mediática - a barbie da direita como outr@s, mais críticas, se lhe referem. É bom não esquecermos quais são os interesses económicos que detém os meios de comunicação social para percebermos porque é que estas mulheres tem um acesso tão fácil à comunicação social: quando se trata de bater nas feministas é muito mais credível que esse trabalho sujo seja feito por mulheres do que por homens, estes têm um interesse óbvio na matéria, as mulheres, aparentemente, não, o que confere ao seu testemunho um valor inestimável.
[1]Jean Hardisty: Mobilinzing Ressentement. Beacon Press, Boston, 1999.
[2] Jean Hardisty, Obra citada.

domingo, 2 de maio de 2010

O papel do anti-feminismo nos nossos dias

Hoje, o anti-feminismo é a melhor estratégia para defender os interesses das classes dominantes que pretendem continuar a manter as hierarquias sociais, e, consequentemente, a sua hegemonia; classes que se inscrevem politicamente na direita conservadora e até na extrema-direita - intrinsecamente antidemocratas, mas que não o podem declarar abertamente porque deixou de ser politicamente correcto fazê-lo. Por contraponto, nos países em que a democracia está mais desenvolvida e consolidada como acontece em alguns países da Europa, particularmente, nos países nórdicos, o anti-feminismo é muito pouco expressivo, o que pode levar a supor que o maior desenvolvimento que esses países apresentam, com índices mais elevados de bem-estar e de justiça social, reflecte precisamente a situação mais equitativa existente entre mulheres e homens.

Mas vejamos por que é que o anti-feminismo é uma boa estratégia para defender os interesses da direita conservadora. O anti-feminismo apresenta enormes vantagens: encobre por um lado uma agenda escondida que não convém revelar – não convém mostrar abertamente que se pretendem manter privilégios de classe e hierarquias sociais; por outro lado, atrai para as causas da direita um número muito significativo de mulheres que nem sequer percebem que estão a fazer esse jogo, mas que serão soldados rasos perfeitos para empreender, se necessário, combates cujo protagonismo pode não convir aos homens; também exerce forte poder de atracção sobre inúmeros homens que, embora possam pertencer às classes desfavorecidas, vão continuar a ter alguma sensação de poder, quanto mais não seja, de poder sobre as mulheres em geral e sobre as suas mulheres em particular, o que não é de todo negligenciável.

É curioso constatar que não só as líderes como as anti-feministas em geral se enquadram politicamente na direita conservadora e votam as políticas propostas por essa direita, claro que são acompanhadas por muitos homens, mas seria de esperar que, enquanto mulheres, dela se distanciassem, o que não é o caso. Podemos exemplificar com a recente candidata republicana à vice-presidência dos Estados Unidos, à época Governadora do Alasca, mas também Miss Alaska em 1982, Sarah Palin. Sarah Palin representa uma mais-valia para um partido de direita porque, sendo uma mulher, uma mulher com algum protagonismo, uma mulher bonita, defende tudo aquilo que impede as mulheres de se afirmarem num mundo que ainda é de supremacia masculina.

Sobre ela escreveu em 2008, Gloria Steinem, quando estava no auge da campanha eleitoral norte-americana:

«Acredita que o criacionismo deve ser ensinado nas escolas públicas, mas não acredita no aquecimento global; opõe-se ao controlo de armamento, mas defende o controlo do governo sobre os ventres das mulheres; opõe-se à pesquisa com células tronco, mas aprova programas de «abstinência apenas» que aumentam o número de nascimentos indesejados, de doenças sexualmente transmissíveis e abortos; tentou usar os milhões pagos pelos contribuintes para um programa estatal de abate de lobos a partir de helicópteros, mas não gastou o dinheiro necessário para melhorar um sistema escolar estatal com o mais baixo nível de graduação liceal da nação. (…) Ela é Phyllis Schlafly, apenas mais nova.
(…) Diz que se uma das suas filhas ficasse grávida em resultado de violação ou incesto, cuidaria da criança. Não apenas se opõe à liberdade reprodutiva como um direito humano mas sugere que ela implica aborto, sem dizer que ela também protege o direito de se ter uma criança.

Mas não são só homens e mulheres de direita que são anti-feministas, para complicar ainda mais a cena, muitos homens, embora liberais de esquerda em termos políticos, comportam-se como os seus confrades de direita no que às mulheres e aos seus direitos concerne.
Por outro lado o anti-feminismo tem o apoio declarado dos sectores religiosos, sobretudo dos mais conservadores e como de longa data as mulheres se refugiaram na religião na esperança de encontrarem algum alívio para as injustiças que têm de suportar, é-lhes difícil não se deixarem manipular por um mecanismo ideológico que tem funcionado como um dos suportes do sistema de supremacia masculina, responsável pela opressão das mulheres.

Por tudo isto as coisas avançam muito devagar e estamos sempre em risco de sofrer retrocessos. Também por tudo isto, a consciencialização de homens e sobretudo de mulheres para estas questões é muito importante, embora seja uma tarefa extremamente difícil porque, entretanto, a desinformação faz o seu trabalho muito bem feito, tendo ao seu serviço recursos inumeráveis que vão dos púlpitos aos programas televisivos e uma vasta audiência sempre pronta a absorver as mensagens que importa fazer passar a fim de se manter o status quo.

sábado, 1 de maio de 2010

Anti-feminismo e interesses de classe

O anti-feminismo, que se organizou como contra-movimento na precisa altura em que as feministas começaram a apresentar reivindicações, muito particularmente, a reivindicação do direito de voto (a partir da segunda metade do século XIX), foi liderado por mulheres que pertenciam a uma elite: eram ricas, pertencentes a uma classe social privilegiada e próximas dos órgãos de poder por laços de família que, enquanto filhas, irmãs ou esposas, as ligavam a homens com enorme prestígio e influência.
As líderes anti-feministas, embora exaltassem o ideal da domesticidade, eram tudo menos domésticas, domésticas eram as inúmeras criadas e governantas que as acolitavam e lhes permitiam dedicar-se à vida activa na esfera pública. Graças ao facto de se movimentarem próximo ao poder, eram convidadas a desempenhar tarefas prestigiantes enquanto voluntárias de organizações que tinham a seu cargo a protecção e o respectivo enquadramento dos sectores mais desfavorecidos da população: os pobres, os doentes ou a população prisional, o que lhes fornecia a importante moldura moralista de pessoas preocupadas com os outros, todos muito boa gente, desde que não começassem a questionar um apoio social que aparecia como uma esmola e não como um direito. De resto as lideres anti-feministas, tal como os homens da classe dominante a que também pertenciam, não escondiam o seu desprezo pela «populaça» e o temor de que a expansão do voto a pessoas ignorantes comprometesse políticas que consideravam essenciais para o «engrandecimento» da pátria, leia-se, para a continuação do seu bem-estar e dos seus privilégios.
As anti-feministas percebiam, embora provavelmente de modo difuso, que a vitória do sufrágio poderia comprometer a sua posição, retirando-lhes protagonismo e o papel que desempenhavam na sociedade, com o decorrente prestígio de que gozavam, pois seria de supor que, a partir daí, muitas das tarefas a que voluntariamente se dedicavam, enquanto senhoras ricas com tempo disponível, passariam a ser desempenhadas noutro contexto por mulheres com formação universitária que as capacitasse para o exercício desses cargos. É esta a interpretação proposta por Susan E. Marshall, que me parece bastante plausível:
«A vitória do sufrágio legitimaria o emprego de mulheres e posterior expansão do Estado de bem-estar-social, suplantando a autoridade do voluntarismo social com um quadro de mulheres profissionais com credenciais universitárias, relevante experiência de trabalho e agendas políticas liberais. Em resumo, mais do que contrastar sufragistas esclarecidas com as suas equivocadas oponentes, eu defendo que as mulheres activistas de ambos os lados da questão do sufrágio perseguiam o seu próprio interesse político.»
Isto leva-me a concluir que não é correcto interpretar as anti-feministas, sobretudo as líderes, como mera correia de transmissão dos interesses masculinos, elas também estavam a defender os seus próprios interesses, por mais contestáveis que estes nos possam parecer.

Susan E. Marshall: Splintered Sisterhood, The University of Wisconsin Press.