quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Feminicídio é violência de género


No blog Género Com Classe, li hoje um texto sobre feminicídio, que dá conta do assassinato de uma menina de 13 anos por um homem de 39 e do modo mistificador como os meios de comunicação social abordaram o terrível crime. As considerações que se seguem foram inspiradas nesse artigo.

 Nos inúmeros crimes em que mulheres são assassinadas pelos companheiros, maridos, amantes ou namorados, é extremamente frequente ignorar-se completamente a dimensão sexista e machista, para só se chamar a atenção para a dimensão passional, claro que esta tem sempre também uma componente machista mas é devidamente escamoteada pelos órgãos de comunicação social.

O modo como a comunicação social trata este tipo de acontecimentos parece resultar, pelo menos em parte, do facto de se continuar a encarar com enorme naturalidade a violência contras as mulheres.

Em primeiro lugar, estes crimes são interpretados como crimes passionais, uma espécie de crimes de amor, de muito amor, de amor exagerado ou mal colocado, mas, em qualquer dos casos, de amor. Ocorre lembrar que os media deveriam denunciar que o sentimento de posse do homem e a redução da “amada” a um objeto que, como não lhe pode pertencer, também não irá pertencer a mais ninguém, definem claramente uma mentalidade sexista e misógina, mas não o fazem.
Em segundo lugar, a tendência, mesmo que sub-reptícia, é para culpabilizar a própria vítima; são sempre as mulheres que enlouquecem os homens e dão aso ao seu furor assassino, coitados deles que não conseguem resistir-lhes. São sempre elas as responsáveis pelo “ato tresloucado” que sofrem. Os homens ou estão deprimidos por terem perdido o emprego, ou são desculpabilizados porque, coitados, não suportam a rejeição feminina.

Considerar que a mulher assassinada tem culpas no cartório e que afinal mereceu o destino que o “amador” lhe reservou faz parte do imaginário patriarcal e de toda a cultura machista e sexista que lhe subjaz. Culpabilizar a vítima é um estereótipo tão antigo quanto a própria história bíblica do pecado original de Eva, a eterna tentadora, ajuramentada com o próprio diabo, encarnado na serpente.  Ora é exatamente este caldo cultural que devia ser denunciado e que é completamente escamoteado pelos órgãos de comunicação social.
Em terceiro lugar, nunca este tipo de crime é reconhecido como crime de violência de género, violência contra as mulheres pelo facto de serem mulheres. Assim os media em vez de aproveitarem a oportunidade para educar as pessoas, agem em sentido contrário, dando uma explicação falsa ou no mínimo enviesada, desculpando os criminosos e contribuindo para que se mantenha esta monstruosa realidade.

domingo, 21 de outubro de 2012

Esfera pública - um acesso indispensável mas problemático


 A participação das mulheres na esfera pública, seja em cargos políticos seja em lugares públicos de liderança ou sequer de relevo, ainda hoje é diminuta. Vários fatores explicam esta situação, nomeadamente as crenças culturais prevalecentes acerca dos papéis sexuais e os estereótipos vigentes bem como a situação concreta em que ainda decorre a vida das mulheres.

No mundo ocidental, pretende-se enraizar a crise de valores na mulher e no seu desempenho enquanto mãe e dona de casa. Jornalistas, comentadores e políticos atribuem os males da nação às mães que não cumpririam com as suas obrigações de educadoras e seriam assim responsáveis pela desintegração social. Curiosamente, as mulheres são praticamente excluídas desse debate. A solução para o problema residiria no retorno aos valores tradicionais. Tudo se passaria como se a esfera privada tivesse de ser o suporte da vida da nação, enquanto as decisões que importam a esta seriam tomadas apenas pelos elementos masculinos. Este ideal cultural com as mães tendo a seu cargo a educação dos filhos limita obviamente a participação das mulheres na vida pública, confinando-as à esfera privada da vida doméstica, e reforça o conceito de esfera pública como um domínio do masculino.

Quem defende o retorno aos valores tradicionais pretende que a esfera pública é neutra; mas tal neutralidade é muito discutível. O facto de a ela terem acesso, com uma escandalosa predominância, elementos do sexo masculino afeta de modo decisivo a sua natureza porque uma esfera pública, assim constituída, embora pretenda defender valores universais, acaba por se constituir porta-voz de valores que interessam fundamentalmente à parte da humanidade que representa.

 Por outro lado, no mundo moderno e na civilização ocidental, a autoridade masculina está em crise, não tanto por vitória das mulheres, mas mais pelo facto de os homens terem abusado da autoridade que detinham sobre os elementos da esfera privada: crianças molestadas pelos pais biológicos ou por membros do clero, mulheres ou amantes assassinadas, assédio sexual nos locais de trabalho, são façanhas que põem em cheque uma autoridade que durante muito tempo foi reconhecida, porque vista como protetora dos mais fracos. Muitas mulheres tiveram de lançar mão dos seus próprios recursos e começaram a perceber que a autoridade masculina afinal defendia interesses que as transcendiam; puderam assim denunciar a falácia existente: a esfera pública apenas pretensamente defende valores universais, de facto não pode deixar de reflectir os interesses da parte masculina da humanidade que maioritariamente a constitui.

Por tudo isto, hoje em dia, as mulheres trabalhadoras continuam a enfrentar discriminação, desencorajamento e falta de apoio para as lides domésticas. Em numerosas situações o sucesso profissional dos homens repousa numa retaguarda protegida por mulheres que tomam a seu cargo a tarefa de lhes criarem um ambiente favorável a esse sucesso, ora é exatamente o contrário o que se passa com as mulheres trabalhadoras.

 

 

 

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Ética sexual cristã


Os princípios fundamentais da ética sexual cristã foram elaborados por Tomás de Aquino (1224/ 1225-1274), doutor da Igreja, e ainda hoje fazem parte integrante da doutrina católica oficial.

Obreiro da síntese entre aristotelismo e cristianismo, Aquino vai tirar partido da imensa parafernália conceptual de Aristóteles para elaborar as suas teses. Na Suma Teológica formula uma teoria da sexualidade baseada no conceito aristotélico de Lei natural: Deus implantou nos humanos uma inclinação/instinto para o coito heterossexual e por isso os humanos quando se dedicam à atividade sexual estão a realizar o propósito divino e nada de mau há nisso porque o que é natural é bom, entre ser e dever ser não há rutura.

De acordo com a ontologia teleológica que perfilhou, a virtude de uma coisa consiste em respeitar a sua própria natureza, o seu fim ou telos. Todas as criaturas foram criadas para um determinado fim que está como que inscrito na sua própria natureza. Partindo da natureza de cada ser pode deduzir-se um princípio ético fundamental: para cada criatura o que é bom é cumprir o fim para que foi criada; aplicando o princípio teleológico à sexualidade, não vão restar dúvidas do que é eticamente aceitável e do que é eticamente condenável.

Estabelecida a relação causal entre sexo e reprodução, Tomás de Aquino vai só legitimar o sexo quando ele estiver aberto à reprodução. É natural que homens e mulheres se unam para garantir a preservação da espécie, por isso o único tipo de atividade sexual eticamente aceitável é a relação heterossexual porque é a que conduz à conceção de crianças. Segue-se que o sexo não procriativo, meramente recreativo, não é natural e por isso é um crime contra a natureza e também contra Deus que ordenou a própria natureza.

A finalidade, o telos, do sémen e da ejaculação é a “produção” de crianças e em última análise a perpetuação da espécie (na senda aristotélica ignora completamente o papel ativo da mulher na conceção). Quando a ejaculação não cumpre este propósito, a atividade sexual não é natural e é mesmo pecaminosa; com base nesta premissa, Tomas de Aquino execrava a masturbação, o sexo anal, o sexo oral e a bestialidade e, obviamente, o recurso a qualquer prática anticoncecional.

Para além dos crimes sexuais contra a natureza, reconhece os crimes sexuais contra os interesses da pessoa, tais como incesto, violação e  adultério (da mulher, claro). A violação, por exemplo, tem formalmente menor gravidade do que a masturbação ou a prática anticoncecional porque os pecados contra a natureza são pecados capitais enquanto os pecados contra os interesses da pessoa são apenas pecados veniais.

Parece chocante considerar mais grave a masturbação do que a violação; mas isto enquadra-se na lógica segundo a qual o que é natural é bom! A violação é um ato sexual procriativo, isso é o que mais importa, importa menos a violência e o abuso cometido contra uma pessoa, porque aí o sexo não contraria o desígnio divino!

Uma ética que pretende deduzir o dever ser do ser é filosoficamente irrelevante porque se limita a legitimar e a justificar o que entende ser a ordem natural das coisas; perverte o objetivo que deve presidir à reflexão ética que é o de contribuir para a construção de uma ordem social melhor, justa e virtuosa, qualitativamente diferente da que existe na natureza. Logo, parece plausível acreditar que, se se despende tanto trabalho e energia só para justificar o que existe na natureza, é porque aqueles que se entregam a essa tarefa têm privilégios que decorrem dessa ordem natural e não os querem perder.

Entendamo-nos, uma coisa é a ordem natural e outra a ordem social. A ordem natural é o dado, aquilo que à partida se apresenta; a ordem social é o construído; aquilo a que chegamos. O dado, em si mesmo, não é justo nem injusto, é neutro do ponto de vista ético, mas fazer dele a base para o justo e o injusto é pretender justificar desse modo uma ordem social que incorpora na sua estrutura aquilo que devia ser corrigido e contrariado.

A ética cristã, como outras éticas de matriz religiosa, ao pretender limitar o individuo à natureza, está a fazer aquilo que devia evitar a todo o custo, sob pena de entrar em contradição profunda, está a reduzir o ser humano à pura animalidade; por exemplo, ao pretender que uma mulher não controle a sua capacidade reprodutiva está a equipará-la a qualquer outra fêmea do reino animal, ora o que distinguiu o ser humano foi a capacidade de transcender a natureza e criar cultura.