segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

 Democracia liberal e capitalismo – gato escondido com o rabo de fora…

A democracia liberal na fase do neoliberalismo, que é aquela em que, no dealbar desta terceira década do seculo XXI, nos encontramos, atravessa uma crise profunda e sofre ataques persistentes de partidos de extrema direita aos quais, tudo leva a crer, vai ter de acabar por se render, aceitando-os pelo menos como pares na governação.

É certo que entre a extrema direita populista, conservadora e tradicionalista e a ideologia liberal que enforma as democracias liberais, as divergências são profundas, mas nada que não seja ultrapassável se, para salvar os dedos, for preciso perder os anéis.

As críticas que o populismo faz à democracia liberal são pertinentes e justas mas tem um pequeno senão é que falham o alvo: dirigidas aos políticos esquecem que estes são uma espécie de marionetes manipuladas pelas elites capitalistas de acordo com os interesses destas, ou corrompidas, quando tal se mostra necessário; e há formas muito subtis de corromper: lembremos como é frequente certas personagens politicas, findo o mandato, transitarem para altos cargos em instituições financeiras privadas, ou outro tipo de posições extremamente bem remunerados e nunca mais ouvimos falar delas, ficam a operar na sombra do sistema enquanto os políticos ocupam o palco.

Esta foi porventura a principal façanha do capitalismo - uma espécie de operação mãos limpas - conseguir que o ódio fique com os políticos, que as populações os detestem e ignorem que afinal a culpa das coisas correrem mal é do sistema capitalista, não dos políticos, não da democracia liberal; ou melhor, só é da democracia liberal porque esta se esquece de ser democracia e a sua liberalidade é tao simplesmente a que convém ao capitalismo: liberalidade no mercado, na ausência de regulamentação,  na não interferência do estado nos negócios, na isenção de impostos aos ricos com o justificativo de que essas medidas  não permitem o desenvolvimento da economia e a criação de empregos, etc., e a maioria das pessoas pura e simplesmente não percebe que está a ser ludibriada.

Seria de esperar que as esquerdas denunciassem esta situação, fizessem pelo menos pedagogia, e não slogans de que todos estamos cansados, mas até parece que elas próprias não têm a cultura política necessária para desmontar e desmistificar este processo.

Como o processo não é desmistificado, o populismo pode navegar a vontade, persuadindo amplos setores da sociedade de que as elites se estão nas tintas para o povo - e estão de facto - e de que o melhor será entregarem os seus destinos a líderes providenciais que pelo menos olharão paternalmente por eles. Desse modo não percebem que afinal o populismo - que vão apoiar - não combate o sistema capitalista, só combate a democracia da qual este pode prescindir ou mesmo ter necessidade de prescindir, atendendo às medidas predatórias que pretende impor ao trabalho para continuar o processo da chamada acumulação primitiva. O capitalismo pode em certo momento perceber a democracia como um empecilho de que será necessário desfazer-se, mesmo às custas de certas flores na lapela como as liberdades individuais, desde que não se toque no direito de propriedade e se mantenha uma farsa de igualdade política. Neste particular, o que se tem passado ultimamente no Brasil é sintomático desta situação bizarra, desta encruzilhada em que o capitalismo contemporâneo se encontra: pactuar com o fascismo ou enfrentar o descontentamento das populações, que pode ser violento.

Por outro lado, a extrema direita é nacionalista e o capitalismo é globalista, mas paradoxalmente o nacionalismo até ajuda porque cria um clima propício ao ódio entre nações, leva a ver o outro como inimigo porque diferente e assim quando há guerras a primeira vitima é a capacidade crítica com a ascensão do comportamento  de rebanho e os próprios trabalhores colocam toda a sua energia não contra os patrões, mas afinal, veja-se o absurdo, contra outros trabalhadores (de outras nações). De facto, tudo o que ajuda a criar bodes expiatórios, em simultâneo ajuda o povo a ignorar  os seus verdadeiros inimigos.

Ainda acontece que a extrema direita é tendencialmente conservadora nos valores e não vê com bons olhos a tolerância em relaçao a novas formas de família, a avanços nos direitos das mulheres, veja se, por exemplo, a reversão do direito ao aborto nos Estados Unidos e outras pérolas de misoginia disfarçadas com a defesa do valor vida, tao desprezado no concreto e nos mais variados contextos. .Mas paciência, não se pode ter tudo, sacrifique-se o que for preciso para se manter o essencial. 

Resumindo, pode dizer-se que aos analistas políticos, mesmo aos sectores da esquerda, tem escapado a perceção de que a crise da democracia liberal decorre da contradição entre democracia liberal e capitalismo que se encontra instalada desde os seus primórdios; assim, a seu tempo, foi possível detetar as debilidades da democracia e atacá-la, deixando-se todavia intacto o sistema capitalista a que esta desde sempre tem estado atrelada – quer dizer, neste caso, deita-se fora apenas a água do banho, o bebé continua bem protegido…

 

 




2 comentários:

  1. Muito interessante esta reflexão que aponta inequivocamente o dedo à preversidade do sistema capitalista que habilidosamente se esconde sob o sistema das democracias liberais nas quais as classes políticas são invariávelmente responsabilizadas , caíndo dobre estas o ónus dos descontentamentos e falhas no sistema democrático, em vez de se atacar na raiz do mal o sistema capitalista, chegando-se ao cúmulo de se ver trabalhadores contra trabalhadores na disputa por empregos, ludibriados por um sistema capitalista que os explora e que, para subsistir encontra formas de aliciamento na classe política cujos atores não raro transitam das suas funções políticas para altos cargos das áreas da Finança. Pena que as esquerdas não tenham a lucidez necessária para apontarem o dedo ao sistema capitalista e se perderem com pormenores de somenos importância, como foi referido na reflexão. Obrigada pelo contributo de enorme clareza.

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  2. Obrigada pelo comentário, que enriquece o texto inicial. É sempre gratificante encontrar leitores/as que não só captam cabalmente a mensagem como ainda a reelaboram numa nova forma sucinta e clara.

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