terça-feira, 10 de janeiro de 2023

 

Porque temos de combater o individualismo e a ideologia liberal que o sustenta?

A conceção liberal de indivíduo - individualismo - defendida pelo liberalismo e preponderante nas democracias liberais contemporâneas não investe numa ideia de sociedade como comunidade, como coletivo, no qual os indivíduos se encontram numa relação de suporte e dependência recíproca; bem pelo contrário, insiste em inculcar a ideia de que cada um é uma entidade autónoma, responsável por si mesmo, pelos seus sucessos e /ou fracassos.

Também ignora que nas sociedades humanas os indivíduos não existem em abstrato e isoladamente, mas surgem integrados em grupos e em extratos sociais diferentes, assim, por exemplo, homens e mulheres, brancos e minorias raciais, ricos e pobres, situam-se em ‘lugares diferentes’ e a distribuição de recursos e de poder entre tais grupos está muito longe de ser sequer aproximada. Tal omissão e mesmo negação leva a que só reconheça direitos aos indivíduos, não aos grupos sociais, e que conceba o papel do Estado como o de garantir a todos os indivíduos o reconhecimento e a proteção de direitos formais, como o direito à vida, à liberdade e à posse de propriedade.

É certo que o objetivo declarado do liberalismo é a construção de uma sociedade democrática; de uma sociedade de iguais, na qual todos tenham igualdade de direitos e de oportunidades. Mas, há uma premissa que deveria desde logo colocar:  se se quer construir uma sociedade de iguais, pelo menos no que respeita a direitos básicos, não se pode ignorar a situação de desvantagem em que, à partida, se encontram alguns grupos sociais relativamente a outros e portanto não se pode ignorar que para alem dos indivíduos existem grupos sociais e estruturas sociais que enquadram esses grupos e que por tal motivo não é suficiente a garantia de igualdade formal de direitos porque sabemos que esta, neste contexto, vai abrir a porta à existência e persistência de desigualdades de facto: nem todas as vidas serão igualmente protegidas; a liberdade será um luxo a que os pobres e os destituídos de poder não terão de facto acesso; a propriedade continuará nas mãos de um reduzido número de pessoas e permitirá que alguns explorem a maioria. Usando uma imagem interessante, poderia dizer-se que de acordo com a conceção liberal tanto o rico como o pobre podem dormir num banco de jardim - não é proibido - mas o primeiro preferirá com certeza a sua mansão, enquanto o segundo pode nem sequer ter dinheiro para comprar uma tenda.

Temos então de perceber que a montante da sociedade democrática, da sociedade de iguais, é preciso lançar as bases sólidas da igualdade – os alicerces. Esta, embora exija a igualdade formal de direitos fundamentais, exige também a criação de condições materiais e outras que permitam a passagem do formal ao factual; para garantir essa passagem é preciso aprender a tratar de forma igual o que é igual e de forma desigual o que é desigual, é preciso aceitar que não existem apenas indivíduos existem também grupos sociais e estruturas sociais e que estas condicionam diferentemente o horizonte dos possíveis de cada individuo.  

Assim, para construir uma sociedade democrática, uma sociedade de iguais, é preciso abandonar a conceção liberal de indivíduo porque existe contradição entre individualismo e democracia. A democracia é o governo do ‘demos’ (povo), é dar atenção a todos, não deixar cada um entregue a si mesmo e a uma espécie de lei da selva em que vence o melhor, típico de animais predadores, mas não de seres civilizados que percebem que viver num palácio quando ao redor só existem latrinas continua a ser viver numa lixeira.

Claro que os que vivem em palácios procuram abstrair-se das latrinas e encontrar justificações reconfortantes para a sua situação de ‘relativo’ privilégio; estas vão desde a negação: a igualdade não é possível logo nem vale a pena fazer um esforço para estabelecer bases igualitárias; não é também desejável porque de facto uns são mais brilhantes do que outros e merecem o pedestal em que se encontram porque a sua contribuição é maior. Procuram ainda, para evitar conflitos e invejas, convencer os outros de que podem vir a ter o que eles têm, se não forem preguiçosos, se aproveitarem as oportunidades, se… se... 

Temos de convir que de tolos não têm nada, só vistas curtas!

5 comentários:

  1. Belíssima e Necessária reflexão. Estamos vivendo a necessidade desta reflexão em todos os lugares, em todas as escolas, em todos os governos, em todas as residências. O individualismo, além de tudo, leva à perda de mim mesma. Leva à tentativa da louvação da "meritocracia" que não é outra possibilidade além de louvar quem tem condições financeiras e excluir de todo processo quem não tem, como se as sociedades fossem lugares puros e ingênuos, se. estruturas de dominação e opressão muito bem pensadas e colocadas.
    Obrigada pela reflexão :-)

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    1. Não tinha intenção de comentar anonimamente. Alguma questão na rede impediu o registro pelo Google.
      Ana Felippe, Brasil, Rio de Janeiro
      Abraço

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  2. De facto, Ana, penso que a maioria das pessoas ainda não parou para pensar nas gravíssimas implicações da mentalidade individualista que nos conseguiram inculcar por todos os meios. Curioso que mesmo perante as opções mais chocantes das pessoas, que deveriam nos levar a uma atitude questionadora, é frequente ouvir-se a expressão: e depois, é problema dela ou é problema dele, se gosta, tudo bem!
    Este é apenas um pormenor, mas é elucidativo,,, de como nos divorciamos dos problemas dos outros como se não tivéssemos nada a ver . . como diria Caim: eu não sou responsável pelo meu irmão!

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  3. Interessante e clara, como sempre, esta tua reflexão sobre o Liberalismo e a injustiça profunda que lhe está subjacente, ao procurar " endeusar" o indivíduo, não levando em conta que cada indivíduo não existe por si próprio mas está enquadrado em variadas estruturas sociais diferenciadas, umas mais previligiadas do que outras e, sendo assim, existe desde aí uma assimetria de condições que necessáriamente facilitam mais o sucesso aos indivíduos que pertencem a estruturas mais facilitadoras do mesmo. A exor
    tação ao empreendorismo, nesta realidade, tem até algo de preverso porque pretende tratar de maneira igual aquilo que é diferente à partida. Ainda sobre o empreendorismo recordo uma reflexão que fizeste há tempos em que chegaste à conclusão " por a+b" que, paradoxalmente, um empreendedor atual a quem de repente faltassem condições para prosseguir o seu negócio, ( deste um exemplo ligado à Uber e às plataformas digitais de que depende o empreendedor) ficaria eventualmente em piores circunstâncias do que os servos da gleba no tempo do Feudalismo.Na verdade encontrei muita lógica nessa reflexão.Por último, achei interessante a citação bíblica sobre o episódio de Caim e Abel que remete para a ideia do Nós Solidáro em detrimento do eu solitário encarnada por Caím. Obrigada pela reflexão. Espero não ter sido muito confusa. Abraço, Lena

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  4. Lena, obrigada pelo comentário lucido e enriquecedor do texto de partida. De facto, se estivermos com atenção, daremos conta de como o individualismo já entrou em nós sem percebemos as suas implicações destruidoras do cimento social. E é tudo muito apelativo porque é feito em nome da liberdade, mas de uma liberdade vazia de sentido, do poder fazer isto ou aquilo porque sim! Ignorando-se que nas coisas realmente importantes não nos é garantida nenhuma liberdade.

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