quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

 

     O que é o materialismo histórico e por que razão é uma ferramenta imprescindível de análise histórica.


O materialismo histórico é em simultâneo uma conceção sobre a história e um método de análise do processo histórico; ou seja, é uma teoria, mas também uma prática instrumental e os dois aspetos encontram-se intimamente imbricados.

Enquanto conceção sobre a história, o materialismo histórico assenta no pressuposto de que esta é um processo - o que supõe a ideia de continuidade e de movimento. Nesse sentido, a história – o modo como tem vindo a decorrer a vida da humanidade, não pode ser entendida como algo estático, nem os eventos podem ser isolados uns dos outros, sob pena de se tornarem incompreensíveis. Por outro lado, como estamos perante uma conceção materialista, supõe que o motor do processo histórico são as condições materiais de vida, pois são elas que estabelecem  as ideias que as pessoas têm acerca da realidade na qual se encontram imersas e essas condições em última analise estão na origem da mudança, explicando e determinando o sentido desta.

Por outro lado, enquanto método de análise do processo histórico, o materialismo histórico pressupõe que ao focar-se a análise sobre um determinado período ou evento não se olhe apenas para esse período, mas se procure conhecer e refletir sobre o que veio antes e o que veio depois – que sempre se considere o contexto pois só assim se pode entender o momento, a fase que se está a analisar; como refere Eric Hobsbawmy, este método:

“Implica que o passado não pode ser compreendido exclusivamente ou primariamente nos seus próprios termos: não apenas porque ele é parte de um processo histórico, mas também porque apenas esse processo histórico nos capacita a analisar e a compreender os aspetos desse processo e do passado.” Eric Hobsbawm, Marx and History

Partido destes pressupostos podemos dizer que o materialismo histórico se apresenta como um método de análise dos acontecimentos históricos que procura encontrar as causas e os efeitos dos fenómenos históricos, isto é, procura saber por que as coisas ocorrem desta ou daquela maneira, e o que a partir daí se pode esperar; é, pois, uma tentativa de aplicar a metodologia científica aos fenómenos sociais e humanos que encontra grandes dificuldades dada a especificidade e complexidade destes fenómenos. Todavia, apesar dessas limitações, como até a data não foi encontrada uma metodologia que o supere, o materialismo histórico é a ferramenta mais atual que temos para analisar a história, por isso, se queremos compreender o presente e prever o futuro não o podemos descurar e, decididamente não vale a pena consultar nenhuma bola de cristal ou atribuir as mudanças a putativas vontades, heroísmos ou maldades pessoais, ignorando todos aqueles fenómenos de natureza económica, geográfica e social que se encontram a montante.

terça-feira, 24 de janeiro de 2023

 

Populismo – o segredo do seu sucesso

Muitas pessoas, atrever-me-ia a falar na maioria, mesmo quando têm certo grau de educação académica, carecem de educação política; não estão habituadas a refletir em termos de política e quando se aventuram no campo não conseguem afastar-se do mais básico senso comum.

Claro que quanto mais toscas forem mais vulneráveis serão às mensagens populistas; todavia, é um erro pensar que as pessoas são populistas porque são ignorantes; bem ao contrário, podem ser cultas, ler livros, frequentar espetáculos, etc. tal não constitui vacina ou impedimento. Vemos este fenómeno na televisão, nos jornais, etc. e não é só porque os jornalistas são ‘a voz do dono’, é porque não foram habituados a pensar criticamente em política, desse modo, propendem a uma visão heroica da história, tem dificuldade em pensar em termos de geopolítica e não sinalizam as reais causas dos eventos.  Se isto se passa com os profissionais da comunicação social, imaginemos o que ocorrerá com os auditórios a que se dirigem.

Mais especificamente, julgo que a maior dificuldade para se entenderem os fenómenos políticos reside no facto de a grande maioria das pessoas, mesmo cultas, não dominarem os conceitos de sistema e de estrutura e tão pouco terem uma visão dialética do processo histórico; filosoficamente ainda se encontram, se assim podemos dizer, na fase designada de ‘metafisica’, que conduz a uma perceção da realidade como se esta fosse constituída por partes diferentes, separadas umas das outras; daí a grande dificuldade em perceberem, por exemplo, que as coisas podem correr mal não porque a ou b desejem o mal, mas pura e simplesmente porque a lógica do processo em que a ou b se encontram inseridos leva a que corram mal. Isto acontece porque as pessoas também não percebem que assim como o mundo dos fenómenos naturais é regido pelo determinismo, o mesmo acontece no mundo dos fenómenos sociais e históricos e que postas certas circunstâncias dar-se-ão necessariamente determinados efeitos; para que tal não acontecesse seria requerido intervir a nível da cadeia causal. Assim, enquanto não se entender a noção de sistema e como este funciona a nível da vida social, enquanto não se perceber que o determinismo é a regra do jogo, não se consegue alterar o jogo. Não há boas vontades que resistam, o voluntarismo e as boas intenções não passam disso mesmo, são irrelevantes para modificar o curso dos acontecimentos.

Daqui decorre que a vilã da história, a grande responsável pela adesão às teses populistas, é a falta de literacia política; as pessoas, não percebendo o que se está a passar, não identificando corretamente as causas dos eventos que as perturbam e prejudicam, aceitam as explicações simples e fáceis que o populismo lhes oferece. Podemos citar alguns casos mais flagrantes:

Por exemplo, a partir sobretudo da instauração do neoliberalismo, a pequena burguesia, constituída por proprietários de pequenos negócios e micro empresas, viu-se engolida pelas grandes empresas capitalistas, e então julga que o voto em partidos populistas vai servir para alguma coisa; não percebe que a culpa do seu fracasso não é da democracia liberal, mas do sistema capitalista que tem uma lógica interna potenciadora desse efeito, e, mais, não percebe que o populismo não só não ataca nem vai atacar o sistema como o vai fortalecer porque vai tornar mais difícil qualquer veleidade de resistência, dada a sua feição autoritária e violenta, o seu apreço peça autoridade e pela ordem.

Algo semelhante acontece com a classe trabalhadora que, despojada progressivamente de representação sindical, se percebe vítima da globalização e adere aos nacionalismos e a valores mais paroquiais, sem compreender que as causas da globalização com a deslocalização das empresas decorrem de um fenómeno tipicamente capitalista centrado na procura do maior lucro possível e na acumulação capitalista obtida, no caso, pelo baixo valor do custo do trabalho, não regulado e sujeito à lei da oferta e da procura.

Vejamos agora, para além da iliteracia política, que é uma espécie de pano de fundo, outros fatores mais específicos do sucesso dos movimentos populistas, começando por realçar que não há um fator isolado e único que o explique, mas vários, coadjuvantes, que preparam a ‘tempestade perfeita’.  De entre esses fatores identifico e destaco:

·        O ressentimento das pessoas relativamente às democracias liberais;

·        A dificuldade/incapacidade de se mobilizar uma luta credível contra o projeto democrático liberal capitalista;

·        Os novos media digitais e a sua potencialidade de divulgação e ampliação das mensagens populistas.

·        A conivência do capitalismo para com o populismo.

_ Muitas pessoas não se percebem verdadeiramente representadas pelas democracias liberais e, se pararmos um pouco para pensar, temos de reconhecer que essa perceção é correta dado que o processo eleitoral tal como está estruturado permite o acesso ao poder fundamentalmente aos representantes da burguesia, não do povo, e permite que a classe dominante se perpetue no poder, por isso são os interesses desta, não os do povo, que vão ser acautelados. A democracia promete igualdade politica, liberdade individual e representatividade politica, mas o que se constata é que tanto a igualdade como a liberdade são meramente formais e a representatividade falha o alvo, de onde decorre o entendimento, mais ou menos claro, de que a democracia não cumpriu o que prometera; dai a frustração, o ressentimento e o ódio de estimação aos políticos, sem se perceber que tal acontece porque numa sociedade de classes que tem de conviver com um sistema económico capitalista não há lugar para a democracia de facto, porque afinal a democracia liberal é liberal, mas não é democracia.

_  A defesa liberal do individualismo preparou o terreno para o desmonte que a cultura neoliberal fez das estruturas de resistência, nomeadamente da luta sindical, as pessoas encontram-se politicamente isoladas e impreparadas para contestar o que a cultura dominante lhes ‘vende’, e por isso mostram-se recetivas às mensagens populistas. Por outro lado, essa tarefa é facilitada pelo facto de não se apresentar nenhuma outra alternativa viável no horizonte dos possíveis dado a ideologia politica que se lhe opõe – o socialismo – ter perdido credibilidade com a queda da união soviética , que a esquerda nunca procurou explicar, metendo como que a cabeça na areia; daí poder dizer-se que há falta de comparência à luta por parte da esquerda política o que só pode ajudar na passagem da mensagem neoliberal e, no caso que estamos a apreciar, de propostas populistas . 

_ Um outro fator, de enorme importância, que pode explicar o sucesso dos movimentos populistas reside no facto dos novos media, os media digitais, centrados nas redes sociais, serem o veículo adequado à mensagem da extrema direita e à sua divulgação e mobilização para a ação. Ora, a esquerda não consegue ser competitiva neste campo, por razoes de vária ordem.

A esquerda, grosso modo, e passe a generalização, desprezou inicialmente e durante bom tempo os novos media, o que não deixa de ser intrigante porque, não tendo acesso aos media tradicionais, que também genericamente falando se encontram nas mãos do capital, deveria ter estado atenta às potencialidades democráticas deste novo instrumento de comunicação social. Todavia, fez mesmo gala em mostrar uma espécie de superioridade moral e intelectual afastando-se dele, já que recusa recorrer à violência verbal, à  retórica demagógica, ao insulto puro e duro, à ameaça física, etc., táticas de combate que campeiam nas redes sociais,  Por outro lado, este novo tipo de media ‘impõe’ mensagens curtas e imediatamente recebidas e respondidas que não dão espaço a que se construa uma argumentação e se derrotem verdades do senso comum, o que para a extrema direita é ouro sobre azul, mas, para a esquerda, desastroso. O populismo não argumenta, recorre à retórica como estratégia persuasiva e por isso tem tanto sucesso porque transmite a mensagem sob uma forma pregnante que entra bem no ouvido que se fixa facilmente, e do ponto de vista intelectual evita a complexidade – geradora de perturbação e perplexidade - porque põe tudo a preto e branco: ou é isto ou é aquilo.

Neste contexto, a tecnologia deu e continua a dar uma ajuda de peso à extrema direita e a esquerda não só acordou tarde para o fenómeno como ainda não encontrou estratégias criativas para tirar dele o melhor partido.

 

_   Por último, mas não menos importante, para explicar o sucesso do populismo está o facto de este contar com a cumplicidade tácita dos setores da direita e mesmo do chamado centro esquerda e isto acontece porque afinal o populismo não coloca em risco o sistema capitalista, bem pelo contrário.  O populismo assume a defesa do liberalismo económico, a famosa liberdade dos mercados – trave mestra do capitalismo -, que é a liberdade de a classe dominante decidir da vida económica de um país, base que condiciona outros patamares da vida social. É certo que politicamente, o populismo defende o nacionalismo, o que em certa medida parece entrar em contradição com a liberdade económica; é certo que em matéria de costumes é mesmo reacionário, colocando em risco as tão apregoadas liberdades individuais das democracia liberais capitalistas, mas a casa não vem abaixo por isso e se for preciso fazer sacrifícios para a manter, paciência - vão-se os anéis, fiquem os dedos.

 

Glossário retórico:

Populismo e capitalismo são farinha do mesmo saco.

O problema não é com a democracia; é com o capitalismo, estúpido!

O populismo aposta na iliteracia politica.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2023


 

 

O que é o populismo?

 

Quero começar por salientar que o populismo, tal como o entendo, é um movimento político que se situa no espetro da direita e que defende in extremis valores que a direita sempre defendeu. Rejeito, portanto, designar a extrema esquerda de populista porque o único aspeto que comunga com a direita é o princípio, em minha opinião, verdadeiro, da divisão da sociedade entre elite e povo, havendo no povo camadas intermédias mais ou menos próximas da elite, mas com a ressalva de que quem verdadeiramente decide é a elite, porque o diferencial de poder de que dispõe o permite. Sendo assim, abstenho-me de pronunciamentos morais, isto é, não considero que a elite é má e o povo bom, não embarco nessas categoriais concetuais dicotómicas que remetem para visões maniqueístas que não comungo.

Vamos então à caracterização do populismo (movimento de extrema direita) que apresenta duas nítidas dimensões, uma que o caracteriza enquanto estratégia de poder e outra enquanto projeto político, consubstanciado num conjunto de propostas políticas. Enquanto estratégia de poder visa mobilizar para a ação política um vasto setor das sociedades modernas que, por um ou outro motivo, não se reveem no liberalismo político e valores por este defendidos. Enquanto conjunto de propostas políticas apresenta-se como um movimento conservador e mesmo reacionário, no sentido de retorno a um passado que se julgava já morto e sepultado.

O populismo enquanto estratégia de poder visa a conquista do poder político, contando por um lado com o declínio das democracias liberais e por outro com o desconforto que o neoliberalismo provoca em vastas camadas da sociedade; para conseguir os seus objetivos e aliciar o maior número de pessoas para a causa recorre a práticas diferentes, mas convergentes:

(1) Fornece respostas simples para os problemas, logo respostas aparentemente exequíveis;

(2) Explora os sentimentos e emoções do auditório e não propriamente a sua razoabilidade, conseguindo desse modo mobilizá-lo mais facilmente para a ação;

(3) Apresenta líderes fortes e autoritários dotados de carisma com os quais as pessoas se podem identificar e que vão querer apoiar incondicionalmente.

Estes três aspetos encontram raízes na tendência das pessoas para cultivarem o que se chama de senso comum, para se deixarem dominar mais facilmente pelas paixões do que pela razão, e por preferirem seguir quem sabe mandar que inspira confiança e as exime da difícil tarefa de ‘tomarem o touro pelos cornos’, como soe dizer-se.  Podemos dar alguns exemplos que permitem compreender como funcionam estes ‘fundamentos’ da estratégia populista:

·        Explicar o declínio dos direitos da população nativa de um país atribuindo a culpa aos emigrantes e propondo a proibição da entrada destes no pais é dar uma resposta simples, aparentemente exequível – bastaria decretá-la – compreensível para as pessoas pela sua simplicidade e exequibilidade. O facto de se estar perante um problema muito mais complexo e perante uma pseudossolução, alem do mais desumana, passa ao lado, porque exigiria, para ser equacionada, tempo de desconstrução e conhecimento e compreensão das raízes económicas e sistémicas do problema.

·        Explorar a raiva justa das pessoas contra a corrupção a que os políticos cedem é fácil e apelativo porque a descarga emocional que esta proporciona diminui a pressão e o incómodo. Todavia, não permite compreender o problema encontrando a sua causa real.  Ora, a causa da corrupção reside na existência dos corruptores, e estes são os agentes económicos, por outras palavras, o sistema capitalista de que o sistema político é simples correia de transmissão. Os corruptos são o meio de que os corruptores se servem para atingirem os seus objetivos. Mas já todos reparamos que ninguém fala nos corruptores, todos apontam os dedos aos corruptos fornecendo-se mais uma vez uma explicação imediata e aparentemente verdadeira – os políticos sabem quem são; os agentes económico vivem numa espécie de penumbra da esfera pública.  

·        Por último, mas não menos importante, propor/apresentar líderes fortes, autoritários, dotados de carisma, convida à obediência, à aceitação da submissão, e consequentemente facilita a tarefa do líder político que não tem de se preocupar com os embaraços da democracia porque ele é o demos, identifica-se com o povo porque entre o líder e o povo não há diferença, há identidade e graças a este passe de magica o povo julga que não esta a ser marginalizado. Defende-se assim o autoritarismo depois de se terem rejeitado as autocracias, e de se ter defendido a democracia como regra do jogo político.

Vejamos agora o populismo enquanto projeto político. Neste aspeto o populismo apresenta propostas conservadoras e mesmo reacionárias; estas não agradam a elite liberal, é certo, mas esta pode ver-se obrigada a ‘engolir o sapo’, se não lhe restar outra opção, isto é, se, para manter os seus privilégios económicos, tiver de aceitar um regime político que será hoje uma nova versão do fascismo de meados do seculo passado. Vejamos então por que razão ou razões se justifica dizer que o populismo é conservador e reacionário.

O Populismo pretende restaurar, ou melhor, reconduzir para o campo do político os valores da religião, da nação e da família; “Deus, Pátria e Família” é a fórmula que resume de modo exemplar o conteúdo ideológico do populismo. Em termos retóricos esta fórmula é irrepreensível, apelativa para bom número de pessoas, e aqueles que dela suspeitam têm mais uma vez de se justificar, de ficar na defensiva, numa posição ingrata e incómoda. Mas vamos lá, é preciso desvelar o que ela oculta, o que não diz, mas está subentendido:

·        Em relaçao a Deus, ou seja, à religião, o que não se diz é que se pretende impor a todos aquilo em que alguns acreditam, da maneira como acreditam, com a sua interpretação muito própria e especifica dos mandamentos divinos e as consequências a nível social que daí decorrem. Quer dizer, não se trata de conceder aos indivíduos liberdade de pensamento e expressão no campo religioso porque esta já lhes é reconhecida pelo liberalismo e pelas democracias liberais, trata-se de voltar ao passado, a um passado que se supunha derrotado, que obrigava a uma só fé e que não admitia sequer a ausência de fé, ou seja, o ateísmo. Trata-se de abolir o estado laico e de inscrever a religião no âmago do político, tal como em tempos passado, quando as monarquias e poder eclesiástico se reforçavam e defendiam reciprocamente. Assim, enquanto o liberalismo e a democracia liberal instituíram o estado laico e a tolerância em relaçao aos credos religiosos diferentes de diferentes indivíduos, o populismo revela profunda intolerância em relaçao a outras religiões que não a dominante e pretende que a doutrina e a moral religiosa enformem a estrutura política.

·        Quanto à “Pátria” o reforço do sentimento nacionalista e a exaltação da nação, numa época em que esta, embora ainda conserve algum sentido pelos laços de pertença que fornece, perdeu muita da sua importância, em função da globalização e internacionalização da economia - fenómenos inevitáveis a menos que um cataclismo anule as recentes aquisições tecnológicas - revelam o conservadorismo que habita o projeto populista, não porque haja alguma coisa errada com o sentimento de pertença a uma nação, a um território, mas porque este sentimento, se exacerbado, propende a fazer esquecer a solidariedade que é necessário construir entre as nações a fim de minorar os conflitos bélicos que dele se alimentam e sempre estão à espreita.

·        Também não se diz, nesta fórmula simpática e apelativa, que a família aqui defendida é a família heterossexual e patriarcal com exclusão de outras formas de organização familiar. Ora, como sabemos, a família tradicional tem vindo a sofrer alterações no sentido de suavizar a carga patriarcal que resiste em perdurar e, alem disso, está a ser confrontada com outros modos de organização familiar. Face a estes desenvolvimentos, é reconhecido o desagrado e o ressentimento de muitos setores da sociedade, em primeiro lugar de muitos homens, que sentem perder privilégios ancestrais, mas também de populações com formação religiosa impregnada nas suas mentes, que embora pretendam aceitar as mudanças, no fundo de si mesmas, são ainda presa de crenças e de preconceitos nas quais estas não se encaixam.

Resumindo, existe um campo fértil para a difusão da ideologia populista que prega “Deus Pátria e Família”, mas que esconde:

 (1) a intolerância religiosa contra outros credos e também contra a ausência de credo;

(2) um nacionalismo fundamentado no ódio e na aversão ao que é diferente;

 (3) um apego forte à família patriarcal e à ordem e hierarquia nela implícitas.

Numa palavra, o populismo recentra valores que a contemporaneidade tem vindo progressivamente a desmontar. Por isso se pode dizer que afinal o populismo é um anacronismo; é a recusa da modernidade que inspirou o liberalismo, apenas com uma exceção, mas uma exceção de peso, que pode explicar o seu sucesso: a aceitação do liberalismo económico, indispensável ao funcionamento do capitalismo. Quer dizer o populismo não põe em causa o sistema capitalista e o tipo de liberdade que este exige e pressupõe – este é o segredo do seu sucesso, isto é, da sua aceitação pelos setores sociais privilegiados. Melhor ainda, os seus valores afinal alinham com os valores essenciais do capitalismo: hierarquia em vez de igualdade; dominação de uns e submissão de outros; liberdade dos mercados, isto é, liberdade para aqueles que controlam a economia. 

O populismo aparece assim como a verdadeira face política do capitalismo quando a máscara da democracia liberal não mais se sustenta. Resta saber se as contradições que suscita não se vão continuar a manifestar, agora em outros campos e de sentido diferente, e se o populismo não será de facto e de direito a última fase do capitalismo – a face feia, mas necessária que o capitalismo tem hoje de assumir para se sustentar.

Glossário retórico:

O populismo é a política da pedra lascada;

O populismo é um anacronismo;

O Populismo - é a última tábua de salvação do capitalismo - a face feia do capitalismo.

 


 


sábado, 14 de janeiro de 2023

 

Populismo e corrupção

Uma das bandeiras atuais dos partidos populistas é a da luta contra a corrupção; mas mais uma vez, como é sua caraterística dominante, o populismo dá uma resposta simples a um problema complexo: advoga um estado forte que, de uma penada, elimine os políticos corruptos e com eles, claro, a democracia liberal, instalando um governo autocrático que reponha a ordem e a autoridade. Esta resposta é simples porque não compreende, ou não quer compreender, a complexidade do problema; contudo a maioria das pessoas, precisamente porque é simples, aceita-a sem contestação e sem escrutínio.

O populismo não compreende desde logo que existe contradição entre o sistema político e o sistema económico, isto é, entre a democracia liberal e o capitalismo. De facto, enquanto a democracia propõe igualdade de participação política e de representação, o capitalismo está nos antípodas porque o modo de produção capitalista está longe de ser democrático: quem decide o que produzir e como produzir é o dono do capital não são as pessoas que trabalham para o servir e que não são tidas nem achadas, nem tem qualquer poder decisório. Por exemplo, se ele entender deslocalizar a empresa, os trabalhadores não terão qualquer hipótese de anular tal decisão por mais gravosa que esta seja para as suas vidas.

Todavia, malgrado esta contradição entre democracia e capitalismo, os donos do capital precisam do Estado para este lhes criar as condições mais favoráveis e por isso precisam de alguma maneira de dominar o aparelho politico; de notar que este, em principio, nas democracias liberais,  já lhes é favorável porque afinal os políticos na sua maioria são filhos das burguesias nacionais e defendem os interesses destas, desse modo estão recetivos à adoção de medidas que favoreçam o sistema económico vigente. Quando tal não sucede espontaneamente, entram as luvas, os subornos, os favores, as placas giratórias entre a esfera política e as empresas, etc., numa palavra, entra a corrupção.

No caso que estamos a abordar, o populismo pretende que a resposta/solução do problema da corrupção consiste em punir/eliminar os corruptos, uma resposta circular: há corrupção porque há corruptos, se eliminarmos os corruptos, eliminamos a corrupção. Reparem na falácia, é como dizer: há pobreza porque há pobres, logo a solução da pobreza está encontrada se eliminarmos os pobres.

Esta resposta populista ignora a verdadeira causa do fenómeno e desse modo não se propondo eliminar a causa não vai eliminar o efeito. Ora a causa da corrupção não são os políticos, é o sistema económico e os seus agentes diretos que exigem que as medidas políticas sejam favoráveis aos seus interesses económicos; os corruptos são simplesmente o meio de que os corruptores se servem para atingir os seus objetivos.

Assim, se um partido populista vencer eleições e for governo, o mais certo é que vá subordinar as suas políticas aos interesses do capital; se não o fizer, terá igualmente corruptos no seu interior ou então terá os dias contados. Isto porque, qualquer que seja o sistema político, o capitalismo tem de manipular a governação, seja através da própria representação ou da sua cooptação por meio  do suborno, vulgo corrupção.

 

terça-feira, 10 de janeiro de 2023

 

Porque temos de combater o individualismo e a ideologia liberal que o sustenta?

A conceção liberal de indivíduo - individualismo - defendida pelo liberalismo e preponderante nas democracias liberais contemporâneas não investe numa ideia de sociedade como comunidade, como coletivo, no qual os indivíduos se encontram numa relação de suporte e dependência recíproca; bem pelo contrário, insiste em inculcar a ideia de que cada um é uma entidade autónoma, responsável por si mesmo, pelos seus sucessos e /ou fracassos.

Também ignora que nas sociedades humanas os indivíduos não existem em abstrato e isoladamente, mas surgem integrados em grupos e em extratos sociais diferentes, assim, por exemplo, homens e mulheres, brancos e minorias raciais, ricos e pobres, situam-se em ‘lugares diferentes’ e a distribuição de recursos e de poder entre tais grupos está muito longe de ser sequer aproximada. Tal omissão e mesmo negação leva a que só reconheça direitos aos indivíduos, não aos grupos sociais, e que conceba o papel do Estado como o de garantir a todos os indivíduos o reconhecimento e a proteção de direitos formais, como o direito à vida, à liberdade e à posse de propriedade.

É certo que o objetivo declarado do liberalismo é a construção de uma sociedade democrática; de uma sociedade de iguais, na qual todos tenham igualdade de direitos e de oportunidades. Mas, há uma premissa que deveria desde logo colocar:  se se quer construir uma sociedade de iguais, pelo menos no que respeita a direitos básicos, não se pode ignorar a situação de desvantagem em que, à partida, se encontram alguns grupos sociais relativamente a outros e portanto não se pode ignorar que para alem dos indivíduos existem grupos sociais e estruturas sociais que enquadram esses grupos e que por tal motivo não é suficiente a garantia de igualdade formal de direitos porque sabemos que esta, neste contexto, vai abrir a porta à existência e persistência de desigualdades de facto: nem todas as vidas serão igualmente protegidas; a liberdade será um luxo a que os pobres e os destituídos de poder não terão de facto acesso; a propriedade continuará nas mãos de um reduzido número de pessoas e permitirá que alguns explorem a maioria. Usando uma imagem interessante, poderia dizer-se que de acordo com a conceção liberal tanto o rico como o pobre podem dormir num banco de jardim - não é proibido - mas o primeiro preferirá com certeza a sua mansão, enquanto o segundo pode nem sequer ter dinheiro para comprar uma tenda.

Temos então de perceber que a montante da sociedade democrática, da sociedade de iguais, é preciso lançar as bases sólidas da igualdade – os alicerces. Esta, embora exija a igualdade formal de direitos fundamentais, exige também a criação de condições materiais e outras que permitam a passagem do formal ao factual; para garantir essa passagem é preciso aprender a tratar de forma igual o que é igual e de forma desigual o que é desigual, é preciso aceitar que não existem apenas indivíduos existem também grupos sociais e estruturas sociais e que estas condicionam diferentemente o horizonte dos possíveis de cada individuo.  

Assim, para construir uma sociedade democrática, uma sociedade de iguais, é preciso abandonar a conceção liberal de indivíduo porque existe contradição entre individualismo e democracia. A democracia é o governo do ‘demos’ (povo), é dar atenção a todos, não deixar cada um entregue a si mesmo e a uma espécie de lei da selva em que vence o melhor, típico de animais predadores, mas não de seres civilizados que percebem que viver num palácio quando ao redor só existem latrinas continua a ser viver numa lixeira.

Claro que os que vivem em palácios procuram abstrair-se das latrinas e encontrar justificações reconfortantes para a sua situação de ‘relativo’ privilégio; estas vão desde a negação: a igualdade não é possível logo nem vale a pena fazer um esforço para estabelecer bases igualitárias; não é também desejável porque de facto uns são mais brilhantes do que outros e merecem o pedestal em que se encontram porque a sua contribuição é maior. Procuram ainda, para evitar conflitos e invejas, convencer os outros de que podem vir a ter o que eles têm, se não forem preguiçosos, se aproveitarem as oportunidades, se… se... 

Temos de convir que de tolos não têm nada, só vistas curtas!

segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

 Democracia liberal e capitalismo – gato escondido com o rabo de fora…

A democracia liberal na fase do neoliberalismo, que é aquela em que, no dealbar desta terceira década do seculo XXI, nos encontramos, atravessa uma crise profunda e sofre ataques persistentes de partidos de extrema direita aos quais, tudo leva a crer, vai ter de acabar por se render, aceitando-os pelo menos como pares na governação.

É certo que entre a extrema direita populista, conservadora e tradicionalista e a ideologia liberal que enforma as democracias liberais, as divergências são profundas, mas nada que não seja ultrapassável se, para salvar os dedos, for preciso perder os anéis.

As críticas que o populismo faz à democracia liberal são pertinentes e justas mas tem um pequeno senão é que falham o alvo: dirigidas aos políticos esquecem que estes são uma espécie de marionetes manipuladas pelas elites capitalistas de acordo com os interesses destas, ou corrompidas, quando tal se mostra necessário; e há formas muito subtis de corromper: lembremos como é frequente certas personagens politicas, findo o mandato, transitarem para altos cargos em instituições financeiras privadas, ou outro tipo de posições extremamente bem remunerados e nunca mais ouvimos falar delas, ficam a operar na sombra do sistema enquanto os políticos ocupam o palco.

Esta foi porventura a principal façanha do capitalismo - uma espécie de operação mãos limpas - conseguir que o ódio fique com os políticos, que as populações os detestem e ignorem que afinal a culpa das coisas correrem mal é do sistema capitalista, não dos políticos, não da democracia liberal; ou melhor, só é da democracia liberal porque esta se esquece de ser democracia e a sua liberalidade é tao simplesmente a que convém ao capitalismo: liberalidade no mercado, na ausência de regulamentação,  na não interferência do estado nos negócios, na isenção de impostos aos ricos com o justificativo de que essas medidas  não permitem o desenvolvimento da economia e a criação de empregos, etc., e a maioria das pessoas pura e simplesmente não percebe que está a ser ludibriada.

Seria de esperar que as esquerdas denunciassem esta situação, fizessem pelo menos pedagogia, e não slogans de que todos estamos cansados, mas até parece que elas próprias não têm a cultura política necessária para desmontar e desmistificar este processo.

Como o processo não é desmistificado, o populismo pode navegar a vontade, persuadindo amplos setores da sociedade de que as elites se estão nas tintas para o povo - e estão de facto - e de que o melhor será entregarem os seus destinos a líderes providenciais que pelo menos olharão paternalmente por eles. Desse modo não percebem que afinal o populismo - que vão apoiar - não combate o sistema capitalista, só combate a democracia da qual este pode prescindir ou mesmo ter necessidade de prescindir, atendendo às medidas predatórias que pretende impor ao trabalho para continuar o processo da chamada acumulação primitiva. O capitalismo pode em certo momento perceber a democracia como um empecilho de que será necessário desfazer-se, mesmo às custas de certas flores na lapela como as liberdades individuais, desde que não se toque no direito de propriedade e se mantenha uma farsa de igualdade política. Neste particular, o que se tem passado ultimamente no Brasil é sintomático desta situação bizarra, desta encruzilhada em que o capitalismo contemporâneo se encontra: pactuar com o fascismo ou enfrentar o descontentamento das populações, que pode ser violento.

Por outro lado, a extrema direita é nacionalista e o capitalismo é globalista, mas paradoxalmente o nacionalismo até ajuda porque cria um clima propício ao ódio entre nações, leva a ver o outro como inimigo porque diferente e assim quando há guerras a primeira vitima é a capacidade crítica com a ascensão do comportamento  de rebanho e os próprios trabalhores colocam toda a sua energia não contra os patrões, mas afinal, veja-se o absurdo, contra outros trabalhadores (de outras nações). De facto, tudo o que ajuda a criar bodes expiatórios, em simultâneo ajuda o povo a ignorar  os seus verdadeiros inimigos.

Ainda acontece que a extrema direita é tendencialmente conservadora nos valores e não vê com bons olhos a tolerância em relaçao a novas formas de família, a avanços nos direitos das mulheres, veja se, por exemplo, a reversão do direito ao aborto nos Estados Unidos e outras pérolas de misoginia disfarçadas com a defesa do valor vida, tao desprezado no concreto e nos mais variados contextos. .Mas paciência, não se pode ter tudo, sacrifique-se o que for preciso para se manter o essencial. 

Resumindo, pode dizer-se que aos analistas políticos, mesmo aos sectores da esquerda, tem escapado a perceção de que a crise da democracia liberal decorre da contradição entre democracia liberal e capitalismo que se encontra instalada desde os seus primórdios; assim, a seu tempo, foi possível detetar as debilidades da democracia e atacá-la, deixando-se todavia intacto o sistema capitalista a que esta desde sempre tem estado atrelada – quer dizer, neste caso, deita-se fora apenas a água do banho, o bebé continua bem protegido…

 

 




domingo, 11 de dezembro de 2022

 

VAMOS FALAR DE REDES SOCIAIS!

As redes sociais são uma forma nova de comunicação social que surgiu e se desenvolveu com a internet e que, pelo menos aparentemente, é democrática: todo e qualquer um pode entrar e pronunciar-se sobre o assunto/tema que está sendo debatido. Têm ainda a particularidade de não pressupor mediatização, isto é, as pessoas entram diretamente e podem comunicar – pôr em comum - o que bem entenderem.

Utopia ou distopia, eis a questão! Para quem participa, pelo menos para muitos, esta nova forma de comunicação significa a realização de uma espécie de utopia, tanto mais surpreendente quanto nunca se imaginaram com tal possibilidade e o seu protagonismo dá-lhes uma sensação de poder que nunca tiveram, ficando ainda com a convicção de que aqui consegue eliminar-se a função eventualmente manipuladora do mediador.

Todavia, se na comunicação tradicional mediatizada se corre o risco de se ser manipulado pelos ‘donos’ do ‘meio’, aqui, correm-se outros riscos porventura ainda mais embrutecedores e perigosos Citemos alguns.

  • Um dos riscos deste tipo novo de comunicação consiste na proliferação de notícias falsas e na dificuldade a partir daí de se distinguir o verdadeiro do falso.
  • Um outro, muito referido porque equivale a uma enorme multiplicidade de experiências reais, está na proliferação de falas de ódio, que afastam muitas pessoas destas verdadeiras arenas dos novos tempos com todas as consequências negativas para a lucidez do debate.
  • Um terceiro, que não costuma ser devidamente denunciado consiste na ausência de discurso argumentativo e de apresentação de factos que o corroborem, o que representa um empobrecimento real da comunicação na qual o argumento é substituído pela falácia ad hominem quando não pelo insulto mais soez.

Tudo isto contribui para que muitas pessoas se recusem terminantemente a participar nesta nova forma de comunicação porque o chorrilho de asneiras e insultos flui com tal velocidade que é de facto difícil baixar ao nível e não ficar seriamente incomodado. Esta reação embora compreensível é contraproducente porque quanto mais acentuada for a ausência de pessoas com conhecimento e capacidade argumentativa mais perigosa se torna esta nova forma de comunicação pois aqui, muito ‘democraticamente’, todos são emissores e recetores em simultâneo por mais incompetentes que se revelem.

Defender que há democracia porque todos podem participar, porque há liberdade de expressão de pensamento é não perceber que a democracia é muito mais exigente: tem de pressupor informação e conhecimento, boa fé, vontade de ouvir e de entender o ponto de vista do outro; saber defender aquilo que se acredita corresponder a verdade, saber dialogar que é a antítese de insultar. Ora nada disto parece estar presente nas redes sociais. Diria mesmo que este novo tipo de comunicação social não só não representa qualquer progresso em relaçao aos media que conhecemos como traz perigos acrescidos para a própria democracia e suas instituições. Se entendermos a democracia como um procedimento que visa chegar a decisões que vão ao encontro dos interesses razoáveis – dotados de razoabilidade – do maior número de pessoas, consenso esse obtido através do diálogo e da argumentação, na qual se espera que vença a posição que apresenta melhores argumentos, que vença quem convence, então temos de concluir que tal não será alcançado através das redes sociais.

Ficam-me muitas duvidas, mas uma é particularmente perturbadora: isto acontece em função da natureza deste nova tecnologia de comunicação ou porque ela é intencionalmente construída para produzir estes efeitos?

P.S Como se pode deduzir, o meu conhecimento do tema é nitidamente insuficiente, assim convido quem ler e puder a enviar textos que acrescentem informação e o esclareçam melhor; poderei publicá-los no blog, identificando os autores.

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

 

Nós e o neoliberalismo

O neoliberalismo através de uma verdadeira revolução silenciosa com a qual conseguiu a proeza de modificar a linguagem e o pensamento das pessoas tornou-se o senso comum da nossa época, isto é, o modo de ser e de pensar que a maioria das pessoas assume como correto, sem mais indagações.

Desse modo, todos nós, se não fizermos um escrutínio crítico, contante, difícil, para o qual muitas vezes nos falta tempo e competência, assumimos uma forma neoliberal de pensar o mundo e a vida. Vemos tudo e avaliamos tudo em termos neoliberais.

Como foi isto possível?! Ainda não percebi completamente. Bem sei que a elite neoliberal tem os cordelinhos nas mãos, domina a informação, as técnicas, a comunicação social, e agora, o que é extremamente importante e muito poucos perceberam (estou a pensar na esquerda que está convencida que já sabe o que precisa de saber) domina as redes sociais, preocupando-se em construir perfis falsos para disseminar o que lhe convém e para orientar a opinião pública no mesmo sentido.

Além disso, dá-nos brinquedos para nos distrairmos: telemóveis cada vez mais sofisticados, programas recreativos que nos embrutecem, pornografia e sexo virtual e, entretanto, vai navegando, comendo-nos as papas na cabeça.

A coisa é toda muito bem feita e, embora lamente, tenho de reconhecer que a elite neoliberal se revela muito mais inteligente do que a esquerda que se julga bem-pensante. Um exemplo, qual o cidadão comum que alguma vez pensou que ao recorrer à Uber para se fazer transportar aqui ou ali estava afinal a minar os interesses dos trabalhadores e alimentar o sistema neoliberal, sistema esse que até é capaz de criticar em conversas com os amigos? E quem, mesmo tendo já adquirido essa perceção, é capaz de resistir a um serviço mais barato?

A questão é mesmo bicuda, porque, como escreveu Pierre Bourdieu, quando o dominado assimila o quadro de valores do dominante deixa de ter instrumentos para se revoltar contra a dominação e torna-se cúmplice desta.

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

 

Imperialismo e Capitalismo combinam muito bem

Os Estados Unidos são o símbolo maior do capitalismo. O capitalismo tende a ser imperialista. Se pelo caminho, um país capitalista sentir necessidade de eliminar outro ou outros, não hesitará em fazê-lo. Aqui não há solidariedade que seria até contranatura já que ao fim ao cabo aplica-se a nível dos estados o princípio da concorrência e da competitividade que se aplica a nível dos indivíduos: perecem os mais fracos ficam os melhores e há sempre um que é melhor que os outros.

O capitalismo é imperialista porque só assim pode continuar o processo de acumulação de recursos que lhe é inerente - que faz parte do seu ADN. Os recursos não são inesgotáveis e os defensores do sistema já o devem ter percebido, mas como a ganância predomina, o que percebem com mais força é que, independentemente das consequências, enquanto houver recursos, a (sua) festa deve continuar. Quem vier por último que feche a porta.

Para a festa do capitalismo triunfante continuar, as guerras também têm de ser promovidas até porque o complexo industrial militar que foi preciso construir tem de dar vasão ao produto fabricado, quando não, por falta de consumidores, entra-se numa crise do próprio sistema pois este deixa de ser rentável. Por outras palavras, para acumular recursos é preciso espoliar outros povos, para o conseguir é preciso armamento poderoso, este uma vez produzido tem de ser vendido, se não for cria-se um problema extra não menos grave. Por isso, o sistema retroalimenta-se.

Convém, todavia, perceber que na base disto tudo está a psicologia ou melhor o psiquismo humano. Enquanto as pessoas se virem como inimigas umas das outras, se sentirem ameaçadas pelo inimigo humano próximo ou mesmo distante - e hoje mais do que nunca a distancia é relativa - vai ser muito complicado resolver o problema. Por isso o capitalismo favorece o individualismo, porque este isola as pessoas e dificulta que se unam para derrubar o sistema; mas também não é refratário aos nacionalismos, porque estes acicatam povos contra povos e são imprescindíveis para que as criaturas humanas se empolguem estupidamente e apoiem e participem nas ações bélicas.

A resposta encontra-se numa diferente organização económica e numa organização social e política que reconhecendo este problema crie condições para o resolver, mas para isso é preciso por um lado desestimular o individualismo e por outro os nacionalismos e ainda as alianças ofensivas, seria bom que retomássemos o velho slogan da esquerda dos anos 70: NEM NATO NEM PACTO DE VARSOVIA que pode ser atualizado: PACTO DE VARSÓVIA JÁ FOI, NATO TEM DE LHE IR FAZER COMPANHIA

Por outro lado, é preciso perceber que a democracia liberal ocidental funciona como uma fachada para defender interesses obscuros e para justificar crimes hediondos frequentemente cometidos em seu nome como aconteceu na guerra do Iraque na qual os Estados Unidos alegavam que o objetivo era tornar este um pais democrático. O resultado está à vista.

Seria bom que nos perguntássemos como é que um país que diz defender a liberdade acima de tudo quer obrigar outros países e outros povos a adotarem o seu regime político, ainda por cima à lei da bala? Ninguém vê a contradição? Ninguém vê que essa justificação para a guerra é uma fachada para esconder interesses que não quer revelar?  

Extrapolando para atual situação de guerra na Ucrânia, desvelemos os mecanismos ideológicos postos em ação:

- O Putin é um autocrata, a autocracia é o contrário da democracia. - A democracia é boa, a autocracia é má;

- Então vamos fazer guerra a um pais que tem um regime mau para que ele adote um regime bom;

Mas, como houve já quem tivesse denunciado este esquema, podemos ser ainda mais espertos e fazer outra coisa:

- Criar condições tais ao Putin e ao país que ele lidera de modo a conseguir que seja este a tomar a iniciativa de invadir o outro;

- Aí ninguém nos pode acusar, pois nós apenas fomos em auxílio do outro, vulnerável face a autocrática Rússia.

- Logo nos só queremos libertar a Ucrânia e também a Rússia, não queremos mais nada, o que nos move é a liberdade e os nobres valores da civilização ocidental que é preciso preservar a qualquer custo – Maquiavel no seu melhor!

A partir daqui, é plausível concluir que a politica é uma espécie de biombo com o objetivo de esconder que o que está em jogo é a economia, ou melhor interesses económicos e rivalidades entre potencias económicas capitalistas, bem como a necessidade de escoar os produtos do complexo industrial militar norte americano e de continuar o processo de acumulação capitalista não já dentro do próprio pais – que já deu o que tinha a dar  - mas permitindo aos capitalistas com mais força do seu lado apoderarem-se dos recursos de outros povos e países, neste caso e para já da Rússia, depois logo se verá.

O que é de realçar aqui é que toda a guerra económica é reduzida à guerra política: quer-se fazer crer que o que está em causa é a democracia a defender contra a autocracia. Isto é falso, mas é uma mentira muito conveniente porque atrai a simpatia das pessoas e torna-as recetivas à guerra inadiável e aos sacríficos que esta impõe e as pessoas comem isto tudo e anda pedem mais porque o complexo mediático corporativo também funciona no seu melhor.

sexta-feira, 12 de agosto de 2022

 

Capitalismo das plataformas ou tecno feudalismo?!

Assistimos hoje, sob o signo do neoliberalismo, a um novo modelo de capitalismo, o capitalismo das plataformas, que alguns batizaram de tecno feudalismo. Para percebermos este novo modelo, suas implicações e seu retrocesso, ou não, a aspetos determinantes da economia feudal, convém recordarmos alguns pontos básicos.  

No feudalismo (Idade Média) a expropriação dos excedentes produzidos era conseguida por meios políticos: havia por um lado os senhores feudais, proprietários da terra que não trabalhavam (politicamente garantidos e reconhecidos) e os servos que nela viviam, obrigados a trabalhar e a entregar ao senhor parte do que produziam. Neste período histórico o Estado era fraco e coexistia com uma enorme fragmentação do poder político.

No capitalismo (capitalismo industrial Idade Moderna) a expropriação passa a decorrer simplesmente na esfera económica, sem interferência política: o assalariado (ganha um salário, é trabalhador livre, aceita, consente no contrato) produz e é o capitalista, dono dos meios de produção e dos recursos produtivos que ao vender os produtos do trabalho - a mercadoria - obtém a mais valia, o lucro.

Esta distinção entre feudalismo e capitalismo (industrial) é relevante, embora possa não o parecer, porque no capitalismo, a exploração do trabalho é mais sofisticada e permite maior mistificação: (1)o trabalhador é livre, não se encontra diretamente vinculado a um regime de servidão e assim dá-se como que a legitimação da exploração através do contrato de trabalho; (2)desse modo, é possível separar a esfera política da esfera económica, o que permite ignorar as ligações entre ambas e tudo é percebido como se uma coisa nada tivesse a ver com a outra. Claro que se está perante uma aparência, mas as aparências são sempre importantes e não são descuradas por quem percebe o processo e a relevância da mistificação.

Tanto num caso como no outro os trabalhadores encontram-se privados dos meios de produção o que obviamente os leva a ter de aceitar o sistema para sobreviverem. Mas na aparência, sob o capitalismo, podem (formalmente) não o fazer porque em termos jurídicos houve uma alteração: já não são servos, são livres.

Hoje, mundo contemporâneo, era digital, fase neoliberal, o capitalismo vai sofrendo alterações significativa e uma dessas alterações é protagonizada pelo chamado capitalismo das plataformas (digitais). Alguns apodam este tipo de capitalismo de tecno feudalismo, querendo com isso sinalizar uma espécie de retorno ao feudalismo, embora na era da tecnologia digital, sendo os donos das plataformas os novos senhores feudais e os trabalhadores os novos servos, literalmente servidores de serviços – tendo, como se vê, tudo a mesma raiz etimológica.

Neste tipo de capitalismo, capitalismo das plataformas, vide por exemplo, o caso paradigmático da Huber, os meios de produção pertencem ao trabalhador e toda a despesa é suportada por este para produzir o serviço, o papel do capitalista consiste em permitir-lhe aceder ao mercado (clientes) a troco de uma percentagem que paga à plataforma.

Como sabemos, a Uber é uma empresa que através de um aplicativo disponibiliza clientes para prestadores de serviço de transporte mediante o pagamento de uma percentagem/taxa. Os motoristas, em vez de serem considerados trabalhadores são considerados empresários em nome individual, e a empresa capitalista, a Huber, estabelece a ligação entre quem precisa do serviço e quem se propõe fornecê-lo, com ganhos, alega, para todos, nomeadamente para o utilizador em relaçao ao mercado clássico de transportes (este aspeto é obviamente muito sedutor).

Os motoristas podem sentir que não tem patrão que são o seu próprio patrão, mas esquecem que se isso é verdade, no plano formal, também é verdade que a liberdade que ganharam foi a de não ter trabalho certo, nem direito a reforma, ferias pagas e outras garantias tao penosamente conquistadas pela classe trabalhadora. Neste modelo é o trabalhador/empresário individual que é dono dos meios de produção e que tem encargos com esta, mas na mesma o capitalista apropria-se do excedente da produção.

Há duas consequências perversas neste modelo de capitalismo: 

(1) Por um lado, o trabalhador, quem produz, neste caso quem produz um serviço, não tem direitos laborais porque não lhe é reconhecido esse estatuto. 

(2) Por outro, esta estrutura de exploração entra em colisão com a forma clássica de capitalismo presente, por exemplo, nas empresas de transportes, vulgo táxis, e prejudica esses trabalhadores a quem os patrões podem com pretexto convincente reduzir os direitos, desde logo o salário, dada a concorrência que o modelo alternativo introduziu.

Este novo modelo de capitalismo põe assim em causa as relações laborais do modelo clássico, podendo levar à degradação acelerada dos direitos dos trabalhadores, conquistados à custa de longas e penosas lutas. Os empregadores capitalistas clássicos, confrontados com um competidor que se fortaleceu porque ignorou as regras do jogo que eles, todavia, tiveram de observar, sentir-se-ão pressionados a diminuir salários e regalias.

Acontece ainda que ao isolar os trabalhadores, ao impor vínculos precários e frágeis com a empresa, pelo regime de precariato que instala, não cria condições para as suas justas reivindicações.

Postas as coisas nestes termos, vejamos agora se de facto é justificável estabelecer uma analogia consistente entre este modelo de capitalismo e o regime económico feudal. Vou apresentar a síntese a que cheguei e cabe a quem lê decidir:

(1) O senhor feudal tinha domínio sobre a terra enquanto meio de produção, agora o empresário capitalista não é detentor dos meios de produção, mas tem o domínio sobre um algoritmo que lhe permite controlar o mercado, e, como sabemos, se não houver mercado não há produção.

(2) Neste novo tipo de capitalismo a mediação entre o explorador e o explorado é feita pelo mercado, que o explorador domina e controla. Há uma forma impessoal de dominação que a esconde, coisa que não ocorria no modelo feudal – a relaçao era pessoal e direta.

(3) No modelo do capitalismo das plataformas, tal como no modelo feudal, o dono, agora não da terra, mas do algoritmo não paga salário, todavia também expropria o trabalhador de uma parte do rendimento do seu trabalho.

(4) Como no feudalismo, os trabalhadores não têm direito a reforma, a segurança social, a proteção na doença, não tem horário, etc. e ainda tem de financiar as suas próprias ferramentas de trabalho e custos inerentes ao trabalho.

(5) A empresa capitalista pode em qualquer altura prescindir dos seus serviços (Precariato) enquanto o servo feudal estava adstrito à terra, não a podia abandonar, mas também não podia dela ser expulso.

(6) Assim como no feudalismo o estado era fraco, quase só nominal, também agora se defende e persegue o ideal de um estado fraco que não intervenha nos negócios, que não crie problema, que não regulamente e que sobretudo não vigie se a regulamentação é cumprida. Um estado fraco é mais fácil de cooptar pelos agentes económicos poderosos.

Aguardo os vossos comentários.

quinta-feira, 11 de agosto de 2022

 

Os filósofos e a voz do dono!


Estou a ler a Contra-história do Liberalismo, de Domenico Losurdo (acede-se ao livro através da internet).

É uma leitura impressionante porque o autor, de forma profusamente documentada, nos leva a perceber, na sua concretude, a humanidade que somos: a hipocrisia que nos habita, a falta de empatia estrutural, o como a educação e a informação padrão a que temos acesso nos deforma e mistifica.

Em relaçao aos filósofos, os quais durante muito tempo julguei que podiam escapar a esta  condição humana, acabo a concluir que devem ser vistos com salutar suspeição, como é o caso de Locke - o pai do liberalismo moderno - que me habituei a admirar incondicionalmente. Isto porque, não esqueçam, afinal os filósofos são a voz do dono, é uma tentação muito forte, porque ou são donos, isto é, já pertencem à elite, ou procuram aproximar-se dela e são os interesses desta que os movem.


Leiam o livro, tentem furar o bloqueio, aceitem o desafio!!!


segunda-feira, 18 de julho de 2022

 

Capitalistas e trabalhadores – porque é que há ricos e pobres e isso é muito justo!!!

“Em tempos muito remotos, havia, por um lado, uma elite laboriosa, inteligente e sobretudo parcimoniosa, e, por outro, vagabundos dissipando tudo o que tinham e mais ainda. A legenda do pecado original teológico conta-nos, contudo, como o homem foi condenado a comer seu pão com o suor de seu rosto; a história do pecado original econômico, no entanto revela-nos por que há gente que não tem necessidade disso. Tanto faz. Assim se explica que os primeiros acumularam riquezas e os últimos, finalmente, nada tinham para vender senão sua própria pele. E desse pecado original data a pobreza da grande massa que até agora, apesar de todo o seu trabalho, nada possui para vender senão a si mesma, e a riqueza dos poucos, que cresce continuamente, embora há muito tenham parado de trabalhar.” Marx. O Capital, cap. XXIV p. 339.