Muita gente percebe o amor romântico como uma espécie de refúgio face a uma sociedade extremamente competitiva em que o controlo e a manipulação caraterizam as relações interpessoais. A sua popularidade e prestígio inegável encontram aqui razão de ser.
Podemos, todavia, perguntar - e a pergunta é pertinente - se não estaremos mais uma vez perante um mito social que funciona apenas enquanto acreditarmos nele. Podemos perguntar se a manutenção e mesmo a replicação das relações de domínio/submissão não é inerente ao amor romântico; podemos perguntar se essas relações não se encontram, como hoje se costuma dizer, inscritas no seu ADN.
Wendy Langford, autora de Revolutions of the Heart, refere vários estudos comprovativos de que as relações de género, determinadas pela paixão amorosa, não implicam, ipso facto, igualdade entre os parceiros; e, mesmo quando estes desenvolvem relações de amizade e de respeito mútuo, não há qualquer evidência de que isso decorra da circunstância da relação amorosa.
Efetivamente há caraterísticas do amor romântico que, combinadas com a estrutura social hierárquica em que vivemos, tornam problemática a democratização da relação amorosa; em primeiro lugar, o amor romântico surge com a atração da diferença e, precisamente por isso, não é o melhor lugar para se promover a igualdade; por outro, o desejo que o amante sente de incorporar o outro em si mesmo ou é satisfeito e anula a subjetividade do amado, ou não o é e gera impulsos hostis, motivados pela frustração sentida. Daqui decorre que o amor implica ingredientes que facilitam a sua corrupção pelas relações de poder.
Apesar de o contexto estar longe de ser otimista, para Jessica Benjamin, feminista e psicanalista norte-americana, a dominação não é inerente à essência do amor romântico e as relações amorosas não tem de ser necessariamente relações de domínio/submissão. O que acontece é que a sociedade patriarcal onde elas decorrem, como que as infeta e faz com que os laços de amor degeneram em laços de domínio/submissão.
Jessica Benjamin, tal como de Beauvoir já o havia feito, retoma Hegel e a dialética senhor/escravo. Hegel tinha insistido na duplicidade da realidade psicológica: por um lado, a consciência para existir precisa de se afirmar, negando a existência das outras consciências, mas ao mesmo tempo precisa de reconhecer o outro para que este o reconheça. Quer dizer, cada um de nós vive uma situação paradoxal, quer afirmar-se na sua individualidade única e para isso nega as outras consciências, mas precisa das outras consciências para ser reconhecido e por isso também tem de as reconhecer.
Para Hegel esta tensão resolve-se numa dialética senhor/escravo. A consciência procura manter-se através da escravização do outro, obriga o outro a reconhecê-la. O senhor e o escravo não são identidades essenciais, cada ser humano constrói estas posições no seu psiquismo, mas há condicionantes que em cada indivíduo o levam a reproduzir hierarquias de poder.
Diferentemente do metafísico Hegel, para Benjamin a dominação e a hierarquia não são inevitáveis; para combater a sua inevitabilidade é preciso compreender como as relações de poder se constituem e são construídas; é preciso explicar o desenvolvimento psíquico e o modo como o individuo satisfaz as necessidades de afirmação e de reconhecimento.
Benjamin retoma o complexo de Édipo e mostra como meninos e meninas o resolvem, concluindo que as meninas aprendem a respeitar a subjetividade masculina e a negar a sua própria subjetividade: em flagrante contraste, os meninos afirmam-se como sujeitos, negando a subjetividade feminina, isto é, afirmam o “eu” negando o “outro”.
Desse modo nem os meninos nem as meninas se desenvolvem no sentido de virem a ser adultos equilibrados, em vez disso inclinam-se para uma posição ou para a outra da dialética/senhor escravo. Tanto a identidade feminina como a masculina se remetem a um confinamento solitário que tentam ultrapassar pelo desejo do outro. Mas, dado o contexto, a relação, ao invés de ser uma relação de comunhão e de liberdade, transforma-se numa relação de controlo/submissão. A relação heterossexual revive o paradoxo eu/outro reproduzindo uma estrutura social caraterizada pela subordinação das mulheres aos homens.
A questão que importa resolver é a de saber se, apesar de todas as dificuldades, será possível afirmar o eu sem negar o outro.
Gosto do blog. Boas observações, que eu próprio já havia feito, feitas com bases científicas de que não disponho. E as pessoas que conheço parece que olham para a a subjugação da mulher ao homem como inevitável, como uma questão menor, natural e biológica. Como se a dignidade de um ser humano se pudesse perder em pequenos simples actos. Em relação a esta publicação em particular, sim, penso que seja possível afirmar o eu sem negar o outro. Bruno
ResponderEliminarObrigada pelo seu comentário. Quanto á questão que coloquei, vou continuar a investigar o assunto e darei noticia brevemente.
ResponderEliminarAdília
Felicito-a pelo seu blogue e pelos livros que tem publicado. Tem-me dado prazer lê-los e tenho aprendido muito. Espero que continue a escrever e a publicar.
ResponderEliminarLamentavelmente são difíceis de encontrar nas livrarias e nem na Feira do Livro do Porto o seu editor pôs à venda o último dos seus livros ("O inimigo no Gineceu") sob o pretexto de o venderem na Fnac, onde eu anteriormente perguntara por ele e o desconheciam. Já depois da Feira terminar voltei à Fnac de S.ª Catarina e nem sequer constava ainda nos computadores da loja.
Abraço e felicitações de uma (outra) feminista.