quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

A função do sentimentalismo romântico

O sentimentalismo romântico - que goza de acolhimento extremamente favorável nos Media - é um poderoso instrumento de socialização das mulheres que se torna tanto mais importante quanto mais se caminha para a sua emancipação previsível.

Com o sentimentalismo romântico pretende-se reduzir o horizonte das mulheres ao amor, levando-as a abdicarem voluntariamente de qualquer outro tipo de realização, ou, pelo menos, a secundarizarem-no.

O sentimentalismo romântico apresenta três componentes que se interligam e reforçam mutuamente: o erotismo; a privatização sexual e o ideal de beleza; os três, atuando subrepticiamente, visam a que as mulheres não ponham em causa o lugar que desde sempre ocuparam na sociedade.

Do erotismo, o homem é o beneficiário e a mulher o objeto de culto; o erotismo funciona no sentido de despertar o desejo sexual do homem pela mulher, mas apenas se espera que ela sinta prazer em ser desejada. É um erotismo de um só sentido e confirma a mulher como objeto sexual que se sente encantada por o ser e que não aspira a firmar-se como sujeito.

A privatização sexual das mulheres tem como objetivo o estabelecimento de identidade entre individualidade e sexualidade; com ele pretende-se que as mulheres não sejam capazes de distinguir a sua própria personalidade individual do seu sexo, são reduzidas ao sexo e assim ignoram os seus interesses comuns enquanto pessoas.

O ideal de beleza imposto conduz a que todas as mulheres pareçam iguais, se despersonalizem, sujeitando-se à tirania da moda.

Com tudo isto, como diz Shulamith Firestone, na sua linguagem corrosiva, as mulheres “parecem iguais; pensam igual e, pior que tudo, são tão estúpidas que acreditam que não são iguais”.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Inveja do pénis ... ou egocentrismo masculino?!

Já abordei aqui várias vezes a famigerada teoria freudiana da inveja do pénis, mas hoje não resisto a referir a percepção que Kate Millet nos dá dela.

Millet considerou o conceito freudiano de “inveja do pénis” como um caso flagrante de egocentrismo masculino: os homens, em vez de celebrarem o poder feminino de dar à luz uma criança, interpretaram-no como uma tentativa patética de possuir um pénis de substituição. De facto, Freud, acima de tudo um “maravilhoso “ contador de histórias, afirmava que a mulher tinha inveja do pénis e só conseguiria ultrapassar esse sentimento de frustração quando desse à luz uma criança … do sexo masculino.

Quer dizer, um evento tão importante, até socialmente, como é o de dar à luz uma criança, transforma-se numa coisa bem mais comezinha: a procura do órgão sexual masculino.

Decididamente uma fantasia bem contada que, consciente ou inconscientemente - e aqui Freud fazia bem em se psicanalisar - servia às mil maravilhas para manter as mulheres acantonadas nos seus papeis tradicionais de esposas e de mães, considerados desse modo imprescindíveis para se realizarem como pessoas.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

A ditadura da aparência

As palavras de Shulamith Firestone acerca do vestuário e adereços usados pelas jovens mulheres do seu tempo, ressoam hoje aos meus ouvidos plenas de atualidade, quando revejo as imagens femininas que constantemente nos são apresentadas na TV mas também em diferentes lugares públicos, mesmo onde menos esperaríamos encontrá-las, isto é, nos locais de trabalho. Firestone escreveu estas considerações nos finais da década de sessenta nos Estados Unidos, mas é constrangedor perceber como cerca de quatro décadas depois muito pouco, se é que alguma coisa, parece ter mudado.

“As mini saias não são práticas, requerem atenção constante à postura das mulheres, ênfase constante na sua natureza sexual. Saltos altos, cintos de ligas, nylons e todos os outros acessórios da mulher moderna chique podem parecer mais naturais, mas de facto são quase tão desconfortáveis como eram os corpetes e os espartilhos Porque embora as mulheres lutem por uma aparência mais natural, elas ainda lutam. Hoje as jovens estão tão preocupadas com a imagem como sempre estiveram. Continuam a ser objetos sexuais; apenas os estilos mudaram.” (S. Firestone, in The New York Radical Women, 1968)

É frequente vermos mulheres jovens, e mesmo menos jovens, que se apresentam nos lugares públicos com saltos altíssimos que seguramente lhes tolhem os movimentos, além dos danos que provocam à saúde; com roupas demasiado justas, com os mesmo inconvenientes e que passam a imagem de que as mulheres se aceitam como objetos sexuais já que não desdenham, bem pelo contrário, evidenciar as caraterísticas sexuais que são apelativas para os homens.

Será que estas mulheres não percebem que afinal estão a ser muito pouco modernas?
Não percebem que estão a repetir estereótipos antiquíssimos? Que estão a aceitar "alegremente"o estatuto de objetos sexuais?

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Sequestrar as mulheres para que os homens não pequem?!

O Rabi Dov Linzer, em artigo publicado recentemente no New York Times, reflete sobre o caso de um menina de 8 anos que foi cuspida e chamada de puta por um grupo de homens adultos – judeus ortodoxos, escandalizados com a “impropriedade” do seu vestuário, não compatível, em sua opinião, com as exigências de discrição e modéstia que o sexo feminino deve observar. Vale a pena ler as palavras sábias que este corajoso rabi escreveu:

”O que se encontra por detrás de acontecimentos tão perturbantes? Dizem-nos que resultam de uma preocupação religiosa com a modéstia; que as mulheres devem ser cobertas e sequestradas de modo a que os homens não tenham pensamentos sexuais impróprios. Parece pois que uma doutrina religiosa que começa com os pensamentos sexuais dos homens acaba com os homens a controlarem os corpos das mulheres. …

Os homens ultra ortodoxos de Israel que estão a exercer controlo sobre as mulheres afirmam que estão a honrar as mulheres. De facto dizem: Nós não tratamos as mulheres como objetos sexuais, como acontece no Ocidente; as nossas mulheres são mais do que corpos e é por isso que os seus corpos devem ser cobertos.”

Todavia as suas acções objetificam e hiper-sexualizam as mulheres. Pensem nisto. Ao dizerem que as mulheres devem esconder os seus corpos, estão a dizer que a mulher é um objeto que pode perturbar os pensamentos sexuais dos homens. Assim qualquer mulher que passe ao alcance do seu campo de visão é percebida na base do quanto do seu corpo está coberto. Não é percebida como uma pessoa completa, apenas como uma possível indutora ao pecado.

No fundo estamos a falar da mentalidade de censurar a vítima. Transfere-se a responsabilidade de controlar os impulsos sexuais do homem para a mulher que ele pode ou não encontrar. Esta é afim da mentalidade pressuposta na afirmação: ela estava a pedi-las … Por isso a responsabilidade é da mulher; para proteger os homens dos seus pensamentos sexuais as mulheres devem remover a sua feminilidade da presença pública, libertando-se da mais pequena evidência da sua própria sexualidade.”

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

A homossexualidade no mundo grego – uma prática tolerada e mesmo institucionalizada

A sociedade ateniense do tempo de Platão - que podemos entender como uma espécie de modelo do mundo grego - discriminava profundamente as mulheres: os jovens recebiam educação específica, mas o mesmo não acontecia com as jovens, destinadas exclusivamente ao casamento e à maternidade.
A prática do infanticídio feminino era tolerada e em consequência dessa prática, o número de mulheres era muito inferior ao dos homens. As mulheres casavam muito jovens, por volta dos dezasseis anos, com homens muito mais velhos. e eram como que sequestradas no gineceu, impedidas sequer de socializarem com os maridos na altura das refeições.
O tipo de casamento instituído não pressupunha companheirismo, alias impossível de implementar numa relação profundamente assimétrica de homens adultos cultos e ativos na esfera pública com mulheres jovens, ignorantes e confinadas à monotonia da esfera privada.
Numa cultura em que o casamento não pressupunha companheirismo, a homossexualidade e a prostituição não levantavam qualquer problema, as esposas não esperavam fidelidade dos seus maridos e como não tinham o escape do adultério investiam a sua afetividade nos filhos; os maridos por sua vez, procuravam em outras paragens o que não encontravam em casa.
Neste contexto, não surpreende que muitos homens jovens e adultos se vissem privados de manter relações heterossexuais durante a fase mais activa da sua vida e por isso fica mais compreensível a prática de um modelo de homossexualidade que se tornou caraterístico da época clássica, um modelo que alguns autores referem como homossexualidade oportunística.
Esse modelo, tal como nos é transmitido pelos diálogos platónicos, nomeadamente o Symposium, apresenta aspetos peculiares que precisamos de conhecer; é entre um homem adulto e um adolescente, uma relação assimétrica em termos de idade e obviamente em termos de poder, vista como uma espécie de iniciação do jovem, protegido, instruído e aconselhado pelo homem mais velho. Previsivelmente, esse jovem, uma vez entrado na idade adulta, retomaria a prática em relação aos mais jovens; também previsivelmente casaria e teria descendência.
Este modelo de relação sexual, aparentemente pouco ortodoxo, tinha a vantagem de reforçar a estrutura hierárquica de poder vigente na sociedade; no sexo como na vida pública cidadãos adultos dominavam jovens, mulheres e escravos, que não gozavam de direitos de cidadania, mantendo-se assim a relação de domínio submissão: a sexualidade, quer a heterossexual quer a homossexual, promovia e reforçava a desigualdade social.
Ao mesmo tempo, permitia salvar ”a honra do convento”, no caso da confraria masculina que se sentia justificada para poder execrar qualquer adulto do sexo masculino que prosseguisse uma prática homossexual contrária às normas aceites, desempenhando por exemplo, um papel “passivo” na relação sexual
Posta cruamente a questão, a escassez e o sequestro das mulheres bem como o facto de serem companhias intelectualmente pouco estimulantes “empurrava” os cidadãos gregos para a prática oportunística da homossexualidade, mantendo intacta, pelas caraterísticas que essa prática assumia, a estrutura hierárquica e profundamente desigual da sociedade Todos ficavam contentes, no melhor dos mundos possíveis !!!

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

O Capitalismo é por inerência anti-feminista?

Quem sente alguma perturbação e mal-estar com a injustiça e a desigualdade social tem dificuldade em olhar com simpatia para o regime capitalista; até pode perceber que ele apresenta algumas vantagens, mas não aceita que sirvam para justificar todo o arsenal de injustiças que comporta.
Todavia, para além desta reação emocional, uma feminista também percebe ou pressente que o capitalismo é por inerência anti-feminista. Constata que o regime patriarcal e o regime capitalista sempre conviveram muito bem, e por vezes alimenta a esperança de que o derrube deste implique o desaparecimento daquele. Mas atenção não há nenhuma garantia de que a falência do capitalismo - difícil de prever no atual contexto - implique a implosão do sistema patriarcal.

É certo que o capitalismo lucra com a situação de opressão em que a vida da maior parte das mulheres continua a decorrer:

(1) Tem à sua disposição mão-de-obra barata, descartável na primeira oportunidade, encontrando então bons argumentos para a dispensar.
(2) Pode legitimar os baixos salários que na generalidade dos casos auferem, ao considerar que de alguma maneira as mulheres são inferiores.
(3) Pode isentar a estrutura económica de um encargo de peso e permitir-lhe que contabilize lucros, de outra maneira bem inferiores, ao considerar que tomar conta das crianças e da casa, atividades imprescindíveis para a existência de qualquer sociedade, são tarefas das mulheres que “naturalmente” não devem ser pagas.

Portanto, deixemo-nos de panos quentes: o capitalismo tem tudo a ganhar com a continuação da opressão das mulheres. Mas a história tem-nos mostrado que a opressão das mulheres não favorece apenas o sistema capitalista, favorece também a metade masculina da humanidade e, dado o caráter predatório da natureza humana, temos boas razões para supor que o problema não será resolvido com uma mudança na estrutura económica da sociedade.