sábado, 21 de dezembro de 2013

Sade e o sado masoquismo


O Marquês de Sade, tão exaltado por intelectuais ilustres, apodado por alguns como o divino marquês, em “Os 120 dias de Sodoma”, num discurso proferido pelo Duque de Blanchis, que se supõe ser a personagem com a qual Sade mais se identifica, refere-se às mulheres nestes termos:

“Frágeis e agrilhoadas criaturas destinadas exclusivamente a nossos prazeres, creio que não vos iludistes supondo que a ascendência igualmente absoluta e ridícula que vos é dada no mundo exterior vos seria concedida neste lugar; mil vezes mais subjugadas do que os possíveis escravos, só deveis esperar humilhação, e a obediência é a única virtude cujo uso vos recomendo: ela, e nenhuma outra, serve ao vosso estado presente. Acima de tudo, não vos entre na cabeça depender do mínimo de vossos encantos; somos completamente indiferentes a essas armadilhas e, podeis acreditar, tais engodos não dão resultado connosco. Tende incessantemente em mente que faremos uso de vós todas, mas que nem uma única de vós necessita de se iludir imaginando que é capaz de nos inspirar qualquer sentimento de piedade. Levantados em fúria contra os altares que nos conseguiram arrebatar alguns grãos de incenso, nosso orgulho e nossa libertinagem estilhaçam-nos assim que a ilusão satisfaz nossos sentidos, e o desprezo quase sempre seguido do ódio assume instantaneamente a preeminência até então ocupada pela nossa imaginação. O quê, alem disso, nos poderíeis oferecer que não conheçamos já de cor, que nos ofertareis que não esmaguemos sob nossos calcanhares, muitas vezes no próprio momento em que o delírio nos transporta?

Inútil escondê-lo de vós: vosso serviço será árduo, será doloroso, e rigoroso, e as menores delinquências serão imediatamente retribuídas com punições corporais e angustiantes; por isso, devo recomendar-vos pronta obediência, submissão, e uma total auto abnegação que vos permita satisfazer apenas nossos desejos; deixai que eles sejam vossas únicas leis, correi ao encontro deles, antecipai-vos, provocai-os. Não que tenhais muito a lucrar com essa conduta, mas simplesmente porque, não a observando, muito tereis a perder.”

Sade: Os Cento e Vinte Dias de Sodoma, Hemus, 1969, pp. 56-57

Resumindo, o programa sadomasoquista tem as seguintes implicações

·         As mulheres apenas existem para o prazer dos homens: satisfazer os seus desejos e serem usadas por eles;

·         A única virtude que devem cultivar é a obediência e a auto abnegação;

·         Não vale a pena tentarem tirar partido dos seus encantos pois estes, uma vez saciado o desejo, nada representam para os homens;

·         Depois de satisfeito o desejo, para as mulheres só resta desprezo e ódio de que pode mesmo resultar a sua aniquilação no momento em que o macho atinge o orgasmo.

·         O melhor que podem fazer é adivinhar os desejos do homem, estarem sempre de prontidão para evitarem outras punições mais graves.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Sadomasoquismo e ética


Para muitas pessoas, desde que exista consenso genuíno entre as partes, as práticas sadomasoquistas não levantam qualquer problema ético. Argumenta-se que o desejo sexual é virtuoso por si mesmo, é bom, e tudo o que o satisfaça, desde que não haja o recurso à coação ou à fraude, é legítimo.

Aqueles que se colocam nesta posição estão a dar uma resposta liberal a este problema; mas este tipo de resposta, considerando o estado atual dos nossos conhecimentos, pode não ser o mais correto. Em boa verdade, essas pessoas assumem uma visão liberal da teoria do contrato social, considerando que este é legítimo desde que as partes estejam de acordo, desde que não exista coação, desde que não haja logro. Mas esquecem que esta versão pressupõe algo que está longe de se verificar: que os indivíduos contratantes têm plena autonomia e estão completamente desinseridos do contexto social e político em que as suas vidas decorrem.

A teoria do contrato, aparentemente parece salvaguardar tudo, mas de facto tal não acontece. Porque se houver assimetria flagrante entre as partes – se entrarmos em linha de conta com o contexto - se uma das partes precisar da outra para sobreviver, ela até pode dar a sua adesão, mas tratar-se-á sempre daquilo que Pierre Bourdieu subsumiu no conceito de “adesão extorquida”.

Voltando ao sadomasoquismo, não basta sabermos que as pessoas querem, precisamos de perguntar em que moldes o seu querer foi construído, como é que o seu desejo sexual foi condicionado/manipulado pelo contexto em que decorre as suas vidas. E não basta porque parece largamente insuficiente argumentar que as pessoas gostam de sofrer, de ser humilhadas, de ser reduzidas, por vontade própria, à escravatura, e depois pensar que isso, esses tipos de desejo, não tem importância nenhuma, está tudo certo, e não tem qualquer repercussão nem em outras facetas da sua vida, nem na vida das outras pessoas.

 Seria como se aceitássemos a escravatura desde que os escravos gostassem e quisessem ficar na dependência dos seus senhores, seria como se não percebêssemos que a indignidade se manteria e que a humanidade sairia diminuída enquanto tal.