segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Violência de gênero e vítimas colaterais


Diferentemente das agressões interpessoais, a agressão de gênero não ocorre na sequência de um conflito perceptível e incapaz de ser resolvido por outro meio que não seja o recurso à força; além disso é uma agressão extremamente desproporcionada que visa marcar uma posição – a daquele que manda. O seu objectivo é dar uma lição: “é para aprenderes a não desobedecer ao dono!”

O recurso a este tipo de violência no decorrer de uma relação heterossexual funciona como mecanismo de controlo para manter a mulher no seu lugar e, se a relação se rompe, o agressor destila a sua frustração, magoando a mulher, deixando uma espécie de marca.

Se há filhos, magoar os filhos é uma forma indirecta de magoar a mãe, por isso não podemos também esquecer as vítimas colaterais deste crime, as crianças que assistem aos maus tratos a que as mães são submetidas e que por vezes são elas próprias vítimas de agressão ou até de morte. Assim, é legítimo questionar se um companheiro que maltrata a mulher pode ser um bom pai. É difícil aceitar que o seja porque ele deve de alguma maneira perceber que o dano que inflige à mãe vai ter repercussões graves sobre os filhos.

Por tudo isto, devemos exigir tolerância zero contra a violência de género e a tolerância zero começa com o evitar desculpabilizar o agressor, evitar encontrar razões para o compreender, deixar de comentar quão boa pessoa ele é para os colegas de trabalho ou para os vizinhos; como a mulher é preguiçosa, desmazelada, ou respondona, etc; enquanto não mudarmos esta cultura, nada vamos conseguir. Mas, infelizmente, em muitos sectores e sectores com grandes responsabilidades, como o das hierarquias religiosas, é frequente encontrarmos pronunciamentos que vão no sentido de mais uma vez culpabilizar as mulheres e desculpabilizar os agressores.

 

 

 

 

 

 

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

O lookismo


Bonnie Berry em The Power of Looks. Social Stratification of Physical Appearance, publicado em 2008, criou o neologismo “Lookism” que não antevejo como se poderia traduzir pelo que o mantenho no original com ligeira adaptação, o que não me parece particularmente grave até porque a expressão look, enquanto aspeto e aparência, já entrou no vocabulário português, em grande parte graças às revistas e programas sobre moda e beleza.

Bonnie Berry revela neste livro publicado em 2008, que nos Estados Unidos as despesas com produtos e tratamentos de beleza ultrapassam as despesas com a educação ou com os serviços sociais. Em sua opinião, este facto expressa por um lado a vacuidade das sociedades atuais e por outro a atitude das pessoas que, não tendo educação, procuram o caminho para a ascensão social através da beleza e da aparência física.

Usar a aparência ao invés de usar o cérebro para subir socialmente é lamentável, mas é uma realidade. Há todavia, uma consequência ainda mais desastrosa da prevalência deste padrão de comportamento; é que ele é gerador de preconceitos em relação às pessoas cuja aparência física não se conforma com a norma de beleza estabelecida; isto é, leva a discriminar as pessoas em função da sua aparência. É a isto que se dá o nome de “lookismo”; por via dele, não são os conhecimentos, cultura ou inteligência, muito menos a bondade, que tornam as pessoas elegíveis para determinados lugares, mas é tão simplesmente a sua aparência física.

O lookismo contribui para criar ou aprofundar desigualdades sociais pois o acesso ao poder económico e social fica dependente de circunstâncias que as pessoas não controlam; como diria John Rawls, essas circunstâncias, em si mesmas, não são justas nem injustas, mas já é injusto transformar contingências naturais em impedimentos e obstáculos ao sucesso social. Não é justo nem injusto nascer-se feio ou bonito, mas é injusto preferir para um determinado lugar uma pessoa bonita em circunstâncias em que, eventualmente, a feia teria outros requisitos, esses sim importantes, para um bom desempenho.

Que as pessoas bonitas sempre têm sido positivamente discriminadas não é novidade para ninguém; mas, nos nossos dias, o problema agravou-se significativamente, pelo papel que os media desempenham na criação, reforço e ampla divulgação do ideal de beleza, sobretudo criando nas pessoas, particularmente nas mulheres, o sentimento de que têm sempre qualquer coisa em falta. Daí o sucesso amplamente reconhecido da indústria de cosmética e da cirurgia estética com que todos e todas acabamos por perder mais do que ganhar.

domingo, 25 de novembro de 2012

O capitalismo cultural do século XXI


A sexualidade tem estado submetido ao controlo das autoridades políticas e religiosas desde tempos imemoriais, isto é, tanto quanto a memória alcança. Uma explicação plausível para este facto insiste na centralidade do sexo para a reprodução biológica, socialmente enquadrada, com a necessidade de garantir a transferência da propriedade à descendência legítima do progenitor e de manter a estabilidade necessária à coesão social que, de outro modo, seria ameaçada pela premência e natural indisciplina do desejo sexual. Regular a sexualidade e policiar o desejo tem sido pois uma constante através do processo histórico variando apenas o grau de regulação e de policiamento. A proibição de determinadas práticas sexuais, a determinação da idade legal de consentimento, as leis do casamento, o controlo dos nascimentos, integraram códigos sexuais nas mais diversas partes do mundo, visando manter uma ordem social que tinha sobretudo em vista os interesses dos homens,

Mas o poder qualquer poder estabelecido, malgrado a sua rigidez e severidade, encontra sempre, mais tarde ou mais cedo, normalmente mais tarde, quem o desafie. Foi o que aconteceu primeiro com as mulheres - que lutaram pelo reconhecimento dos seus direitos enquanto pessoas - e, em seguida com a comunidade homossexual e transexual que insistiram no reconhecimento dos seus direitos e estilos de vida, desviantes em relação à norma heterossexual.

Na linha do feminismo das décadas de sessenta/setenta, entendeu-se que o pessoal é político e assim a sexualidade não é considerada apenas uma questão do foro intimo mas é o terreno no qual se travam lutas políticas de natureza emancipatória. São lutas que se decidem no espaço público, como por exemplo, a questão do aborto e da contraceção ou do casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Ao sucesso desta luta emancipatória não foi alheio o facto de grupos sexualmente oprimidos terem acesso ao mercado e terem-se tornado consumidores que o mercado pretende cativar. Isso aconteceu com as mulheres a partir da década de cinquenta, aconteceu algo semelhante com a comunidade gay que veio a revelar, sobretudo a partir de fins do século passado, uma capacidade de consumo não negligenciável. Mas, acabou por ocorrer o que se poderia ter previsto, as mesmas forças que forneceram condições económicas para a emancipação, acabaram por reduzir os efeitos desta canalizando-a em seu benefício.

Nos nossos dias, como sempre, o sexo é acerca de dinheiro, mas é-o a um nível nunca antes atingido, não só porque vende os produtos mais afastados de qualquer conotação sexual, como se vende ele próprio ou o seu simulacro, seja através da pornografia seja através da prostituição, e gera lucros astronómicos para os seus promotores. Claro que sempre que há dinheiro metido no negócio, quem tem a mão na massa gosta e precisa de reconhecimento e de respeitabilidade e assim não surpreendem tentativas, algumas já realizadas em alguns Estados, de legalização da prostituição e de normalização da prática, e de aceitação da indústria pornográfica.

Hollywood, que para além de fábrica de sonhos é fábrica de fazer dinheiro, também se rendeu à indústria do sexo e oferece-nos de bandeja, bem condimentadas comédias românticas onde a prostituição é estetizada, caso flagrante do sucesso comercial que foi, por exemplo, Preety Woman. É que parece não ser suficiente legalizar e normalizar é também necessário embelezar. E assim o capitalismo cultural do século XXI reduz-se a uma cultura do sexo onde o sexo é vendido como uma outra qualquer mercadoria e em simultâneo vende qualquer outra mercadoria.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Sexo e publicidade

A publicidade comercial, à medida que o século XX foi avançando, ao invés de se centrar nas qualidades dos produtos, procurou outra abordagem e tem vindo a adotar progressivamente a estratégia de associar os produtos a desejos e emoções humanas fortes.

Sendo o desejo sexual um desses desejos, o sexo e o prazer sexual passaram a ser constantemente utilizados para vender os mais diversos produtos. Mas, dado o contexto em que vivemos, são as mulheres que são mostradas a darem prazer aos homens: são mostradas como se estivessem sempre desejosas e prontas a saciarem os apetites sexuais destes. Portanto, um primeiro ponto: quando falamos em publicidade e prazer sexual, é do prazer sexual masculino que estamos a falar, como se este fosse o único que importa considerar.

Nessa conformidade,  a postura feminina é quase sempre a passiva, as mulheres são mostradas em poses langorosas e expectantes sem que se vislumbre qualquer indício de participação ativa no sexo que se sugere; as poses e características femininas contrastam abertamente com a atitude masculina: no primeiro caso, um rosto “ingénuo” com um dedo na boca; um olhar tímido ou até intimidado - sem qualquer remota relação com uma situação de poder - ou mesmo apenas partes do corpo da mulher: pernas, seios, como se se tratasse de um objeto e não de uma pessoa; no segundo, homens firmes, com os pés bem assentes no chão, fazendo qualquer coisa, em posturas que sugerem movimento, ação e poder.

Com esta estratégia de atuação, a publicidade continua a dar um contributo importante para manter a imagem das mulheres como seres passivos, vulneráveis, sem vida própria, ajudando pela estetização destes atributos a que muitas, sobretudo jovens, se revejam nesta imagem. Para além dos produtos vende assim valores e ideias, e além disso é normativa: impõe normas: se só são mostradas mulheres de seios grandes, seios grandes vão ser o normal e aí teremos inúmeras outras a recorrerem a cirúrgia estética para fazerem implantes a qualquer custo; se só são mostradas mulheres esbeltas de pernas compridas, a anorexia espreita as demais.

A publicidade cria o ideal da mulher perfeita que quer impingir a qualquer uma de nós; um ideal inatingível, mas nem por isso menos danoso.

sábado, 10 de novembro de 2012

O amor romântico tem uma história

Está na hora de nos perguntarmos sobre o futuro do amor romântico: será que ele vai subsistir ou estará condenado a desaparecer?

 A cultura popular dominante nas sociedades do Ocidente continua a desenvolver-se como se nada estivesse para mudar: canções, filmes, novelas televisivas continuam a apostar no ideal romântico e a comover audiências, nomeadamente audiências femininas. Os apaixonados alimentam ainda a secreta esperança de um amor para sempre, malgrado todas as aparências, visíveis no enorme aumento de divórcios. Mas as pessoas mais avisadas sabem que o amor romântico teve um começo no tempo e no espaço e nada impede que tenha um termo; esteve ligado na sua emergência a determinadas condições sócio económicas e nada permite supor que se mantenha, se as condições que lhe deram origem se modificarem substancialmente.

 Historiadores, sociólogos e filósofos lembram-nos que o ideal romântico começou a ser difundido quando, nas primeiras décadas do século XIX, na sequência da revolução industrial, se verificaram alterações profundas na unidade familiar que se simplificou, restringindo os laços de afinidade a um número reduzido de pessoas – pais e filhos – e substituiu a família alargada dos séculos precedentes que exercia um controlo muito mais constringente sobre todos os membros família, sobretudo os mais jovens.

Na ausência desse cimento aglutinador, começou a desenvolver-se a ideia de que os matrimónios se deviam basear no amor romântico, caraterizado por uma série de clichés, ainda hoje bem presentes; um deles era o da necessidade de existir paixão entre os elementos do casal, coisa que no passado, contrariamente, era vista como elemento perturbador da estabilidade e dos interesses da família alargada, o que facilmente se compreende, se recordarmos que a maioria dos casamentos era de conveniência. Também então o desejo erótico – dos homens, claro - era canalizado para fora do matrimónio e tornado possível pela existência de instituições várias, nomeadamente a prostituição. Agora, a atração erótica passa a ser canalizada para o ideal romântico da pessoa amada e é ligada ao casamento.

No século XIX, sobretudo para a burguesia, que por sua vez se há-de tornar num modelo para as classes inferiores, dois conceitos ganham foros de cidadania, o de individualidade e o de intimidade. Porque o mundo lá fora é frequentemente um ambiente agressivo e hostil onde a pessoa não é reconhecida na sua identidade individual, torna-se mais importante a esfera privada onde ela pode ser valorizada e apreciada. Por sua vez, a afirmação do indivíduo e do individualismo tornam mais premente a escolha pessoal que vai passar a ocupar um lugar importante no ritual do casamento de onde tinha estado desde sempre ausente. Se no passado o casamento era um “negócio” da família, agora passa a ser uma questão de escolha e desse modo dependente da atração sexual recíproca, sublimada e disfarçada através do ideal romântico.

Os sociólogos dão uma ajuda e explicam que casamento de amor foi a “instituição” que permitiu a integração dos indivíduos num mundo novo, completamente diferente do dos séculos precedentes, onde a nota dominante passa a ser o isolamento dos indivíduos e a fragmentação social.

Nesse tipo de sociedade, fragmentada e individualista, as pressões externas para manter a união do casal começam a enfraquecer, mas em certa medida continua a ser necessário manter a estabilidade das uniões para efeitos quando mais não seja da criação das novas gerações; assim torna-se necessário substituir o dever e os constrangimentos familiares por um novo tipo de pressão, e é neste contexto que surge o ideal romântico de amor; por outro lado, num meio onde as coisas mudam com demasiada rapidez, a paixão romântica permite ao casal construir uma ligação que considera preciosa porque o amado e só o amado dá ao amante o sentimento de que é uma pessoa única e insubstituível e lhe fornece um porto de abrigo para a impiedade de um mundo onde, se não a hostilidade, pelo menos a indiferença o esperam. É através do amor que a vida parece ganhar sentido.
Antony Giddens, um filósofo contemporâneo que se debruçou sobre o tema, reconhece que o amor romântico exerceu uma função importante no quadro da emergência da sociedade capitalista, conferindo sentido à vida das pessoas; mas considera que esse papel não mais é necessário e que o surgimento de novas condições contribuirá necessariamente para o declínio do ideal romântico que será substituído por aquilo a que chama amor confluente.

Giddens aponta mesmo o fracasso do amor romântico e o seu potencial destrutivo, pois, em seu entender, contribuiu para alimentar falsas espectativas e acabou criando mais infelicidade do que seria desejável. Por outro lado, a mística romântica, criando sentimentos de culpa nas pessoas, não permitiu que explorassem a sua liberdade a vários níveis, nomeadamente ao nível da liberdade sexual.

Hoje segundo Giddens, já não há lugar para o amor romântico, porque para as pessoas, mercê de vários e convergentes movimentos de libertação, a atração erótica passou a gozar de uma legitimidade que nunca conheceu antes e o controlo da reprodução tornou-se acessível. Desse modo, estabeleceu-se um novo tipo de relação amorosa - o  “amor confluente”; característico do amor confluente é a “relação pura”, uma relação que apenas se mantem enquanto for gratificante para o casal e corresponder ao que dela esperam em termos de satisfação sexual recíproca; é pois uma relação contingente; não há nenhum compromisso indestrutível nem nenhum tipo de obrigação moral, estão juntos enquanto se sentirem bem juntos.

Este tipo de relação amorosa foi possível porque há maior liberdade dos homens e sobretudo das mulheres, passando a existir aquilo que Giddens designa de plasticidade sexual que é o contrário da rigidez sexual anteriormente existente, quando o número de parceiros e de práticas sexuais era bem mais limitado. Hoje as pessoas sentem-se muito mais independentes e também já perceberam que o ideal de "fusão de almas" do amor romântico é uma ratoeira que aprisiona homens e sobretudo mulheres, incapazes de exprimirem verdadeiramente a sua liberdade e autonomia.

 

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Feminicídio é violência de género


No blog Género Com Classe, li hoje um texto sobre feminicídio, que dá conta do assassinato de uma menina de 13 anos por um homem de 39 e do modo mistificador como os meios de comunicação social abordaram o terrível crime. As considerações que se seguem foram inspiradas nesse artigo.

 Nos inúmeros crimes em que mulheres são assassinadas pelos companheiros, maridos, amantes ou namorados, é extremamente frequente ignorar-se completamente a dimensão sexista e machista, para só se chamar a atenção para a dimensão passional, claro que esta tem sempre também uma componente machista mas é devidamente escamoteada pelos órgãos de comunicação social.

O modo como a comunicação social trata este tipo de acontecimentos parece resultar, pelo menos em parte, do facto de se continuar a encarar com enorme naturalidade a violência contras as mulheres.

Em primeiro lugar, estes crimes são interpretados como crimes passionais, uma espécie de crimes de amor, de muito amor, de amor exagerado ou mal colocado, mas, em qualquer dos casos, de amor. Ocorre lembrar que os media deveriam denunciar que o sentimento de posse do homem e a redução da “amada” a um objeto que, como não lhe pode pertencer, também não irá pertencer a mais ninguém, definem claramente uma mentalidade sexista e misógina, mas não o fazem.
Em segundo lugar, a tendência, mesmo que sub-reptícia, é para culpabilizar a própria vítima; são sempre as mulheres que enlouquecem os homens e dão aso ao seu furor assassino, coitados deles que não conseguem resistir-lhes. São sempre elas as responsáveis pelo “ato tresloucado” que sofrem. Os homens ou estão deprimidos por terem perdido o emprego, ou são desculpabilizados porque, coitados, não suportam a rejeição feminina.

Considerar que a mulher assassinada tem culpas no cartório e que afinal mereceu o destino que o “amador” lhe reservou faz parte do imaginário patriarcal e de toda a cultura machista e sexista que lhe subjaz. Culpabilizar a vítima é um estereótipo tão antigo quanto a própria história bíblica do pecado original de Eva, a eterna tentadora, ajuramentada com o próprio diabo, encarnado na serpente.  Ora é exatamente este caldo cultural que devia ser denunciado e que é completamente escamoteado pelos órgãos de comunicação social.
Em terceiro lugar, nunca este tipo de crime é reconhecido como crime de violência de género, violência contra as mulheres pelo facto de serem mulheres. Assim os media em vez de aproveitarem a oportunidade para educar as pessoas, agem em sentido contrário, dando uma explicação falsa ou no mínimo enviesada, desculpando os criminosos e contribuindo para que se mantenha esta monstruosa realidade.

domingo, 21 de outubro de 2012

Esfera pública - um acesso indispensável mas problemático


 A participação das mulheres na esfera pública, seja em cargos políticos seja em lugares públicos de liderança ou sequer de relevo, ainda hoje é diminuta. Vários fatores explicam esta situação, nomeadamente as crenças culturais prevalecentes acerca dos papéis sexuais e os estereótipos vigentes bem como a situação concreta em que ainda decorre a vida das mulheres.

No mundo ocidental, pretende-se enraizar a crise de valores na mulher e no seu desempenho enquanto mãe e dona de casa. Jornalistas, comentadores e políticos atribuem os males da nação às mães que não cumpririam com as suas obrigações de educadoras e seriam assim responsáveis pela desintegração social. Curiosamente, as mulheres são praticamente excluídas desse debate. A solução para o problema residiria no retorno aos valores tradicionais. Tudo se passaria como se a esfera privada tivesse de ser o suporte da vida da nação, enquanto as decisões que importam a esta seriam tomadas apenas pelos elementos masculinos. Este ideal cultural com as mães tendo a seu cargo a educação dos filhos limita obviamente a participação das mulheres na vida pública, confinando-as à esfera privada da vida doméstica, e reforça o conceito de esfera pública como um domínio do masculino.

Quem defende o retorno aos valores tradicionais pretende que a esfera pública é neutra; mas tal neutralidade é muito discutível. O facto de a ela terem acesso, com uma escandalosa predominância, elementos do sexo masculino afeta de modo decisivo a sua natureza porque uma esfera pública, assim constituída, embora pretenda defender valores universais, acaba por se constituir porta-voz de valores que interessam fundamentalmente à parte da humanidade que representa.

 Por outro lado, no mundo moderno e na civilização ocidental, a autoridade masculina está em crise, não tanto por vitória das mulheres, mas mais pelo facto de os homens terem abusado da autoridade que detinham sobre os elementos da esfera privada: crianças molestadas pelos pais biológicos ou por membros do clero, mulheres ou amantes assassinadas, assédio sexual nos locais de trabalho, são façanhas que põem em cheque uma autoridade que durante muito tempo foi reconhecida, porque vista como protetora dos mais fracos. Muitas mulheres tiveram de lançar mão dos seus próprios recursos e começaram a perceber que a autoridade masculina afinal defendia interesses que as transcendiam; puderam assim denunciar a falácia existente: a esfera pública apenas pretensamente defende valores universais, de facto não pode deixar de reflectir os interesses da parte masculina da humanidade que maioritariamente a constitui.

Por tudo isto, hoje em dia, as mulheres trabalhadoras continuam a enfrentar discriminação, desencorajamento e falta de apoio para as lides domésticas. Em numerosas situações o sucesso profissional dos homens repousa numa retaguarda protegida por mulheres que tomam a seu cargo a tarefa de lhes criarem um ambiente favorável a esse sucesso, ora é exatamente o contrário o que se passa com as mulheres trabalhadoras.

 

 

 

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Ética sexual cristã


Os princípios fundamentais da ética sexual cristã foram elaborados por Tomás de Aquino (1224/ 1225-1274), doutor da Igreja, e ainda hoje fazem parte integrante da doutrina católica oficial.

Obreiro da síntese entre aristotelismo e cristianismo, Aquino vai tirar partido da imensa parafernália conceptual de Aristóteles para elaborar as suas teses. Na Suma Teológica formula uma teoria da sexualidade baseada no conceito aristotélico de Lei natural: Deus implantou nos humanos uma inclinação/instinto para o coito heterossexual e por isso os humanos quando se dedicam à atividade sexual estão a realizar o propósito divino e nada de mau há nisso porque o que é natural é bom, entre ser e dever ser não há rutura.

De acordo com a ontologia teleológica que perfilhou, a virtude de uma coisa consiste em respeitar a sua própria natureza, o seu fim ou telos. Todas as criaturas foram criadas para um determinado fim que está como que inscrito na sua própria natureza. Partindo da natureza de cada ser pode deduzir-se um princípio ético fundamental: para cada criatura o que é bom é cumprir o fim para que foi criada; aplicando o princípio teleológico à sexualidade, não vão restar dúvidas do que é eticamente aceitável e do que é eticamente condenável.

Estabelecida a relação causal entre sexo e reprodução, Tomás de Aquino vai só legitimar o sexo quando ele estiver aberto à reprodução. É natural que homens e mulheres se unam para garantir a preservação da espécie, por isso o único tipo de atividade sexual eticamente aceitável é a relação heterossexual porque é a que conduz à conceção de crianças. Segue-se que o sexo não procriativo, meramente recreativo, não é natural e por isso é um crime contra a natureza e também contra Deus que ordenou a própria natureza.

A finalidade, o telos, do sémen e da ejaculação é a “produção” de crianças e em última análise a perpetuação da espécie (na senda aristotélica ignora completamente o papel ativo da mulher na conceção). Quando a ejaculação não cumpre este propósito, a atividade sexual não é natural e é mesmo pecaminosa; com base nesta premissa, Tomas de Aquino execrava a masturbação, o sexo anal, o sexo oral e a bestialidade e, obviamente, o recurso a qualquer prática anticoncecional.

Para além dos crimes sexuais contra a natureza, reconhece os crimes sexuais contra os interesses da pessoa, tais como incesto, violação e  adultério (da mulher, claro). A violação, por exemplo, tem formalmente menor gravidade do que a masturbação ou a prática anticoncecional porque os pecados contra a natureza são pecados capitais enquanto os pecados contra os interesses da pessoa são apenas pecados veniais.

Parece chocante considerar mais grave a masturbação do que a violação; mas isto enquadra-se na lógica segundo a qual o que é natural é bom! A violação é um ato sexual procriativo, isso é o que mais importa, importa menos a violência e o abuso cometido contra uma pessoa, porque aí o sexo não contraria o desígnio divino!

Uma ética que pretende deduzir o dever ser do ser é filosoficamente irrelevante porque se limita a legitimar e a justificar o que entende ser a ordem natural das coisas; perverte o objetivo que deve presidir à reflexão ética que é o de contribuir para a construção de uma ordem social melhor, justa e virtuosa, qualitativamente diferente da que existe na natureza. Logo, parece plausível acreditar que, se se despende tanto trabalho e energia só para justificar o que existe na natureza, é porque aqueles que se entregam a essa tarefa têm privilégios que decorrem dessa ordem natural e não os querem perder.

Entendamo-nos, uma coisa é a ordem natural e outra a ordem social. A ordem natural é o dado, aquilo que à partida se apresenta; a ordem social é o construído; aquilo a que chegamos. O dado, em si mesmo, não é justo nem injusto, é neutro do ponto de vista ético, mas fazer dele a base para o justo e o injusto é pretender justificar desse modo uma ordem social que incorpora na sua estrutura aquilo que devia ser corrigido e contrariado.

A ética cristã, como outras éticas de matriz religiosa, ao pretender limitar o individuo à natureza, está a fazer aquilo que devia evitar a todo o custo, sob pena de entrar em contradição profunda, está a reduzir o ser humano à pura animalidade; por exemplo, ao pretender que uma mulher não controle a sua capacidade reprodutiva está a equipará-la a qualquer outra fêmea do reino animal, ora o que distinguiu o ser humano foi a capacidade de transcender a natureza e criar cultura.

 

 

 

 

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Juventude e beleza são importantes - mas só para as mulheres


Juventude e beleza são importantes - mas só para as mulheres!
Esta afirmação é mais do que comprovada, se conhecermos alguns dados relativos a atrizes e atores de filmes de Hollywood. Para encontrar papéis principais, as mulheres tem de ser belas, jovens e esbeltas. Em contrapartida os galãs continuam a ser galãs, mesmo quando se aproximam ou mesmo excedem os cinquenta, os casos são tantos que quase não seria preciso enumerá-los, mas não se resiste a apontar, a título de mero exemplo, George Clooney, Richard Gere, Harrison Ford, Robert de Niro, ou ainda Robert Redford, este último em idade bem avançada.

Para eles, as rugas, os cabelos grisalhos e a flacidez são sinal de distinção, para elas, de exclusão. E, o que é mais, continuam a contracenar com jovens atrizes que podiam ser suas filhas ou às vezes … netas.

Depois dos quarentas não há lugar para as mulheres na meca do cinema, pelo menos no que toca a papéis principais; assim, enquanto os espectadores do sexo masculino se podem identificar com “heróis” de cabelos brancos, barriga próspera e idade madura, as mulheres estão condenadas a fazerem os possíveis e impossíveis, numa tentativa tão desesperada quanto caricata, para se aproximarem das jovens esbeltas, lindas e jovens que lhes apresentam como modelo exclusivo.

Atrizes notáveis deixam de ter papéis; em contrapartida atores medíocres continuam a “vender” bem. Em 2009 a revista Spike publicou os nomes de atrizes que teriam passado o prazo de validade; agora, reparem, a lista inclui nomes como os de Nicole Kidman (43), Sarah Jessica Parker (45), Cameron Diaz (38), e Julia Roberts (43).

Este escandaloso tratamento diferencial de homens e mulheres ao nível do cinema é mais um sintoma do sexismo ainda reinante e mostra bem o mau negócio que a preocupação excessiva com a aparência representa para as mulheres, preocupação essa que afinal, bem vistas as coisas, lhes é imposta socialmente, embora também tenha de se reconhecer que muitas ficam de tal modo deslumbradas que não conseguem resistir-lhe, sem perceberem que, passados os anos áureos, só lhes resta a apagada e vil tristeza dos lugares menores e de uma certa forma de inexistência.

 

 

domingo, 9 de setembro de 2012

Sexo, Amor e Romance nos Mass Media

Mary-LouGalician, autora de Sex, Love and Romance in the Mass Media, considerou que os mass media têm inculcado nas pessoas uma série de ideias feitas acerca do amor, autênticos mitos românticos. O problema mais grave com estes mitos é que, embora muitas pessoas os reconheçam enquanto tal, numa estrutura mais profunda do seu psiquismo “acreditam” neles e, assim, quando as expectativas irrealistas que eles veiculam chocam com a dura realidade preferem desistir dessa realidade a desistirem deles.
Apresento a seguir essas crenças que, embora tão caras e confortáveis, deveríamos escrutinar criticamente:

1. O amor à primeira vista existe realmente.

2. Quem ama adivinha aquilo que a pessoa amada pensa ou sente, mesmo que ela não verbalize.

3. Se houver amor, o sexo não vai constituir qualquer problema, será sempre maravilhoso.

4. O homem não deve ter estatura, idade, riqueza inteligência ou saber inferior a companheira.

5. Se uma mulher amar verdadeiramente um homem pode mudar o caráter deste para melhor, pode transformar um “bruto” num “príncipe”.

6. Um homem não espera que a mulher pareça um “ícone sexual”.

7. O que é preciso é haver amor, as diferenças de valores e de opiniões não importam.

8. O verdadeiro companheiro completa a amada, satisfazendo as suas necessidades e permitindo que os seus sonhos se tornem realidade.

9. Na vida real os atores são muitas vezes parecidos com os carateres românticos que personificam.

10. Dado que os retratos de romance dos mass media não são reais eles não nos afetam.

Se você espera isto do amor e subscreve algumas ou todas estas crenças, está na altura de parar para pensar!

domingo, 2 de setembro de 2012

Shulamith Firestone - uma mente brilhante

Morreu Shulamith Firestone (1945-2012), feminista radical, que na década de setenta, com apenas vinte e cinco anos, publicou a Dialética do Sexo.

Há muito que Firestone estava afastada da vida pública, vítima de perturbação mental, provavelmente agudizada pelas incompreensões que um trabalho tão revolucionário suscitou. O que sabemos e sabemos muito pouco, é que após a publicação se retirou do convívio dos mortais para acabar em fins de Agosto de 2012 por ser encontrada morta no apartamento onde residiu durante três décadas. Morreu como viveu, sozinha, solitária e totalmente incompreendida por homens mas também por mulheres que não lhe perdoaram ter denunciado como fonte de opressão aquilo que, apesar de todos os desconfortos, consideram ser o alicerce das suas vidas: a família nuclear heterossexual.

Em A Dialética do Sexo concebe uma utopia que libertaria as mulheres da opressão a que desde tempos imemoriais têm estado sujeitas. Mas as suas ideias, muitas das quais parecem corretas e pertinentes, constituíam então, como aliás ainda hoje, uma verdade inconveniente e como tal foram mais ou menos deturpadas e sobretudo silenciadas. Firestone está a milhas de distância do politicamente correto, não advoga compromissos, não acredita em panos quentes e assim, mesmo para muitas feministas, é uma voz incómoda. Mas de qualquer modo é a voz de uma mulher que, dotada de uma mente brilhante, esteve à frente do seu tempo.

Como se pode constatar, a grande maioria dos blogs, mesmo os de vocação feminista, nem sequer deram a notícia do seu desaparecimento, o que prova bem o poder das ideias e o receio de que afinal estas também sirvam para mudar o mundo, se forem devidamente divulgadas e assimiladas. Neste meu blog já dediquei vários textos à divulgação do pensamento de Firestone, mas o caso é isolado, não tem audiência que preocupe quem quer que seja, e até serve para mostar que afinal há pluralismo informativo.

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

A mulher é complementar do homem! Ouvi bem?

A futura constituição da Tunísia inclui um artigo no qual a posição da mulher é definida como complementar da do homem. Este artigo está gerar controvérsia, fruto de justificados receios.

A teoria da complementaridade entre os sexos, elaborada no século XVIII, não pressupunha o conceito de igualdade mas sim o de diferença e implicava para a mulher um estatuto limitado já que a definia em função dos interesses do núcleo familiar e esquecia “discretamente” a sua individualidade. Nessa altura, mesmo filósofos como o esclarecido Kant aceitavam o princípio estabelecido pelo costume de que as mulheres eram dependentes de pais, maridos ou irmãos, uma espécie de menores perante a lei. Mas isto foi há mais de dois seculos. Querer restabelecer esta teoria em pleno século XXI só pode ter a ver com a tentativa de fazer a história andar para trás, até porque a Tunísia foi um país que esteve na vanguarda do mundo árabe quando em 1956 aboliu a poligamia, permitiu o divórcio e o direito das raparigas à educação e estabeleceu a idade mínima para o casamento.

Associações ligadas aos direitos humanos na Tunísia exigem a eliminação deste artigo da constituição que pelos visto até teve o aval de partidos de esquerda embora tudo leve a crer dever ser o resultado da pressão exercida do partido islamita que ainda recentemente, através da sua fação mais radical exigiu que fosse retirada a nacionalidade tunisina à atleta Habiba Ghribi, medalha de prata em Londres, por ter usado o tipo de vestuário comum a todas as participantes na corrida, considerado indecente por aqueles que exigem um vestuário feminino em conformidade com as regras “do recato e da modéstia”

Estes incidentes, o mais grave dos quais parece ser a tal tentativa de introduzir o princípio da complementaridade, fazem-me mais uma vez suspeitar de que afinal a tão aplaudida primavera árabe ainda vai desembocar em rigorosa invernia.
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quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Sexo e reciprocidade em Kant

Segundo Kant, a atividade sexual humana, como a animal, é de raiz instintiva; encontra-se ao serviço da perpetuação da espécie e, a fim de que esse objetivo seja conseguido, tem de ser gratificante para o indivíduo.

Como qualquer outra atividade instintiva, é de natureza apropriativa: assim como para satisfazermos a fome ou a sede nos apropriamos de alimentos e bebidas (coisas), para satisfazermos a necessidade sexual, apropriamo-nos do sexo de outra pessoa. Mas o sexo não é dissociável da pessoa, por isso, diz Kant, quando nos apropriamos do sexo, tratamos a pessoa como se fosse uma coisa e esse comportamento, não sendo eticamente admissível, transforma a atividade sexual em algo degradante.

Admitido isto, pergunta como podemos minorar os inconvenientes dessa atividade instintiva tão forte e avassaladora e considera que só será possível legitimar a atividade sexual estipulando deveres para aqueles que se lhe entregam; deverão fazê-lo num quadro normativo expresso no contrato de casamento monogâmico: eu posso tratar o outro como um objeto de desejo a partir do momento em que o outro me possa tratar também como um objeto de desejo, isto é, só o consentimento e a reciprocidade legitimam a objetificação.

Kant desenvolveu estas considerações sobre sexo nos finais do século XVIII, ou seja há mais de dois séculos, mas, se tirarmos o invólucro do casamento monogâmico, perfeitamente descartável sem atraiçoar o principio ideológico, restam duas ideias plenas de atualidade, (1) a atividade sexual humana comporta uma dimensão ética porque, quer queiramos quer não, somos animais, mas falantes e racionais, capazes de investir significado no que fazemos e, portanto, (2) percebemos que o sexo, na medida em que implica entrar em relação com o outro, como qualquer outra atividade interpessoal, não pode ignorar os legítimos interesses do outro, isto é os seus direitos, simétricos dos nossos.

Eu acho que esta visão do sexo revela extraordinária lucidez, tão mais surpreendente quanto vem de alguém cuja experiência sexual foi escassíssima, para dizer o mínimo, e que alimentou e expressou sentimentos misóginos; apesar destas limitações óbvias, Kant, personalidade extremamente inteligente e arguta, conseguiu ver mais longe do que muitos outros e, embora nem sempre devidamente reconhecido, ficamos a dever-lhe algo importante.

Poderá dizer-se, como o fez Alan Soble, um expert na matéria, que Kant ignorou a verdadeira natureza humana, que quis preservar para o ser humano uma dignidade e um valor próprios e que quis colocar no sexo aquilo que não lhe convém nem se lhe adapta. Sexo, pretende Soble, nada tem a ver com reciprocidade nem com respeito, nem pelo outro nem sequer por si mesmo, sexo é animal e natural, ponto final, parágrafo, muda de linha. Mas Soble esquece que no ser humano tudo o que é natural é também cultural e, se assim é, não podemos descartar tão facilmente as nossas responsabilidades para com nós próprios e para com os outros.

Parafraseando Linda LeMonchek, que não queria discutir o dualismo cartesiano na cama, ninguém quer discutir reciprocidade na cama, mas não pode sentir, nem de perto nem de longe, que ela está em falta, porque, se isso acontecer, pura e simplesmente não alinha, ou não deve alinhar; ponto final, parágrafo, muda de linha.

P.S. Claro que há considerações de Kant sobre sexo com as quais não concordo, Claro que Kant revelou em vários escritos disposições nitidamente misóginas; mas os aspetos acima referidos constituem, em minha opinião, o núcleo do seu pensamento sobre esta matéria e de certo modo contém as potencialidades positivas que assinalei.

sábado, 25 de agosto de 2012

"Amor confluente" e desigualdades estruturais

Anthony Giddens (1938) é um sociólogo britânico contemporâneo que em The Transformation of Intimacy se debruça sobre o amor e a relação amorosa heterossexual. Conceitos-chave do seu trabalho são os de “amor confluente”, “relação pura” e “plasticidade sexual”.

Segundo Giddens, a erosão das tradições no mundo contemporâneo, visível sobretudo na cultura Ocidental, permitiu aos indivíduos definirem com muito maior liberdade pessoal o que querem para as suas vidas e fazerem escolhas que os definem e que constroem a sua própria identidade. Neste novo contexto, surgiu aquilo a que ele chama “amor confluente” que se carateriza pelo facto de a relação amorosa ser uma “relação pura”, isto é, uma situação em que as pessoas mantêm a relação por ela própria e não por interesses estranhos: filhos, interesses familiares ou económicos; as pessoas apenas se mantém juntas enquanto a relação se revela gratificante, enquanto ambas as partes se sentem satisfeitas e decidem permanecer juntas.

Em sua opinião, este tipo de relação exige igualdade entre as partes, ambas responsáveis pela manutenção da relação; neste tipo de relação, as preocupações com o corpo e com a exploração do prazer sexual são fundamentais. Neste aspeto, as mulheres teriam conseguido uma autêntica revolução na sua autonomia sexual procurando o seu prazer de modo não decidido pelos homens, tornada possível graças à dissociação entre prazer e procriação, e permitiu que a sexualidade fosse definida como um meio de auto realização, como uma forma de expressão e de intimidade – aquilo a que chama “plasticidade sexual”.

Giddens é otimista pois pensa que estas transformações na vivência da intimidade amorosa criam condições de igualdade entre homem e mulher e têm repercussão a nível da vida social. Quer dizer, aquilo a que ele chama amor confluente, plasticidade sexual e relação pura têm em sua opinião potencial para operar transformações a nível da vida social. Uma relação pura bem-sucedida, mesmo supondo alguma tensão entre as partes, cria condições de estabilidade psicológica e de segurança ontológica. Contra quem insiste na natureza opressiva da intimidade, Giddens insiste que esta pode operar transformações no sentido da democratização das relações pessoais, no sentido da igualdade de género.

Todavia, esta visão otimista não é corroborada por algumas feministas, como por exemplo, Christine Delphy muito cética quanto a possibilidade de se operarem modificações a nível do social e das estruturas patriarcais se se começar pela família e pela relação heterossexual. Giddens parece estar bem-intencionado, mas também parece ignorar uma das mais persistentes teses das autoras feministas, a de que a opressão tem na origem e no seu cerne estruturas opressivas e não relações individuais. Mas, se aceitarmos a existência de um movimento dialético, podemos supor que mudanças a nível das relações individuais também podem potenciar mudanças sociais.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

"Caça às bruxas"


Transcrevo, com a devida vénia, o artigo de Rosangela Angelin publicado no blog da Revista Espaço Académico:

http://espacoacademico.wordpress.com/2012/08/04/a-caca-as-bruxas-uma-interpretacao-feminista/

A “caça às bruxas é um elemento histórico da Idade Média. Entre os séculos XV e XVI o “teocentrismo” – Deus como o centro de tudo – decai dando lugar ao “antropocentrismo“, onde o ser humano passa a ocupar o centro. Assim, a arte, a ciência e a filosofia desvincularam-se cada vez mais da teologia cristã, conduzindo, com isso a uma instabilidade e descentralização do poder da Igreja. Como uma forma de reconquistar o centro das atenções e o poder perdido, a Igreja Católica instaurou os “Tribunais da Inquisição”, efetivando-se assim a “caça às bruxas“. Mas quem eram, enfim, estas mulheres que fizeram parte de um capítulo tão horrendo da história da humanidade, e por que o feminismo retoma as bruxas como um dos seus principais símbolos?

1. A “caça às bruxas”
A “caça às bruxas” durou mais de quatro séculos e ocorreu, principalmente, na Europa, iniciando-se, de fato, em1450 e tendo seu fim somente por volta de 1750, com a ascensão do Iluminismo. A “caça às bruxas” admitiu diferentes formas, dependendo das regiões em que ocorreu, porém, não perdeu sua característica principal: uma massiva campanha judicial realizada pela Igreja e pela classe dominante contra as mulheres da população rural (EHRENREICH & ENGLISH, 1984: 10). Essa campanha foi assumida, tanto pela Igreja Católica, como a Protestante e até pelo próprio Estado, tendo um significado religioso, político e sexual. Estima-se que aproximadamente 9 milhões de pessoas foram acusadas, julgadas e mortas neste período, onde mais de 80% eram mulheres, incluindo crianças e moças que haviam “herdado este mal” (MENSCHIK, 1977: 132).

1.1. Quem eram as bruxas
Ao buscarmos uma definição do termo “bruxa” em dicionários, logo pode-se perceber a direta vinculação com uma figura maléfica, feia e perigosa. Neste sentido, também os livros infanto-juvenis costumam descrever histórias onde existe uma fada boa e linda e uma bruxa má e horrível. [1]
Ao analisarmos o contexto histórico da Idade Média, vemos que bruxas eram as parteiras, as enfermeiras e as assistentes. Conheciam e entendiam sobre o emprego de plantas medicinais para curar enfermidades e epidemias nas comunidades em que viviam e, consequentemente, eram portadoras de um elevado poder social. Estas mulheres eram, muitas vezes, a única possibilidade de atendimento médico para mulheres e pessoas pobres. Elas foram por um longo período médicas sem título. Aprendiam o ofício umas com as outras e passavam esse conhecimento para suas filhas, vizinhas e amigas.
Segundo afirmam EHERENREICH & ENGLISH (1984, S. 13), as bruxas não surgiram espontaneamente, mas foram fruto de uma campanha de terror realizada pela classe dominante. Poucas dessas mulheres realmente pertenciam à bruxaria, porém, criou-se uma histeria generalizada na população, de forma que muitas das mulheres acusadas passavam a acreditar que eram mesmo bruxas e que possuíam um “pacto com o demônio”.
O estereótipo das bruxas era caracterizado, principalmente, por mulheres de aparência desagradável ou com alguma deficiência física, idosas, mentalmente perturbadas, mas também por mulheres bonitas que haviam ferido o ego de poderosos ou que despertavam desejos em padres celibatários ou homens casados.

1.2. A “caça às bruxas e o “Tribunal da Inquisição”
Com a ascensão da Igreja Católica, o patriarcado imperou, até mesmo porque Jesus era um homem. Neste contexto, tudo o que a mulher tentava realizar, por conta própria, era visto como uma imoralidade (ALAMBERT, Ano II: 7). Os costumes pagãos que adoravam deuses e deusas passaram a ser considerados uma ameaça. Em 1233, o papa Gregório IX instituiu o Tribunal Católico Romano, conhecido como “Inquisição” ou “Tribunal do Santo Ofício”, que tinha o objetivo de terminar com a heresia e com os que não praticavam o catolicismo. Em 1320 a Igreja declarou oficialmente que a bruxaria e a antiga religião dos pagãos representavam uma ameaça ao cristianismo, iniciando-se assim, lentamente, a perseguição aos hereges.
A “caça às bruxas” coincidiu com grandes mudanças sociais em curso na Europa. A nova conjuntura gerou instabilidade e descentralização no poder da Igreja. Além disso, a Europa foi assolada neste período por muitas guerras, cruzadas, pragas e revoltas camponesas, e se buscava culpados para tudo isso. Sendo assim, não foi difícil para a Igreja encontrar motivos para a perseguição das bruxas.
Para reconquistar o centro das atenções e o poder, a Igreja Católica efetivou a conhecida “caça às bruxas”. Com o apoio do Estado, criou tribunais, os chamados “Tribunais da Inquisição” ou “Tribunais do Santo Ofício”, os quais perseguiam, julgavam e condenavam todas as pessoas que representavam algum tipo de ameaça às doutrinas cristãs. As penas variavam entre a prisão temporária até a morte na fogueira. Em 1484 foi publicado pela Igreja Católica o chamado “Malleus Maleficarum”, mais conhecido como “Martelo das Bruxas”. Este livro continha uma lista de requerimentos e indícios para se condenar uma bruxa. Em uma de suas passagens, afirmava claramente, que as mulheres deveriam ser mais visadas neste processo, pois estas seriam, “naturalmente”, mais propensas às feitiçarias (MENSCHIK, 1977: 132 e EHRENREICH & ENGLISH, 1984: 13).

1. 3. Os “crimes” praticados pelas bruxas
No contexto da “caça às bruxas” havia várias acusações contra as mulheres. As vítimas eram acusadas de praticar crimes sexuais contra os homens, tendo firmado um “pacto como demônio”. Também eram culpadas por se organizarem em grupos – geralmente reuniam-se para trocar conhecimentos acerca de ervas medicinais, conversar sobre problemas comuns ou notícias. Outra acusação levantada contra elas, era de que possuíam “poderes mágicos”, os quais provocavam problemas de saúde na população, problemas espirituais e catástrofes naturais (EHRENREICH & ENGLISH, 1984: 15).
Além disso, o fato dessas mulheres usarem seus conhecimentos para a cura de doenças e epidemias ocorridas em seus povoados, acabou despertando a ira da instituição médica masculina em ascensão, que viu na Inquisição um bom método de eliminar as suas concorrentes econômicas, aliando-se a ela.

1.4. Perseguição e condenação à fogueira
Qualquer pessoa podia ser denunciada ao “Tribunal da Inquisição”. Os suspeitos, em sua grande maioria mulheres, eram presos e considerados culpados até provarem sua inocência. Geralmente, não podiam ser mortos antes de confessarem sua ligação com o demônio. Na busca de provas de culpabilidade ou a confissão do crime, eram utilizados procedimentos de tortura como: raspar os pêlos de todo o corpo em busca de marcas do diabo, que podiam ser verrugas ou sardas; perfuração da língua; imersão em água quente; tortura em rodas; perfuração do corpo da vítima com agulhas, na busca de uma parte indolor do corpo, parte esta que teria sido “tocada pelo diabo”; surras violentas; estupros com objetos cortantes; decapitação dos seios. A intenção era torturar as vítimas até que assinassem confissões preparadas pelos inquisidores. Geralmente, quem sustentava sua inocência, acabava sendo queimada viva. Já as que confessavam, tinham uma morte mais misericordiosa: eram estranguladas antes de serem queimadas. Em alguns países, como Alemanha e França, eram usadas madeiras verdes nas fogueiras para prorrogar o sofrimento das vítimas. E, na Itália e Espanha, as bruxas eram sempre queimadas vivas. Os postos de caçadores de bruxas e informantes eram financeiramente muito rentáveis. Estes, eram pagos pelo Tribunal por condenação ocorrida e os bens dos condenados eram todos confiscados.
O fim da “caça às bruxas” ocorreu somente no século XVIII, sendo que a última fogueira foi acesa em 1782, na Suíça. Porém, a Lei da Igreja Católica que fundou os “Tribunais da Inquisição”, permaneceu em vigor até meados do século XX. A “caça às bruxas” foi, sem dúvida, um processo bem organizado, financiado e realizado conjuntamente pela Igreja e o Estado.

2. O feminismo e o resgate da imagem das bruxas
Diante de tantas mortes de mulheres acusadas por bruxaria durante este período, podemos afirmar que o ocorrido se tratou de um verdadeiro genocídio contra o sexo feminino, com a finalidade de manter o poder da Igreja e punir as mulheres que ousavam manifestar seus conhecimentos médicos, políticos ou religiosos. Existem registros de que, em algumas regiões da Europa a bruxaria era compreendida como uma revolta de camponeses conduzida pelas mulheres (EHRENREICH & ENGLISH, 1984: 12). Nesse contexto político, pode-se citar a camponesa Joana D`arc, que aos 17 anos, em 1429, comandou o exército francês, lutando contra a ocupação inglesa. Esta acabou sendo julgada como feiticeira e herege pela Inquisição e queimada na fogueira antes de completar 20 anos. Diante disso, configurava-se a clara intenção da classe dominante em conter um avanço da atuação destas mulheres e em acabar com seu poder na sociedade, a tal ponto que se utilizava meios de simplesmente exterminá-las.
O feminismo busca resgatar a verdadeira imagem das bruxas em nossa história, analisando não somente os aspetos religiosos, mas também políticos e sociais que envolveram a “caça às bruxas” na Idade Média. No olhar feminista, as bruxas, através de seus conhecimentos medicinais e sua atuação em suas comunidades, exerciam um contrapoder, afrontando o patriarcado e, principalmente, o poder da Igreja. Em verdade, elas nada mais foram do que vítimas do patriarcado (ALAMBERT, Ano II, n° 48: 7). Atualmente, as mulheres ainda continuam sendo discriminadas e duramente criticadas por lutarem pela igualdade de gênero e a divisão do poder social e econômico, que ainda é predominantemente masculino, continuando vítimas do patriarcado. Por isto, as bruxas representam para o movimento feminista não somente resistência, força, coragem, mas também a rebeldia na busca de novos horizontes emancipadores.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Faço o que me dizem e como o que me dão!!

A crença de que a natureza feminina implica uma componente masoquista, ainda hoje amplamente difundida, parte do pressuposto de que as mulheres têm uma predisposição biológica para o masoquismo.

Comportar-se passivamente, todavia, não é de modo algum sinónimo de felicidade ou sequer de prazer; qualquer ser humano, em princípio, aprecia a atividade, aprecia poder dispor de si, tomar iniciativas, etc. etc. Esta caraterística, visível nas crianças desde os primeiros anos do seu desenvolvimento, é frequentemente contrariada pelos adultos a pretexto de perigos vários e neste particular caso as meninas e as jovens são muitas vezes fortemente condicionadas a aceitarem um amplo leque de limitações; temos assim que em boa verdade são socialmente predispostas desde a mais tenra infância para o masoquismo.

A ideia de que o masoquismo é inerente à natureza feminina ganhou força no século XIX e contou com a autoridade de Freud que lhe forneceu a respetiva formulação teórica. Recorria-se então a essa predisposição para explicar a passividade das mulheres tanto nas relações sexuais como nas relações sociais. O masoquismo seria a causa e a passividade o efeito, mas podemos bem perguntar se esta relação não estaria equivocada no sentido e se não se estaria a pôr o carro à frente dos bois, confusão afinal mais frequente do que se pode imaginar. De qualquer modo, por motivos de pura conveniência pragmática, importava convencer as mulheres de que adoravam a passividade, adoravam ser dominadas, apreciavam ser tratadas como coisas, sobretudo se essas coisas fossem consideradas valiosas.

Mas como todos os seres humanos e também todos os mamíferos, pelo menos os que nos são mais próximos, gostam de ação, de domínio, de poder, quando se diz que alguns não gostam, o melhor é tentar descobrir a quem é que esse não gosto aproveita. Ora não é preciso escavar muito para descobrir que esse não gosto das mulheres pelo exercício do poder convém, e muito, aos homens. Por isso, não é de estranhar que, quando a partir do século XIX a relação de forças se começou a alterar, com a industrialização e o acesso das mulheres a postos de trabalho remunerados, se procurasse conferir um estatuto científico a essa crença. Afinal se até era científico, a partir daí o que é que as mulheres poderiam fazer? Podiam apenas fazer como o D. João VI da nossa história pátria que à pergunta: Juraste a Constituição, que fazes agora João? Respondeu com bonomia e sentido crítico: faço o que me dizem e como o que me dão!

Resumindo, as mulheres perceberam que o melhor seria fazer da necessidade virtude; como não podiam dominar e tinham de se submeter, como não podiam ser ativas e tinham de ser passivas, então, seria "mais sensato"apreciarem a submissão, amarem a passividade e a orientação de outrem, aceitarem “livremente” a escravidão!

O curioso é que ainda hoje, jovens, pretensamente evoluídas, saem a terreiro para defender este papelão que a sociedade lhes reservou e falam em companheiros dominadores aos quais gostam de se submeter.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Ser sexy - projeto de vida


No meu último texto, abordei o tema da alienação feminina, considerando que a objetificação sexual era um dos fatores que exprimia e contribuía para essa alienação. Um estudo recente fornece evidência empírica neste mesmo sentido.

Nas nossas sociedades, o que é natural, porque habitual, é que as jovens se percebam a elas mesmas como objetos sexuais. Continuam a ser estimuladas a preocuparem-se excessivamente com a aparência física como se o seu valor residisse precisamente em serem bonitas, atraentes e sobretudo sexy. Os modelos que os media lhes apresentam são sobretudo de cantoras, atrizes e manequins, nada de cientistas, muito menos astronautas ou sequer simples técnicas em qualquer campo profissional. Aparentemente ninguém vê nada de mal nem de mais nisso e, desse modo tão simples, tão natural e “inevitável”, sem qualquer intervenção direta ou proibição, o futuro continua eternamente adiado.

O mais espantoso ainda é observar-se como a idade em que as mulheres são convidadas a objetificarem-se tem recuado espantosamente. Investigações recentes mostram que desde os seis anos a maior parte das meninas tendem a pensar-se a si mesmas como objetos sexuais. Um estudo levado a cabo em Galesburg, no Knox College, revelou que, confrontadas com dois modelos de bonecas, uma, vestida com mini-saia, decote, sapatos altos e outros adereços, era preferida pela larga maioria das inquiridas a outra boneca vestida bem mais simplesmente com jeans e sapatos confortáveis. Na maioria dos casos, as meninas tendiam a identificar-se com a boneca sexy, aquela com a qual gostariam de parecer-se. É de supor que essa identificação era motivada pela crença de que ser sexy as tornaria mais populares, com as vantagens sociais que daí adviriam.

Ser popular é desejo de meninas, mas também de meninos; todavia, enquanto o caminho aberto às meninas para atingir esse objetivo passa por ser sexy, o mesmo não acontece com os meninos, para os quais ser popular é ser bom jogador, atleta, ou brilhante em outra qualquer atividade.

Neste mesmo estudo, composto por três amostras de meninas, duas recrutadas em escolas públicas e outra num estúdio de dança local, verificou-se que, para as meninas deste terceiro subgrupo, a boneca não sexy era a mais frequentemente escolhida; Como hipótese explicativa apontava-se o facto de que o dedicarem-se a uma atividade física, no caso a dança, estimulava uma maior apreciação pelo próprio corpo e uma autoimagem mais positiva, com a perceção de que ser sexy não é a única função do corpo e, porventura, não é a função mais importante.

Muitos fatores parecem explicar a tendência das meninas a valorizarem o corpo enquanto objeto sexual. Para começar os media e os modelos que propõem, mas também o exemplo das próprias mães. Em qualquer dos casos, um contexto extremamente difícil de mudar.

terça-feira, 10 de julho de 2012

Para uma teoria da alienação feminina

Ficamos a dever a Karl Marx a exploração do conceito de alienação; mas a teoria da alienação, tal como Marx a formulou, não é aplicável à condição das mulheres enquanto mulheres.
Segundo Marx, o trabalhador é alienado por dois motivos básicos: (1) primeiro porque é despojado do produto do seu trabalho – não tem controlo sobre aquilo que produz – (2)segundo, porque é impedido de realizar as suas potencialidades como ser humano, dado que não participa na organização do trabalho, não controla a sua atividade produtiva e é encarado como mais uma ferramenta que está ali para produzir um produto. A alienação do trabalhador é-lhe imposta de fora e ele sente-a negativamente; implica a fragmentação da pessoa humana e o impedimento de exercer funções especificamente humanas.
Para o trabalhador alienado, o trabalho em vez de ser fonte de humanização é uma função à qual ele quer escapar o mais depressa possível, apenas um fardo que tem de carregar para subsistir, como o animal de carga, alimentado pelo dono enquanto desempenhar a tarefa.

Mas a alienação sofrida pela mulher enquanto mulher – e não apenas enquanto trabalhadora - é diferente da alienação dos trabalhadores e Marx não forneceu instrumentos concetuais para lidarmos com ela. Assim, torna-se necessário construir uma teoria da alienação que a explique.

(1) Em primeiro lugar, a mulher sofre alienação cultural porque é obrigada a assimilar uma cultura para a qual não contribuiu, da produção da qual foi metódica e sistematicamente afastada, cujo objetivo básico é dominá-la; para o percebermos, basta lembrar a linguagem e a carga sexista implícita, a literatura enquanto veículo de misoginia, a ciência e a filosofia, igualmente eivadas de preconceitos sexistas, veiculando uniformemente uma imagem desvalorizada da mulher.

(2)Em segundo lugar, outra fonte de alienação é a objetificação sexual das mulheres, alienadas da sua própria sexualidade, convidadas a verem-se como objetos passivos do desejo de outrem, estimuladas a assumirem um modelo masculino de sexualidade, apresentado como universal. A objetificação sexual significa ser identificada com o corpo, reduzida ao corpo, que como sabemos até tem sido alvo de depreciação pelas religiões, culturas em geral e mesmo pelo senso comum: o ser humano tem corpo, mas a sua dignidade, o seu valor, entende-se, reside na sua mente e personalidade. A objetificação sexual das mulheres é uma forma de empobrecer o seu ser e de o fragmentar.

(3) Por último, mas não menos importante, as mulheres são alienadas do seu próprio corpo que, ao invés de entenderem como um instrumento para conquistarem o mundo e transcenderem a sua condição animal, lhes é apresentado como algo passivo que se destina apenas a ser visto e, em certas condições, a ser apreciado: uma mulher verdadeiramente feminina não corre, não salta, não se arrisca, não é uma «Maria rapaz»; é sossegada, bonita, decorativa.

Todos estes aspetos distinguem a alienação sofrida pelos trabalhadores da sofrida pelas mulheres; (4) mas há um outro, porventura ainda mais preocupante e a requerer explicação pela perplexidade que suscita: enquanto os trabalhadores experimentam a alienação como algo negativo e reagem com a percepção mais ou menos clara de que ela representa uma ameaça à sua identidade como seres humanos plenos, as mulheres, muitas mulheres, são cúmplices da sua própria alienação, não a percebem negativamente e até tiram prazer dela e em muitos casos ainda procuram melhorar a sua «performance», procurando tornar-se mulheres melhores, mais femininas, no que a feminilidade implica de alienação.
Este último aspeto é extremamente importante e uma teoria da alienação das mulheres precisa de explicar. Ora, a chave para a compreensão deste fenómeno parece residir no narcisismo feminino que ao mesmo tempo que resulta da objetificação a reforça e a torna prazerosa já que a mulher tira satisfação erótica do seu corpo enquanto objeto belo.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Sexualidade feminina - alguns equívocos

Todas as pessoas têm necessidade de amor e de calor humano; quando essa necessidade é canalizada para o sexo genital, como se este fosse o único objeto capaz de a satisfazer, falamos em erotismo. Ora, há uma diferença de fundo entre o modo como os homens exprimem o erotismo e o modo como as mulheres o vivem. Os homens desejam as mulheres e nesse sentido comportam-se como sujeitos eróticos; as mulheres desejam ser desejadas pelos homens e nesse sentido percebem-se a elas próprias como objetos eróticos. Assim, enquanto os homens vivem ativamente a sua sexualidade, para uma mulher a sexualidade consiste em ser sexy, em ser sexualmente atraente.

Nas mulheres, e falamos na generalidade dos casos, a sexualidade não exprime um desejo autónomo dirigido para um “objeto” exterior; as mulheres não se assumem como sujeitos dotados de sexualidade e esta atitude é ao mesmo tempo o sintoma de uma situação objetiva de dependência e de subordinação em relação aos homens e o reforço dessa mesma subordinação.

Se, nas mulheres, a sexualidade é a expressão da sua dependência e subordinação percebe-se por que é que usam o sexo para tentar reverter a situação, enquanto arma para “prender” o homem. O curioso ainda é que, uma vez atingido esse objetivo, é frequente desinteressarem-se do sexo.
Este paradoxo é resolvido se percebermos que não se entregam ao sexo pelo prazer que este lhes possa dar, mas como meio para atingir outra coisa, e, nesse processo, estão mais interessadas em agradar ao homem do que em que este lhes agrade. Uma vez atingido o objetivo, uma vez “laçado” o homem, o sexo é descartado como mercadoria sem valor e surgem as tão badaladas, quase anedóticas, dores de cabeça, ou as desculpas com as crianças que absorvem, diz-se, toda a sua energia pela atenção e cuidados que requerem.

Estes são alguns equívocos da vivência da sexualidade pelas mulheres e enquanto não forem encarados com realismo, não se afigura que sejam possíveis grandes progressos na sua emancipação sexual.

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Amor - via para a liberdade ou caminho seguro para a servidão?

O amor romântico ocupa um lugar preponderante na vida das pessoas, individualmente consideradas, e no próprio funcionamento da sociedade como um todo; criticá-lo não é tarefa fácil, requer alguma ousadia e uma boa dose de coragem intelectual.
Afirmar que as relações amorosas heterossexuais são, com uma frequência bem maior do que gostaríamos de reconhecer, um espaço no qual ocorre crueldade mental e violência física e psicológica, mas também um instrumento para as mulheres aceitarem sem recalcitrar, em nome do amor, um lugar de submissão e de subserviência é ir contra a corrente e fazer de desmancha-prazeres.

O amor é visto pela mulher que se lhe entrega como o refúgio de um mundo exterior marcado pela desigualdade e pela agressividade; mas esta perceção é ilusória pois a esfera privada, na qual se vai acantonar, é do mesmo modo um lugar caraterizado pelo exercício de um poder que se abate sobre ela e contra o qual não consegue lutar precisamente por causa do amor que abraçou incondicionalmente.

Conscientes destes perigos bem reais do amor romântico, alguns teóricos contemporâneos, procuram isentar o amor e atribuem a opressão ainda vigente a mecanismos ideológicos de natureza religiosa, legal e cultural que continuam a atuar em favor dos interesses da ordem patriarcal. É esta precisamente a tese defendida por Anthony Giddens.
Giddens considera que o amor romântico está a evoluir para um outro tipo de amor que designa de “amor confluente” (confluent love) - uma espécie de mudança na continuidade -, um amor que supõe negociação entre os parceiros sexuais, visando estabelecer igualdade e reciprocidade na relação.

Para explicar esta mudança no sentido da democratização do amor, invocam-se não só as reivindicações feministas, mas também o exacerbamento do individualismo e da procura do prazer no curto prazo: ninguém está mais disponível para sacrifícios em nome de grandes palavras, a vida é curta, a morte certa e o carpe diem do filósofo torna-se o lema da nossa civilização.

Porque parece salvar o amor, a tese da democratização é muito sedutora; constrói uma narrativa de progresso social e em simultâneo mantém os princípios básicos do romantismo, no pressuposto implícito de que é preciso mudar alguma coisa para que tudo fique na mesma. O amor continua a ser entendido como uma tábua de salvação e não se procede à análise da sua estrutura para decidir se ele é compatível com a apregoada democratização. Além disso, aparentemente a teoria da democratização do amor é consistente, pelo menos as investigações sociológicas não lhe encontram contradições, a igualdade amorosa parece ter pernas para caminhar; mas não será isto apenas wishful thinking? Como é que de repente se passa de um fenómeno – o enamoramento – misterioso, estranho inexplicável, para um enamoramento, negociável e preocupado com princípios de justiça social? Como é que uma realidade se pode manter idêntica quando assume caraterísticas tão diferentes?

Assim o problema em aberto que interessa resolver é o de saber se será possível conhecer a natureza do amor e determinar se ele é, em si mesmo, uma via para a liberdade ou bem pelo contrário o caminho seguro para a servidão.

domingo, 24 de junho de 2012

O 'Eu' e o 'Outro' - transcendência e imanência

As categorias de imanência e de transcendência desempenham um papel fundamental na ontologia existencialista e, particularmente em Simone de Beauvoir, explicam o curso de vida diferente de homens e de mulheres.

A transcendência é o processo através do qual um ser humano ultrapassa – transcende - a condição dada à partida e cria a sua própria vida, fazendo escolhas e tomando decisões. Do ponto de vista metafísico, o sujeito orienta-se para o mundo dos possíveis e não se limita a aceitar o mundo dado como um destino a que passivamente se submete.

Como de Beauvoir refere, os meninos são socializados desde a mais tenra infância no sentido de se tornarem independentes dos adultos, de correrem riscos, fazendo-lhes sentir que se é mais exigente para com eles porque de alguma maneira são superiores: um menino não chora, não se queixa dos outros, não é mariquinhas, etc. etc. São encorajados a serem independentes e punidos se desistirem facilmente do empreendimento. É sempre a sua subjetividade que é estimulada, sob a forma de auto assertividade e autonomia.

Em flagrante contraste, o conceito de imanência tem implicações completamente diferentes. Viver na imanência é permitir que os constrangimentos e as contingências limitem a liberdade do indivíduo, que as assume ao invés de as procurar ultrapassar. O confinamento físico da vida das mulheres é o símbolo do seu confinamento psicológico, se o mundo exterior lhes é vedado, ou significativamente limitado, deixa de existir o mundo dos possíveis e apenas lhes resta a 'opção’ de se submeterem ao que se espera delas, ao mundo dado, percebido como uma necessidade e uma inevitabilidade.
Ora, as mulheres, na medida em que vivem num mundo social que as define como o ‘Outro’ e não essencial, que deixa o protagonismo aos homens, esses sim, definidos como essenciais, ficam condenadas à imanência e a sua subjetividade, embora dificilmente eliminável, já que é definidora de qualquer ser humano, independentemente do sexo, fica extremamente frágil e enfraquecida, condenada na melhor das hipóteses a afirmar-se por vias ínvias e por processos manipuladores.