domingo, 24 de junho de 2012

O 'Eu' e o 'Outro' - transcendência e imanência

As categorias de imanência e de transcendência desempenham um papel fundamental na ontologia existencialista e, particularmente em Simone de Beauvoir, explicam o curso de vida diferente de homens e de mulheres.

A transcendência é o processo através do qual um ser humano ultrapassa – transcende - a condição dada à partida e cria a sua própria vida, fazendo escolhas e tomando decisões. Do ponto de vista metafísico, o sujeito orienta-se para o mundo dos possíveis e não se limita a aceitar o mundo dado como um destino a que passivamente se submete.

Como de Beauvoir refere, os meninos são socializados desde a mais tenra infância no sentido de se tornarem independentes dos adultos, de correrem riscos, fazendo-lhes sentir que se é mais exigente para com eles porque de alguma maneira são superiores: um menino não chora, não se queixa dos outros, não é mariquinhas, etc. etc. São encorajados a serem independentes e punidos se desistirem facilmente do empreendimento. É sempre a sua subjetividade que é estimulada, sob a forma de auto assertividade e autonomia.

Em flagrante contraste, o conceito de imanência tem implicações completamente diferentes. Viver na imanência é permitir que os constrangimentos e as contingências limitem a liberdade do indivíduo, que as assume ao invés de as procurar ultrapassar. O confinamento físico da vida das mulheres é o símbolo do seu confinamento psicológico, se o mundo exterior lhes é vedado, ou significativamente limitado, deixa de existir o mundo dos possíveis e apenas lhes resta a 'opção’ de se submeterem ao que se espera delas, ao mundo dado, percebido como uma necessidade e uma inevitabilidade.
Ora, as mulheres, na medida em que vivem num mundo social que as define como o ‘Outro’ e não essencial, que deixa o protagonismo aos homens, esses sim, definidos como essenciais, ficam condenadas à imanência e a sua subjetividade, embora dificilmente eliminável, já que é definidora de qualquer ser humano, independentemente do sexo, fica extremamente frágil e enfraquecida, condenada na melhor das hipóteses a afirmar-se por vias ínvias e por processos manipuladores.

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Guerra dos sexos ou será possível afirmar o eu sem negar o outro?

Muita gente percebe o amor romântico como uma espécie de refúgio face a uma sociedade extremamente competitiva em que o controlo e a manipulação caraterizam as relações interpessoais. A sua popularidade e prestígio inegável encontram aqui razão de ser.

Podemos, todavia, perguntar - e a pergunta é pertinente - se não estaremos mais uma vez perante um mito social que funciona apenas enquanto acreditarmos nele. Podemos perguntar se a manutenção e mesmo a replicação das relações de domínio/submissão não é inerente ao amor romântico; podemos perguntar se essas relações não se encontram, como hoje se costuma dizer, inscritas no seu ADN.

Wendy Langford, autora de Revolutions of the Heart, refere vários estudos comprovativos de que as relações de género, determinadas pela paixão amorosa, não implicam, ipso facto, igualdade entre os parceiros; e, mesmo quando estes desenvolvem relações de amizade e de respeito mútuo, não há qualquer evidência de que isso decorra da circunstância da relação amorosa.

Efetivamente há caraterísticas do amor romântico que, combinadas com a estrutura social hierárquica em que vivemos, tornam problemática a democratização da relação amorosa; em primeiro lugar, o amor romântico surge com a atração da diferença e, precisamente por isso, não é o melhor lugar para se promover a igualdade; por outro, o desejo que o amante sente de incorporar o outro em si mesmo ou é satisfeito e anula a subjetividade do amado, ou não o é e gera impulsos hostis, motivados pela frustração sentida. Daqui decorre que o amor implica ingredientes que facilitam a sua corrupção pelas relações de poder.

Apesar de o contexto estar longe de ser otimista, para Jessica Benjamin, feminista e psicanalista norte-americana, a dominação não é inerente à essência do amor romântico e as relações amorosas não tem de ser necessariamente relações de domínio/submissão. O que acontece é que a sociedade patriarcal onde elas decorrem, como que as infeta e faz com que os laços de amor degeneram em laços de domínio/submissão.

Jessica Benjamin, tal como de Beauvoir já o havia feito, retoma Hegel e a dialética senhor/escravo. Hegel tinha insistido na duplicidade da realidade psicológica: por um lado, a consciência para existir precisa de se afirmar, negando a existência das outras consciências, mas ao mesmo tempo precisa de reconhecer o outro para que este o reconheça. Quer dizer, cada um de nós vive uma situação paradoxal, quer afirmar-se na sua individualidade única e para isso nega as outras consciências, mas precisa das outras consciências para ser reconhecido e por isso também tem de as reconhecer.
Para Hegel esta tensão resolve-se numa dialética senhor/escravo. A consciência procura manter-se através da escravização do outro, obriga o outro a reconhecê-la. O senhor e o escravo não são identidades essenciais, cada ser humano constrói estas posições no seu psiquismo, mas há condicionantes que em cada indivíduo o levam a reproduzir hierarquias de poder.

Diferentemente do metafísico Hegel, para Benjamin a dominação e a hierarquia não são inevitáveis; para combater a sua inevitabilidade é preciso compreender como as relações de poder se constituem e são construídas; é preciso explicar o desenvolvimento psíquico e o modo como o individuo satisfaz as necessidades de afirmação e de reconhecimento.

Benjamin retoma o complexo de Édipo e mostra como meninos e meninas o resolvem, concluindo que as meninas aprendem a respeitar a subjetividade masculina e a negar a sua própria subjetividade: em flagrante contraste, os meninos afirmam-se como sujeitos, negando a subjetividade feminina, isto é, afirmam o “eu” negando o “outro”.
Desse modo nem os meninos nem as meninas se desenvolvem no sentido de virem a ser adultos equilibrados, em vez disso inclinam-se para uma posição ou para a outra da dialética/senhor escravo. Tanto a identidade feminina como a masculina se remetem a um confinamento solitário que tentam ultrapassar pelo desejo do outro. Mas, dado o contexto, a relação, ao invés de ser uma relação de comunhão e de liberdade, transforma-se numa relação de controlo/submissão. A relação heterossexual revive o paradoxo eu/outro reproduzindo uma estrutura social caraterizada pela subordinação das mulheres aos homens.

A questão que importa resolver é a de saber se, apesar de todas as dificuldades, será possível afirmar o eu sem negar o outro.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

O "Eu", o "Outro" e o amor romântico

“No Segundo Sexo, publicado em 1949, de Beauvoir desenvolveu uma análise hegliana do sistema patriarcal. A dinâmica chave é a tendência fundamental da consciência humana que, ao tomar consciência de si mesma como sujeito e, em simultâneo, ao dar-se conta da existência de outros sujeitos, procura vê-los como objetos, como o “outro” e como “inferior”, numa espécie de defesa contra o medo que sente da subjetividade deles. Se não houver um esforço para reconstruir a reciprocidade - o reconhecimento dos outros como seres livres e iguais -, esta tendência, combinada com as condições de vida variáveis dos diferentes grupos, leva inevitavelmente a relações de domínio e subordinação.

Os membros de grupos dominantes transformam-se em “eus” que reduzem a ameaça dos “outros”, percebendo-os como objetos. Esta foi a dinâmica base que historicamente modelou as relações entre homens e mulheres, produzindo formas de consciência diferenciadas pelo género as quais por seu turno foram reforçadas através das situações de vida dos sexos. As mulheres, definidas como “outros”, são direcionadas para uma vida de dependência, vulnerabilidade e auto sacrifício numa esfera de “imanência”. Os homens, definidos como “sujeitos”, são direcionados para uma vida de independência, força e autodeterminação.

Segundo de Beauvoir, a ideologia do amor romântico desempenha um papel significativo na manutenção deste padrão de arranjo social. Sendo-lhe negada a visão da sua própria transcendência, a mulher aprende que devotar-se completamente a um homem é o meio de a sua própria vida adquirir um significado para além do domínio da imanência. (…)
Em ordem a perseguir este aparente caminho de salvação, a mulher tem de acreditar no impossível: na libertação através da servidão. Numa tentativa de resolver este paradoxo, tem de usar de “má-fé”, mas tal envolve entrar numa série de manipulações e de auto mistificações que ainda a aprisionam mais. Só pode libertar-se se terminar a ligação, mas isso é aterrador porque significa ver-se confrontada com aquilo que precisamente a levou a entrar nela: a incapacidade para alcançar a sua própria transcendência. O amor romântico é assim uma fraude existencial.”

Wendy Langford: Gender, Power, and the Delusions of Love. Routledge. London. 1999. p. 5.