quarta-feira, 25 de julho de 2012

Faço o que me dizem e como o que me dão!!

A crença de que a natureza feminina implica uma componente masoquista, ainda hoje amplamente difundida, parte do pressuposto de que as mulheres têm uma predisposição biológica para o masoquismo.

Comportar-se passivamente, todavia, não é de modo algum sinónimo de felicidade ou sequer de prazer; qualquer ser humano, em princípio, aprecia a atividade, aprecia poder dispor de si, tomar iniciativas, etc. etc. Esta caraterística, visível nas crianças desde os primeiros anos do seu desenvolvimento, é frequentemente contrariada pelos adultos a pretexto de perigos vários e neste particular caso as meninas e as jovens são muitas vezes fortemente condicionadas a aceitarem um amplo leque de limitações; temos assim que em boa verdade são socialmente predispostas desde a mais tenra infância para o masoquismo.

A ideia de que o masoquismo é inerente à natureza feminina ganhou força no século XIX e contou com a autoridade de Freud que lhe forneceu a respetiva formulação teórica. Recorria-se então a essa predisposição para explicar a passividade das mulheres tanto nas relações sexuais como nas relações sociais. O masoquismo seria a causa e a passividade o efeito, mas podemos bem perguntar se esta relação não estaria equivocada no sentido e se não se estaria a pôr o carro à frente dos bois, confusão afinal mais frequente do que se pode imaginar. De qualquer modo, por motivos de pura conveniência pragmática, importava convencer as mulheres de que adoravam a passividade, adoravam ser dominadas, apreciavam ser tratadas como coisas, sobretudo se essas coisas fossem consideradas valiosas.

Mas como todos os seres humanos e também todos os mamíferos, pelo menos os que nos são mais próximos, gostam de ação, de domínio, de poder, quando se diz que alguns não gostam, o melhor é tentar descobrir a quem é que esse não gosto aproveita. Ora não é preciso escavar muito para descobrir que esse não gosto das mulheres pelo exercício do poder convém, e muito, aos homens. Por isso, não é de estranhar que, quando a partir do século XIX a relação de forças se começou a alterar, com a industrialização e o acesso das mulheres a postos de trabalho remunerados, se procurasse conferir um estatuto científico a essa crença. Afinal se até era científico, a partir daí o que é que as mulheres poderiam fazer? Podiam apenas fazer como o D. João VI da nossa história pátria que à pergunta: Juraste a Constituição, que fazes agora João? Respondeu com bonomia e sentido crítico: faço o que me dizem e como o que me dão!

Resumindo, as mulheres perceberam que o melhor seria fazer da necessidade virtude; como não podiam dominar e tinham de se submeter, como não podiam ser ativas e tinham de ser passivas, então, seria "mais sensato"apreciarem a submissão, amarem a passividade e a orientação de outrem, aceitarem “livremente” a escravidão!

O curioso é que ainda hoje, jovens, pretensamente evoluídas, saem a terreiro para defender este papelão que a sociedade lhes reservou e falam em companheiros dominadores aos quais gostam de se submeter.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Ser sexy - projeto de vida


No meu último texto, abordei o tema da alienação feminina, considerando que a objetificação sexual era um dos fatores que exprimia e contribuía para essa alienação. Um estudo recente fornece evidência empírica neste mesmo sentido.

Nas nossas sociedades, o que é natural, porque habitual, é que as jovens se percebam a elas mesmas como objetos sexuais. Continuam a ser estimuladas a preocuparem-se excessivamente com a aparência física como se o seu valor residisse precisamente em serem bonitas, atraentes e sobretudo sexy. Os modelos que os media lhes apresentam são sobretudo de cantoras, atrizes e manequins, nada de cientistas, muito menos astronautas ou sequer simples técnicas em qualquer campo profissional. Aparentemente ninguém vê nada de mal nem de mais nisso e, desse modo tão simples, tão natural e “inevitável”, sem qualquer intervenção direta ou proibição, o futuro continua eternamente adiado.

O mais espantoso ainda é observar-se como a idade em que as mulheres são convidadas a objetificarem-se tem recuado espantosamente. Investigações recentes mostram que desde os seis anos a maior parte das meninas tendem a pensar-se a si mesmas como objetos sexuais. Um estudo levado a cabo em Galesburg, no Knox College, revelou que, confrontadas com dois modelos de bonecas, uma, vestida com mini-saia, decote, sapatos altos e outros adereços, era preferida pela larga maioria das inquiridas a outra boneca vestida bem mais simplesmente com jeans e sapatos confortáveis. Na maioria dos casos, as meninas tendiam a identificar-se com a boneca sexy, aquela com a qual gostariam de parecer-se. É de supor que essa identificação era motivada pela crença de que ser sexy as tornaria mais populares, com as vantagens sociais que daí adviriam.

Ser popular é desejo de meninas, mas também de meninos; todavia, enquanto o caminho aberto às meninas para atingir esse objetivo passa por ser sexy, o mesmo não acontece com os meninos, para os quais ser popular é ser bom jogador, atleta, ou brilhante em outra qualquer atividade.

Neste mesmo estudo, composto por três amostras de meninas, duas recrutadas em escolas públicas e outra num estúdio de dança local, verificou-se que, para as meninas deste terceiro subgrupo, a boneca não sexy era a mais frequentemente escolhida; Como hipótese explicativa apontava-se o facto de que o dedicarem-se a uma atividade física, no caso a dança, estimulava uma maior apreciação pelo próprio corpo e uma autoimagem mais positiva, com a perceção de que ser sexy não é a única função do corpo e, porventura, não é a função mais importante.

Muitos fatores parecem explicar a tendência das meninas a valorizarem o corpo enquanto objeto sexual. Para começar os media e os modelos que propõem, mas também o exemplo das próprias mães. Em qualquer dos casos, um contexto extremamente difícil de mudar.

terça-feira, 10 de julho de 2012

Para uma teoria da alienação feminina

Ficamos a dever a Karl Marx a exploração do conceito de alienação; mas a teoria da alienação, tal como Marx a formulou, não é aplicável à condição das mulheres enquanto mulheres.
Segundo Marx, o trabalhador é alienado por dois motivos básicos: (1) primeiro porque é despojado do produto do seu trabalho – não tem controlo sobre aquilo que produz – (2)segundo, porque é impedido de realizar as suas potencialidades como ser humano, dado que não participa na organização do trabalho, não controla a sua atividade produtiva e é encarado como mais uma ferramenta que está ali para produzir um produto. A alienação do trabalhador é-lhe imposta de fora e ele sente-a negativamente; implica a fragmentação da pessoa humana e o impedimento de exercer funções especificamente humanas.
Para o trabalhador alienado, o trabalho em vez de ser fonte de humanização é uma função à qual ele quer escapar o mais depressa possível, apenas um fardo que tem de carregar para subsistir, como o animal de carga, alimentado pelo dono enquanto desempenhar a tarefa.

Mas a alienação sofrida pela mulher enquanto mulher – e não apenas enquanto trabalhadora - é diferente da alienação dos trabalhadores e Marx não forneceu instrumentos concetuais para lidarmos com ela. Assim, torna-se necessário construir uma teoria da alienação que a explique.

(1) Em primeiro lugar, a mulher sofre alienação cultural porque é obrigada a assimilar uma cultura para a qual não contribuiu, da produção da qual foi metódica e sistematicamente afastada, cujo objetivo básico é dominá-la; para o percebermos, basta lembrar a linguagem e a carga sexista implícita, a literatura enquanto veículo de misoginia, a ciência e a filosofia, igualmente eivadas de preconceitos sexistas, veiculando uniformemente uma imagem desvalorizada da mulher.

(2)Em segundo lugar, outra fonte de alienação é a objetificação sexual das mulheres, alienadas da sua própria sexualidade, convidadas a verem-se como objetos passivos do desejo de outrem, estimuladas a assumirem um modelo masculino de sexualidade, apresentado como universal. A objetificação sexual significa ser identificada com o corpo, reduzida ao corpo, que como sabemos até tem sido alvo de depreciação pelas religiões, culturas em geral e mesmo pelo senso comum: o ser humano tem corpo, mas a sua dignidade, o seu valor, entende-se, reside na sua mente e personalidade. A objetificação sexual das mulheres é uma forma de empobrecer o seu ser e de o fragmentar.

(3) Por último, mas não menos importante, as mulheres são alienadas do seu próprio corpo que, ao invés de entenderem como um instrumento para conquistarem o mundo e transcenderem a sua condição animal, lhes é apresentado como algo passivo que se destina apenas a ser visto e, em certas condições, a ser apreciado: uma mulher verdadeiramente feminina não corre, não salta, não se arrisca, não é uma «Maria rapaz»; é sossegada, bonita, decorativa.

Todos estes aspetos distinguem a alienação sofrida pelos trabalhadores da sofrida pelas mulheres; (4) mas há um outro, porventura ainda mais preocupante e a requerer explicação pela perplexidade que suscita: enquanto os trabalhadores experimentam a alienação como algo negativo e reagem com a percepção mais ou menos clara de que ela representa uma ameaça à sua identidade como seres humanos plenos, as mulheres, muitas mulheres, são cúmplices da sua própria alienação, não a percebem negativamente e até tiram prazer dela e em muitos casos ainda procuram melhorar a sua «performance», procurando tornar-se mulheres melhores, mais femininas, no que a feminilidade implica de alienação.
Este último aspeto é extremamente importante e uma teoria da alienação das mulheres precisa de explicar. Ora, a chave para a compreensão deste fenómeno parece residir no narcisismo feminino que ao mesmo tempo que resulta da objetificação a reforça e a torna prazerosa já que a mulher tira satisfação erótica do seu corpo enquanto objeto belo.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Sexualidade feminina - alguns equívocos

Todas as pessoas têm necessidade de amor e de calor humano; quando essa necessidade é canalizada para o sexo genital, como se este fosse o único objeto capaz de a satisfazer, falamos em erotismo. Ora, há uma diferença de fundo entre o modo como os homens exprimem o erotismo e o modo como as mulheres o vivem. Os homens desejam as mulheres e nesse sentido comportam-se como sujeitos eróticos; as mulheres desejam ser desejadas pelos homens e nesse sentido percebem-se a elas próprias como objetos eróticos. Assim, enquanto os homens vivem ativamente a sua sexualidade, para uma mulher a sexualidade consiste em ser sexy, em ser sexualmente atraente.

Nas mulheres, e falamos na generalidade dos casos, a sexualidade não exprime um desejo autónomo dirigido para um “objeto” exterior; as mulheres não se assumem como sujeitos dotados de sexualidade e esta atitude é ao mesmo tempo o sintoma de uma situação objetiva de dependência e de subordinação em relação aos homens e o reforço dessa mesma subordinação.

Se, nas mulheres, a sexualidade é a expressão da sua dependência e subordinação percebe-se por que é que usam o sexo para tentar reverter a situação, enquanto arma para “prender” o homem. O curioso ainda é que, uma vez atingido esse objetivo, é frequente desinteressarem-se do sexo.
Este paradoxo é resolvido se percebermos que não se entregam ao sexo pelo prazer que este lhes possa dar, mas como meio para atingir outra coisa, e, nesse processo, estão mais interessadas em agradar ao homem do que em que este lhes agrade. Uma vez atingido o objetivo, uma vez “laçado” o homem, o sexo é descartado como mercadoria sem valor e surgem as tão badaladas, quase anedóticas, dores de cabeça, ou as desculpas com as crianças que absorvem, diz-se, toda a sua energia pela atenção e cuidados que requerem.

Estes são alguns equívocos da vivência da sexualidade pelas mulheres e enquanto não forem encarados com realismo, não se afigura que sejam possíveis grandes progressos na sua emancipação sexual.

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Amor - via para a liberdade ou caminho seguro para a servidão?

O amor romântico ocupa um lugar preponderante na vida das pessoas, individualmente consideradas, e no próprio funcionamento da sociedade como um todo; criticá-lo não é tarefa fácil, requer alguma ousadia e uma boa dose de coragem intelectual.
Afirmar que as relações amorosas heterossexuais são, com uma frequência bem maior do que gostaríamos de reconhecer, um espaço no qual ocorre crueldade mental e violência física e psicológica, mas também um instrumento para as mulheres aceitarem sem recalcitrar, em nome do amor, um lugar de submissão e de subserviência é ir contra a corrente e fazer de desmancha-prazeres.

O amor é visto pela mulher que se lhe entrega como o refúgio de um mundo exterior marcado pela desigualdade e pela agressividade; mas esta perceção é ilusória pois a esfera privada, na qual se vai acantonar, é do mesmo modo um lugar caraterizado pelo exercício de um poder que se abate sobre ela e contra o qual não consegue lutar precisamente por causa do amor que abraçou incondicionalmente.

Conscientes destes perigos bem reais do amor romântico, alguns teóricos contemporâneos, procuram isentar o amor e atribuem a opressão ainda vigente a mecanismos ideológicos de natureza religiosa, legal e cultural que continuam a atuar em favor dos interesses da ordem patriarcal. É esta precisamente a tese defendida por Anthony Giddens.
Giddens considera que o amor romântico está a evoluir para um outro tipo de amor que designa de “amor confluente” (confluent love) - uma espécie de mudança na continuidade -, um amor que supõe negociação entre os parceiros sexuais, visando estabelecer igualdade e reciprocidade na relação.

Para explicar esta mudança no sentido da democratização do amor, invocam-se não só as reivindicações feministas, mas também o exacerbamento do individualismo e da procura do prazer no curto prazo: ninguém está mais disponível para sacrifícios em nome de grandes palavras, a vida é curta, a morte certa e o carpe diem do filósofo torna-se o lema da nossa civilização.

Porque parece salvar o amor, a tese da democratização é muito sedutora; constrói uma narrativa de progresso social e em simultâneo mantém os princípios básicos do romantismo, no pressuposto implícito de que é preciso mudar alguma coisa para que tudo fique na mesma. O amor continua a ser entendido como uma tábua de salvação e não se procede à análise da sua estrutura para decidir se ele é compatível com a apregoada democratização. Além disso, aparentemente a teoria da democratização do amor é consistente, pelo menos as investigações sociológicas não lhe encontram contradições, a igualdade amorosa parece ter pernas para caminhar; mas não será isto apenas wishful thinking? Como é que de repente se passa de um fenómeno – o enamoramento – misterioso, estranho inexplicável, para um enamoramento, negociável e preocupado com princípios de justiça social? Como é que uma realidade se pode manter idêntica quando assume caraterísticas tão diferentes?

Assim o problema em aberto que interessa resolver é o de saber se será possível conhecer a natureza do amor e determinar se ele é, em si mesmo, uma via para a liberdade ou bem pelo contrário o caminho seguro para a servidão.