segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Erotismo de um só sentido

Ao analisar o erotismo enquanto exploração dos sentimentos e emoções despertadas pelo sexo, Shulamith Firestone chegou a conclusões interessantes, autênticas descobertas para a época, se lembrarmos que publicou o livro no início da década de setenta do século passado. Com extraordinária perspicácia, conseguiu verbalizar e objectivar aquilo que muitas mulheres sentiam e sentem mas não conseguem exprimir e desse modo fica resguardado numa espécie de limbo. Atrevo-me a dizer que, ainda hoje, a maior parte das mulheres e homens teriam muito a ganhar no sentido de viverem vidas mais felizes e realizadas, se lhe dessem alguma atenção.

Firestone mostrou que o erotismo, tal como é expresso na literatura, cinema, publicidade, pornografia e muitas outras formas difusas de transmitir e comunicar mensagens, é diretamente dirigido aos homens – eles são o público-alvo. O erotismo estimula constantemente a sua sexualidade e leva-os a perceberem as mulheres como objetos de “amor”, conseguindo, em simultâneo que as mulheres se identifiquem com essa percepção. É pois sempre um erotismo de um só sentido, nunca visa estimular diretamente as mulheres; implicitamente, o prazer delas é sempre entendido como um prazer vicariante: elas têm prazer não em desejarem os homens mas em sentirem que são desejadas por eles.

De facto, basta darmos atenção á publicidade e pornografia main stream para constatarmos que o erotismo é diretamente dirigido aos homens, não às mulheres: são sempre as mulheres que são objetificadas, nunca os homens. Com tal saturação de imagens e de narrativas, também facilmente se percebe como as mulheres acabam por interiorizar essa objetificação.

Que é o prazer do homem que está em questão talvez pareça mais problemático; mas se percebermos que o suposto prazer que as mulheres parecem experimentar decorre de atos que esses sim indubitavelmente dão prazer ao homem, talvez comecemos a entender como as coisas funcionam e como se está perante uma mistificação: o que importa é o prazer do homem, mas convém parecer que o prazer da mulher é coincidente com o dele. No limite o que se desejaria é que a mulher tivesse autêntico e real prazer com tudo o que dá prazer ao homem; mas se as coisas não se passarem exatamente dessa maneira, desde que se salvem as aparências, também não é assim tão relevante. Afinal elas nem reclamam!

Curiosamente, acontece com o sexo o que acontece com o amor, assim como o homem idealiza a mulher que ama, de tal modo que se pode dizer que não ama a mulher mas antes uma projeção ideal dele próprio, também em termos sexuais constrói o seu prazer com base numa ficção sobre aquilo que dá prazer à mulher que de facto é aquilo que lhe dá prazer a ele.

Deste modo, o erotismo tal como se expressa funciona como instrumento de reforço daquilo a que Firestone chamou sistema de classes sexuais, mais comummente conhecido como sistema de supremacia masculina.

sábado, 26 de novembro de 2011

Shulamith Firestone – perigosamente à frente do seu tempo

Shulamith Firestone foi um ícone do movimento feminista dos anos sessenta/setenta que surpreendentemente desapareceu de cena logo após a publicação de A Dialética do Sexo em 1970, na altura um enorme sucesso comercial, mas só reeditada mais de vinte anos depois. Muito pouco se tem escrito sobre Firestone e em certo sentido ela transformou-se numa relíquia do passado, o que, para alguém que teve uma visão tão premonitória do futuro, não deixa de provocar estranheza.

A visão que expõe nessa obra é verdadeiramente utópica e, embora inspirada em Engels e Marx, vai contra a corrente, não só porque coloca na origem do processo histórico a diferença de sexo - não os antagonismos de classe - como também porque considera prioritária a luta pela libertação das mulheres; Firestone, embora consciente da desigualdade económica e racial, não assumiu a tese, cara à intelectualidade de esquerda da época, de que era prioritária a luta de classes, na suposição de que com a abolição das classes se eliminaria a opressão das mulheres.

A experiência pessoal de Firestone, bem como a experiência histórica vivida pela União Soviética, não lhe permitiam alimentar muitas ilusões quanto à bondade dessa tese. De facto, ela própria tivera oportunidade de apreciar como os colegas reagiam às propostas que apresentava para se debaterem as questões das mulheres, não as considerando oportunas e como presumiam que o papel das participantes femininas nas reuniões políticas deveria ser o de coadjuvarem os homens, secretariando e distribuindo “cafezinhos”. Na época, ao participar em Chicago na National Convention for a New Politics, redigira com outras mulheres uma resolução na qual se criticavam os media pela divulgação de estereótipos sobre as mulheres enquanto simples auxiliares dos homens e meros objetos sexuais e se exigia o controlo completo das mulheres dos seus próprios corpos, a divulgação de informação sobre o controlo de natalidade a todas as mulheres independentemente do seu estado civil e a remoção de todas as proibições contra o aborto; mas quando chegou a altura de apresentar a proposta de resolução o presidente da reunião retirou-a da pauta com o argumento de que havia assuntos mais importantes a debater. Essa foi a gota que fez transbordar o copo, na semana seguinte formava-se o primeiro grupo de mulheres. Também na União Soviética se persistia na diferenciação de papéis com uma participação mínima das mulheres na esfera pública.

Neste contexto, começa a perceber-se por que é que as propostas verdadeiramente subversivas de S. encontraram tanta resistência e anticorpos. Tinha contra ela a massa de mulheres e de homens antifeministas; era vista com desconfiança pela intelectualidade de esquerda de formação marxista; as feministas liberais consideravam que ela estava a fazer um mau serviço ao movimento ao alienar a simpatia de muitas mulheres e homens, em virtude do radicalismo das suas propostas; e mesmo no seio do movimento feminista radical, estava longe de gerar consensos; numa época em que a pílula anticoncepcional ainda era acessível a um número restrito de mulheres, as suas ideias sobre gravidez e maternidade não eram aceites por muitas. Mas o facto é que, apesar de tantas e tão poderosas resistências, a leitura de A Dialética do Sexo, quatro décadas depois, revela como se caminhou em vários aspetos no sentido preconizado pela autora.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Shulamith Firestone e os papéis atribuídos às mulheres

Comecei a ler The Dialectic of Sex: The Case for Feminist Revolution, de Shulamith Firestone, que ainda não conhecia, e vou começar a partilhar as reflexões que a leitura me está a proporcionar.
Shulamith Firestone (1945-), feminista da geração de setenta do seculo XX, publicou então The Dialectic of Sex: The Case for Feminist Revolution, recebida com profunda desconfiança e mesmo escândalo por parte de vários sectores, nomeadamente de sectores feministas. Essa obra, escrita quando tinha apenas vinte e cinco anos, muito falada mas pouco conhecida, só foi reeditada uma vez, o que mostra como continuamos a viver em sociedades que procuram, com sucesso, calar vozes dissidentes a que não interessa dar audição.
Ora independentemente de se concordar ou não com o conteúdo abordado e teses defendidas, o que é um facto é que “exige” a nossa reflexão já que se trata de uma obra importante e de um marco que não se pode ignorar na história do feminismo e na evolução do movimento. Shulamith desafia-nos a repensar e a reavaliar os nossos sentimentos acerca dos papéis que secularmente nos têm sido atribuídos.
O livro foi publicado em 1970 e desde então os progressos na condição das mulheres têm sido em certa medida impressionantes, mas apesar de tudo há ainda muita actualidade nas ideias defendidas por S. que ainda hoje a uma primeira apreciação nos parecem chocantes.
Para S. o verdadeiro objectivo da luta deve ser não só o de minar o privilégio masculino mas também a própria distinção sexual, com o genuíno convencimento de que não basta reformar um sistema iníquo mas é necessário eliminá-lo e substitui-lo por um outro totalmente novo, não basta exigir igualdade perante a lei e igualdade de direitos; se as estruturas da sociedade não estiverem preparadas essa será uma tarefa vã e de fachada. O que é preciso é conseguir que a diferença genital não se transforme numa diferença cultural. Nesse aspeto, se ela tem razão, muito, mas mesmo muito, está ainda por fazer.
S. foi inspirada pela teoria marxista e defendeu que a revolução feminista, para o ser, tinha de começar pela base, pelo que está na origem da opressão das mulheres assim como o marxismo procurou encontrar o que se encontra na origem da opressão de classe. Mas na década de setenta, na América, embora os ventos parecessem favoráveis o facto é que a classe média era, como ainda hoje é, profundamente conservadora e não via com bons olhos qualquer movimento revolucionário. Além disso, mais tarde, a implosão da União Soviética, com razão ou sem razão, em certo sentido veio a descredibilizar o marxismo e a partir deste caldo político e cultural qualquer tentativa de imprimir ao movimento feminista um cunho revolucionário ficou votada ao fracasso e as feministas tiveram de se contentar com reformas pontuais que S. tão bem denunciara.
Uma das teses mais polémicas e chocantes de S. é a de que as mulheres, para atingirem a igualdade, têm de abandonar o seu papel biológico como únicas produtoras de crianças. O papel reprodutivo das mulheres, segundo S, foi em grande parte responsável, pelo lugar de cidadãs de segunda classe que têm ocupado e não haverá qualquer alteração significativa enquanto esse papel não for secundarizado . Defende ainda que os cuidados com as crianças devem ser partilhados por homens e mulheres, defende “a libertação das mulheres da tirania da reprodução por todos os meios possíveis e a difusão dos cuidados com as crianças pela sociedade como um todo, por homens e outras crianças assim como pelas mulheres.”
Na época e ainda hoje estas ideias parecem quase ultrajantes, mesmo a muitas mulheres; a essa sensibilidade não são alheios os meios de comunicação social que insistentemente procuram fazer passar a mensagem de que a maternidade é algo de maravilhoso. As chamadas revistas cor-de rosa não se poupam a esforços e a gravidez de jovens mulheres famosas é um item recorrente. Mas, se refletirmos um pouco, também vemos como o número de filhos que as mulheres decidem ter é cada vez menor, isto claro nos países onde a igualdade sexual tem feito o seu caminho; também vemos como nos países mais avançados, os pais juntamente com as mães se encarregam de tarefas relacionadas com os cuidados das crianças. Por isso, podemos concluir que, apesar de tudo, as reflexões “chocantes” de S. não caíram em saco roto e que ela foi mais uma daquelas pessoas que, vivendo à frente do seu tempo, teve de pagar um preço pela sua ousadia e temeridade.

sábado, 12 de novembro de 2011

Poligamia e mulheres felizes

Num Ensaio publicado em meados do século XIX a que deu o título «Sobre as Mulheres», o filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860), ilustre crítico da instituição da monogamia, defendeu a sua posição com clareza e sem papas na língua.

Em sua opinião, a mulher ocidental da classe média alta - que ele designa de «lady» -usufruía de direitos que não eram naturais, direitos esses que lhe eram conferidos pela instituição da monogamia e que lhe reconheciam um estatuto de igualdade em relação ao homem. Ora Schopenhauer considera a mulher um ser secundário e inferior ao qual decididamente não convém tal estatuto. Além disso, essa situação, segundo o filósofo, teria efeitos perversos, levando muitos homens a evitarem comprometer-se matrimonialmente, com a consequência de muitas mulheres ficarem solteiras e sem recursos próprios o que empurraria uma boa parte para a prostituição e outras para uma situação deplorável:

“Nas classes altas vegetam como solteironas inúteis, nas classes baixas são reduzidas a trabalho duro de gosto discutível ou tornam-se prostitutas e levam uma vida que é tão triste como desprovida de honra.”

Em contrapartida, diz ele, nas regiões onde a monogamia se encontra substituída pela poligamia estes lamentáveis problemas não se colocam e as mulheres encontram facilmente quem as sustente; assim, justifica a poligamia com o argumento de que é benéfica para mulheres, e também é benéfica para os homens, porque um homem precisa de muitas mulheres. De resto afirma não ser preciso defender a poligamia porque ela existe em toda a parte:

“Todos nós vivemos, pelo menos durante algum tempo e a maioria de nós sempre, em poligamia. Consequentemente, como cada homem precisa de muitas mulheres, nada é mais justo do que permiti-lo, desde que se garanta o sustento das mulheres”

Embora exista em toda a parte, pode é não se encontrar regulada e era isso que, segundo Schopenhauer se devia fazer no Ocidente, criando condições para que as mulheres retornassem ao seu lugar natural de subordinadas dos homens que deveriam tomar conta delas garantindo a sua subsistência. Desse modo:

“A «lady», esse monstro da civilização europeia e da estupidez cristã-teutonica, com a sua ridícula pretensão de respeito e veneração, não mais existirá; haverá ainda mulheres, mas não mulheres infelizes, de que no presente a Europa está repleta.”

Aqui temos pois um Schopenhauer que não conhecíamos, muito preocupado com a felicidade e bem-estar das mulheres. Só ficamos em dúvida se ele sabia fazer contas já que dado que o número de mulheres é aproximadamente igual ao dos homens, ou mesmo bastante inferior - se considerarmos que pelos padrões dele a partir de certa idade as mulheres ficam imprestáveis – deve ser extremamente difícil garantir o usufruto da poligamia para uma parte considerável do sexo masculino.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

As brincadeiras nunca são inocentes

Em post recente do blog Feminist Philosophers dá-se conta de uma brincadeira recorrente que atualmente se encontra na moda e que se chama: “Foder, casar ou matar”. Neste jogo os rapazes escolhem três raparigas e aplicam as respetivas «receitas», conforme os seus gostos e os atributos que lhes reconhecem.

Esta brincadeira, para além de toda a carga sexista que comporta, mostra bem como se tem evoluído muito pouco no que à matéria diz respeito, ou melhor até parece que, inconsoláveis com alguns progressos na conquista do espaço público por muitas mulheres, os nossos companheiros do sexo masculino tentam reconfortar-se continuando a objetificá-las grosseiramente.

Comentadores/as do blog referem que não há nada de novo neste jogo, de facto não há nada de novo, mas esse é que é o problema. Outras pessoas apontam o facto de que em versões que conheciam não aparecia a hipótese de matar e isto também nos deve levar a alguma reflexão.