terça-feira, 30 de junho de 2009

Secundarizar a «causa da mulher» serve os interesses das mulheres?

Para responder à interrogação acima formulada vou procurar expor alguns aspectos do feminismo marxista e extrair as consequências que se me apresentam como dele decorrentes.

O feminismo marxista, como a expressão indica, é influenciado pelas teorias de Marx e de Engels e entende que a questão da mulher tem de ser enquadrada no contexto mais amplo da luta da classe trabalhadora – vulgo proletariado, contra as condições de opressão do trabalho pelo sistema capitalista de produção. Entende que do sucesso dessa luta e da abolição do sistema capitalista resultará a libertação do povo trabalhador e com esta a emancipação das próprias mulheres. Deste modo, o marxismo secundariza a questão da mulher e subordina-a à da luta de classes: serve-se a causa da mulher servindo-se a causa da classe trabalhadora.

O feminismo marxista critica o feminismo liberal reformista (século XIX, Mary Wollstoncraft e Stuart Mill, século XX, Betty Friedan), acusando-o de servir os interesses da agenda capitalista porque, por um lado, manteria intacta a estrutura da família burguesa (patriarcal) e, por outro, forneceria aos empregadores capitalistas um acréscimo de mão-de-obra barata que iria dividir a classe trabalhadora, fomentando a competição e não operando uma transformação profunda na sociedade, sem a qual não seria possível a autêntica libertação.

Simone de Beauvoir, escrevendo O Segundo Sexo na década de quarenta do século XX, ainda pôde manter a esperança nessas promessas libertadoras diferidas, mas o processo histórico que se seguiu e que culminou com o esfacelamento da União Soviética, num autêntico movimento de implosão, veio lançar sérias dúvidas sobre a análise marxista da situação feminina. Mas, apesar dessas esperanças, Simone de Beauvoir escreveu em Pour une Morale de l’Ambiguité: «Assim que uma libertação surge como possível, não explorar essa possibilidade é uma demissão da liberdade, demissão que implica má fé e que é uma falta positiva.» Ora estas palavras nem sempre são lembradas por alguns círculos feministas.

As dúvidas sobre a análise marxista da situação feminina adensam-se quando reflectimos, sem preconceito, sobre as alterações profundas que as reformas propostas pelo feminismo liberal provocaram na situação das mulheres nos países onde lenta mas progressivamente têm sido postas em curso. Mary Wollstonecraft, a precursora deste movimento, reivindicava o acesso à educação e à participação política, reivindicações sustentadas também por Stuart Mill, no plano teórico, e passadas à prática pelo movimento sufragista. A partir dos fins do século XIX, a entrada das mulheres no Ensino Superior e no decurso do século XX a obtenção do direito de voto, têm vindo a ser complementadas com exigências de justiça salarial, abertura das mais diversas profissões às mulheres e paridade na esfera política, exigências que o controlo da capacidade reprodutiva pelas próprias mulheres tornou realistas. Porque negar estas conquistas é negar a evidência, certos círculos feministas tentam desvalorizá-las, pretendendo que não se trata de verdadeiras conquistas, mas não é assim que as mulheres que as alcançaram o sentem.
O que resultou de todo este processo reformista foi uma alteração na estrutura da família que ainda não sabemos onde levará. Portanto, pretender, como pretende o feminismo marxista, que as reformas liberais não iriam alterar a estrutura familiar não se revelou correcto: as alterações são tão manifestas que todos os inimigos do feminismo contra elas se rebelam, assacando-lhe culpas imaginárias por todos os males que flagelam a vida social e pugnando pelo retorno ao velho quadro familiar.
Claro que no século XX mantiveram-se e até, porventura, agravaram-se diferenças entre ricos e pobres, sobretudo a nível dos países e continuam a existir situações graves de opressão e de exploração, mas o facto é que, no Ocidente democrático, as mulheres em geral viram a sua situação de opressão significativamente minorada, e isso não se deveu ao feminismo marxista, mas ao feminismo liberal.

Do que já sei acerca de partidos políticos constato que muitos homens, ditos, por exemplo, de esquerda, são tão ou mais retrógrados em relação às mulheres do que outros politicamente mais conservadores. Assim, por exemplo, no século XVIII não foram nem o democrata radical Rousseau nem o Kant do «sapere audi» («ousa saber») que lideraram a causa das mulheres, bem pelo contrário, mostraram-se profundamente reaccionários, cabendo os créditos mais positivos ao moderado David Hume ou a Condorcet, simpatizante da Gironda, um verdadeiro feminista avant la lettre. De resto, foi no período mais extremista da Revolução Francesa que, paradoxalmente, as mulheres, que nela se tinham empenhado esperançosas de uma mudança de estatuto, foram obrigadas, em nome do bem comum, a desmantelar os clubes que entretanto tinham formado e a retirar para o lar, sem terem conseguido quaisquer progressos significativos. Também não consta que na antiga União Soviética ou nos países da sua esfera de influência a situação das mulheres tenha conhecido avanços promissores.

Por tudo isto, é minha convicção que as mulheres devem empreender as suas próprias lutas sem se subordinarem a outras agendas políticas, por mais progressistas que estas possam parecer, isto sem prejuízo de nelas se engajarem, mas sem nunca esquecerem as suas prioridades.

domingo, 28 de junho de 2009

Deus é misericordioso, mas só para os homens

Ophelia Benson escreveu no Observer um artigo a que deu o título: God is merciful, but only if you're a man (Deus é misericordioso, mas só se tu és homem) no qual analisa o potencial de misoginia que as principais religiões contém. Resolvi traduzir e publicar aqui este texto que me parece bastante rico e esclarecedor. O. B. começa por fazer uma breve referência a cada uma das três grandes religiões: Islamismo; Cristianismo e Judaísmo.

«Há muito a criticar na visão que o Islão transmite acerca das mulheres. No ano passado, o Observer publicou a história de um homem no Basra que espancou, sufocou e depois apunhalou a filha de dezassete anos por se ter apaixonado por um soldado britânico. Aparentemente a relação não foi além de algumas conversas, mas o pai soube que ela tinha sido vista em público a conversar com o soldado. Quando o Observer falou com Abdel-Qader Ali, duas semanas depois, ele disse: «A morte foi o mínimo que ela mereceu. Não estou arrependido do que fiz. Tenho o apoio de todos os meus amigos que são pais, como eu, e sabem que o que ela fez era inaceitável para qualquer muçulmano que honra a sua religião.
Isto foi claramente uma atitude extrema, mas a verdade é que o Deus em que muitas pessoas acreditam – seja Muçulmano, Cristão ou Judeu – odeia as mulheres. Veja-se, por exemplo, a Convenção Baptista do Sul que declara na sua afirmação de fé e de missão: Uma esposa deve submeter-se de bom grado à liderança do seu marido”. É bastante justo, não? Afinal ele é provavelmente mais forte do que ela.

Ou veja-se a igreja católica. O Papa pôs as coisas mais suavemente numa intervenção em 2008:
«Em face de tendências culturais e políticas que procuram eliminar, ou pelo menos encobrir e confundir as diferenças sexuais inscritas na natureza humana, considerando-as uma construção cultural, é necessário lembrar o desígnio de Deus que criou o ser humano masculino e feminino, com uma unidade e ao mesmo tempo com uma diferença original.»
A insistência na diferença é o primeiro passo necessário para insistir na desigualdade e na subordinação e é um passo que, durante décadas, os papas têm dado a intervalos regulares.
Em Novembro de 2006, a Nicarágua activou a proibição do aborto, sem qualquer excepção, mesmo que para salvar a vida da mãe. A lei foi ratificada pela Assembleia Nacional em Setembro de 2007. Tanto a activação como o voto em Setembro de 2007 foram amplamente atribuídos à influência da igreja Católica. Num relatório deste mês, um Comité das Nações Unidas contra a tortura considerou a proibição total do aborto na Nicarágua uma violação dos direitos humanos.

Há ainda o Judaísmo. Num subúrbio de Jerusalém, seminaristas percorrem as ruas com placards amarelos que avisam: «Se és mulher e não está apropriadamente vestida – não entres na nossa comunidade.»

Se é assim, porque é que com tanta frequência são as mulheres que enchem as igrejas? Será uma manifestação do Sindroma de Estocolmo? As religiões fazem um belo serviço treinando as pessoas para serem obedientes e leais às autoridades e as mulheres, em particular, são educadas para serem ao mesmo tempo devotas e submissas. As religiões são duras: é difícil abandoná-las e isso é duplamente verdade para as mulheres, dada que a subordinação e a inquebrantável fidelidade são os seus principais deveres.

O facto de as mulheres serem definidas como diferentes dos homens («complementaridade» é o eufemismo religioso) ; confinadas a vidas mais estreitas e, como consequência, monótonas, significa que elas têm mais necessidade das exaltações e paixões da religião. Para as mulheres, a religião é muitas vezes o coração de um mundo sem coração. Em troca, tudo o que tem de desistir é do direito de modelarem as suas próprias vidas; desde que se comportem como deve ser, tudo correrá sem incidentes.

A conexão íntima e inescapável que os crentes liberais contemporâneos gostam de estabelecer entre Deus e amor, teísmo e compaixão, é em grande parte uma invenção moderna. Ainda hoje está longe de ser universal e era extremamente rara no passado. S. Francisco era um excêntrico, não um modelo exemplar. A dolorosa verdade é que ainda nos nossos dias muitas pessoas que acreditam num deus acreditam num deus que é muitas vezes vingativo, punitivo e, outras, simplesmente cruel. O relatório Ryan sobre o abuso de crianças nas escolas industriais da Irlanda, apresentado há duas semanas, fornece uma montanha de angustiante evidência disso.
Uma sobrevivente de Goldenbridge, a mais conhecida escola industrial para raparigas, dirigida pelas Irmãs da Misericórdia, disse á comissão: Os gritos das crianças de Goldenbridge ficarão comigo até ao resto da minha vida. Ainda os oiço, ainda não consegui recuperar. Crianças a chorar e a gritar, não acabava, nunca, nunca parou durante anos naquele lugar.» Muitas daquelas crianças estavam lá apenas porque as suas mães eram solteiras ou divorciadas.

O Deus que temos nos Três Grandes monoteísmos é um Deus que teve origem num período em que a superioridade masculina era absolutamente dada por garantida. O tempo passou, mas o Deus superior masculino permanece e esse Deus continua a desprezar as mulheres. Esse Deus é aquele que impõe a Sua aprovação em todas essas leis tirânicas. Esse Deus é um produto da história, mas é tomado por eterno, o que é uma péssima combinação. Esse é o Deus que odeia as mulheres.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

“Estou-me nas tintas para a minha reputação”

Entre Femininity, do Magic Summer (1963) e Bad Reputation (1980), da cantora e guitarrista rock Joan Jett, medeiam uns escassos dezassete anos, mas que diferença quanto à mensagem que fazem passar!

No caso de Femininity, temos uma espécie de manual de boas maneiras em verso, para meninas casadoiras, que aconselha a conformidade com os padrões do que convencionalmente se entende por feminino, balizados pela ideia de que o papel da mulher é agradar ao homem e gratificar o seu (dele) ego e que propõe subserviência e passividade para a mulher: “Deixa-o fazer a conversa; os homens gostam de quem sabe ouvir. Ri, mas não demasiado alto, se ele decidir contar uma piada”.
Pode dizer-se que, quanto à relação entre os sexos, o que se está aqui a defender é a teoria da complementaridade, ouve-se mesmo: “Complementa a sua masculinidade”. E para terminar aconselha-se a jovem adolescente a deixar que as aparências governem a sua vida: “ Sê modesta, doce e pura, esconde o que realmente és”
É caso para dizer que, em pleno século XX, no início da década de sessenta, ainda é Jean-Jacques Rousseau, dos idos do século XVIII, que governa as mentalidades no que ao tema diz respeito, vejamos o que ele escreveu no Emile ou de l’Education:

“Pela própria lei da Natureza, as mulheres, tanto por elas como pelos filhos, estão à mercê dos juízos dos homens: não basta que sejam estimáveis, é preciso que sejam estimadas; não basta que sejam belas, é preciso que agradem; não basta que sejam sensatas, é preciso que sejam reconhecidas como tal; a sua honra não reside apenas na sua conduta mas também na sua reputação (…). O homem, ao agir correctamente, depende apenas dele próprio e pode desafiar o julgamento público, mas a mulher, ao agir correctamente, cumpre apenas metade da sua tarefa, e o que as pessoas pensam dela não é menos importante do que o que ela com efeito é. Por isso, a sua educação deve, em relação a este aspecto, ser a contrária da nossa: a opinião pública é o túmulo da virtude para os homens e o trono para as mulheres.

…Toda a educação das mulheres deve ser relativa aos homens. Agradar-lhes, ser-lhes útil, fazer-se amar e honrar por eles; criá-los quando jovens, cuidar deles quando crescidos, aconselhá-los, consolá-los, tornar a sua vida agradável e doce; estes são os deveres das mulheres em todos os tempos e o que se deve ensinar-lhes desde a infância. Quanto mais nos afastarmos deste princípio, mais nos afastaremos do objectivo e todos os preceitos que lhes dermos de nada servirão para a sua felicidade ou para a nossa.”
Rousseau alerta a mulher para a necessidade, não só de ser virtuosa mas também de o parecer, deixando-se tiranizar pela opinião pública que, em contraste, o verdadeiro homem pode desafiar. Nega também autonomia à mulher cuja vida diz só fazer sentido ao serviço do homem. Se repararmos, em Femininity as teses defendidas são muito próximas.

Em flagrante contraste, já na década de oitenta do mesmo século XX, Joan Jett, que não se limita a ser cantora, mas que é também guitarrista numa banda rock, desafia ferozmente a opinião pública e defende a sua autonomia e o direito a ser feliz segundo os seus próprios padrões:
“Estou-me nas tintas para a minha reputação. Tu vives no passado, mas há uma nova geração. Uma rapariga pode fazer o que quiser e é isso que vou fazer. Não tenho de agradar a ninguém. Não tenho medo de ser diferente. De facto não me importa se pensares que eu sou estranha. Estou-me nas tintas para a minha reputação.”

Está na altura de voltarmos a ouvir as duas canções que são também dois marcos na história do feminismo.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Má reputação

Depois de "Femininity" ou a apologia da aparência, para desenjoar, vamos ouvir Joan Jett em "Bad Reputation":



I dont give a damn bout my reputation
Youre living in the past its a new generation
A girl can do what she wants to do and thats
What Im gonna do
An I dont give a damn bout my bad reputation

Oh no not me

An I dont give a damn bout my reputation
Never said I wanted to improve my station
An Im only doin good
When Im havin fun
An I dont have to please no one
An I dont give a damn
bout my bad reputation

Oh no, not me
Oh no, not me

I dont give a damn
bout my reputation
Ive never been afraid of any deviation
An I dont really care
If ya think Im strange
I aint gonna change
An Im never gonna care
bout my bad reputation

Oh no, not me
Oh no, not me

Pedal boys!

An I dont give a damn
bout my reputation
The worlds in trouble
Theres no communication
An everyone can say
What they want to say
It never gets better anyway
So why should I care
bout a bad reputation anyway
Oh no, not me
Oh no, not me

I dont give a damn bout my bad reputation
Youre living in the past
Its a new generation
An I only feel good
When I got no pain
An thats how Im gonna stay
An I dont give a damn
bout my bad reputation

Oh no, not me
Oh no, not
Not me, not me

terça-feira, 23 de junho de 2009

Feminilidade ou a apologia da aparência

Esta canção do filme de Disney Magic Summer , 1963, foi uma das mais populares do ano nos Estados Unidos.

O objectivo da canção é motivar as jovens adolescentes para aprenderem a ser femininas, pois só assim arranjarão namorado: devem andar, vestir e falar de modo feminino, deixar o rapaz "fazer as despesas de conversa" e mostrar que sabem ouvir, rir de uma piada, mas não demasiado alto, serem discretas e recatadas, pois os homens não gostam nem querem mulheres masculinas.
Numa palavra faz-se a apologia da aparência enquanto substituto da «coisa» real.


You must walk feminine
Talk feminine
Smile and beguile feminine
Utilize your femininity
That's what every girl should know, if she wants to catch a beau
Dance feminine
Glance feminine
Act shy and sigh feminine
Compliment his masculinity
That's what every girl should know, if she wants to catch a beau

Let him do the talking
Med adore good listeners
Laugh, but not too loudly (Haha)
If he should choose to tell a joke
Be radiant, but delicate
Memorize the rules of etiquette
Be demure, sweet and pure
Hide the real you

You must look feminine
Dress feminine
You're at your best feminine
Emphasize your femininity
That's what every girl should know
Femininity, femininity
That's the way to catch a beau

Burka e cidadania (engaiolada?!)

Num post anterior, manifestei a minha aprovação face à possibilidade de as autoridades francesas proibirem o uso da burka nos espaços públicos. Entretanto o anúncio desta eventual medida tem gerado enorme polémica e são muitas as vozes, algumas delas femininas, que se insurgem.
Alegam os contestatários que o Estado não tem o direito de interferir no tipo de vestuário que as mulheres usam ou deixam de usar e que o uso da burka deve portanto ser deixado ao critério das mulheres. Mas esta posição, do meu ponto de vista, é pura expressão de má – fé, pois ignora um facto óbvio: o uso da burka resulta de pressões sociais, religiosas e familiares fortíssimas que na prática impedem as mulheres de fazer qualquer escolha na matéria, e isto é algo que todos nós sabemos e que nem sequer é contestado.
Por outro lado, considerar que o Estado (opressor) não deve intrometer-se nestas questões é esquecer que a opressão começa no seio das famílias e que, para proteger os direitos dos indivíduos, o Estado tem o direito, e sobretudo o dever - de que não pode demitir-se, de se intrometer. Neste aspecto, saúdo as palavras do Presidente Sarkozy:

«No nosso país não podemos aceitar que as mulheres sejam prisioneiras por detrás de um biombo, isoladas de toda a vida social, privadas de toda a identidade, (…) A burka não é um símbolo religioso, é um sinal de subserviência, um sinal de degradação – quero dizê-lo solenemente – ela não será bem aceite no território da República Francesa.

Depois de tudo isto ainda há uns pândegos que proclamam: Com esta medida, a França nega a cidadania às mulheres muçulmanas. Que alguns homens insistam nesta tecla, ainda vá que não vá, mas que as mulheres também colaborem, não há pachorra: Deixem de ser trouxas!

domingo, 21 de junho de 2009

Mataram Neda

Neda, uma jovem estudante iraniana, foi atingida mortalmente por um tiro traiçoeiro disparado por um polícia iraniano, quando participava numa manifestação pacífica contra o que se considera uma gigantesca fraude eleitoral.
Neda tornou-se um símbolo da luta contra a repressão, pela liberdade e pelos direitos humanos nos quais os direitos das mulheres têm de estar incluidos.

«Mataram Neda, mas não calaram a sua voz»

As imagens que este vídeo transmite constituem um tributo ao sacríficio da sua vida:



«Aqueles que tornam impossível uma revolução pacífica tornam inevitável uma revolução violenta.» John Kennedy

sábado, 20 de junho de 2009

Mulheres e poder

Com frequência criticam-se as mulheres por aspirarem a posições de poder, pretendendo-se com essa crítica insinuar que elas apenas querem equiparar-se aos homens para manter o mesmo tipo de sociedade e as estruturas de controlo existentes; ora como a sociedade e as estruturas existentes deixam muito a desejar em termos de perfectibilidade, a crítica parece ter alguma base de sustentação. Mas não tem!

As mulheres, algumas mulheres, não escondem a sua vontade de poder, querem ter poder, sim! Em primeiro lugar, porque toda a gente, e se calhar até mesmo os outros animais, quer ter poder; negá-lo é uma atitude hipócrita, decorrente de uma moral igualmente hipócrita que prega como valor máximo a obediência em cadeia: das mulheres aos homens e dos homens a Deus, escamoteando que nesta cadeia há uns mais obedientes do que outros, há senhores e há escravos/as. Em segundo lugar, porque algumas mulheres percebem que para mudar a sociedade e as suas estruturas opressoras é preciso poder, como se diz em linguagem mais popular, é preciso «meter as mãos na massa», não se pode ficar a contemplar umas mãos imaculadas e alvinitentes.

Quando falámos em poder várias questões se colocam: O que é o poder? É bom, mau ou neutro do ponto de vista axiológico? Que instrumentos utiliza? Como se exerce?

Poder significa capacidade para interferir no curso dos acontecimentos. Aspirar ao poder, em princípio, é uma coisa boa, é como querer ser livre – em certo sentido poder e liberdade identificam-se. Mas, assim como posso usar mal a minha liberdade também posso usar mal o meu poder; todavia, esta é uma outra questão que não tem a ver com o poder ou com a liberdade em si mesmas, mas com o valor instrumental de que eles se podem revestir.

Ao serviço do poder encontramos diversos instrumentos que vão desde a força física, passando pela beleza, a inteligência, o conhecimento e o dinheiro.

(1) Em relação à força física ela deve ter sido o instrumento inicialmente utilizado para determinar uma supremacia e nem há muito a dizer pois neste domínio é óbvia a situação de inferioridade das mulheres, apenas se pode salientar que as suas consequências foram calamitosas e ainda hoje se fazem sentir.

(2) A beleza e os atractivos sexuais conferiram às mulheres uma espécie de poder, que Rousseau designava de «império»; mas basta reflectirmos um pouco para constatarmos que se tratava de um império bem precário e incerto. Incerto porque, para principiar, nem todas as mulheres são belas e atraentes; precário porque, mesmo aquelas que possuem tais atributos, em breve, com a idade, sentirão que esse poder se desvanece; lembremos as balzaquianas, mulheres dos trinta, heroínas de Balzac que causaram estranheza porque se costumava considerar que, nessa fase, passada a juventude, a mulher entrava num declínio irreparável. Reparemos que, ainda nos nossos dias, um homem de idade, mas de determinado estatuto social é um senhor distinto, ao passo que uma mulher da mesma idade e estatuto é uma velha. Infelizmente, este tipo de poder, melhor dizendo, este simulacro de poder, muito incensado pelos homens, ainda hoje cega muitas mulheres, jovens e menos jovens, que não se apercebem da armadilha em que estão a entrar e que, em vez de investirem realmente em si mesmas enquanto pessoas, se deixam promover à situação de objectos, cobiçados é certo e valiosos também, mas, em qualquer dos casos, objectos.

(3) A inteligência é porventura o instrumento mais eficiente ao serviço do poder, mas tem de ser cultivada, desenvolvida, alimentada pelo conhecimento, o que implica trabalho, esforço, perseverança e prazer em aprender. Ora neste aspecto também sabemos como ao longo dos séculos, a sociedade, dominada pelos homens, sempre fez o que estava ao seu alcance para recusar às mulheres o acesso ao conhecimento que iria alimentar a sua inteligência; para tal foram usados mecanismos repressivos formais e informais, desde a proibição do acesso à instrução para as mulheres, até à zombaria a que eram sujeitas as poucas que tentavam cultivar-se em domínios considerados «fortalezas masculinas». Os homens perceberam que o segredo da submissão feminina, como aliás de qualquer tipo de submissão, reside na ignorância.

(4) Resta considerar o dinheiro e, neste campo, por exemplo, o sistema de heranças sempre penalizou as filhas, em benefícios dos irmãos e dos primogénitos masculinos; quanto a trabalho remunerado fora de casa sempre foi dificultado às mulheres; num caso ou no outro ficavam assim obrigatoriamente na dependência dos elementos masculinos da família e na prática nem eram precisos outros mecanismos para garantir a sua subserviência.

Resumindo, a supremacia masculina, inicialmente estabelecida pela força física, foi posteriormente reforçada, privando-se a mulher de instrumentos que lhe permitissem o acesso ao poder.

O poder masculino, dada a sua génese e estrutura, tem sido exercido de modo predominantemente autoritário, mesmo em sociedades que se pretendem democráticas, porque serviu para oprimir pelo menos metade da humanidade e ainda, até há pouco tempo, para oprimir povos de outras culturas e de outras raças. Mesmo nas cidades-estado da Grécia Clássica, sabemos que o poder tinha esta essência porque era apanágio de uma elite – a dos cidadãos, excluindo totalmente as mulheres, os escravos e os estrangeiros, que constituíam a grande maioria da população. Portanto, em termos de modus operandi temos ainda muito que aprender quanto ao uso democrático do poder que é aquele que interessa às mulheres.

Nos nossos dias, a presença das mulheres na economia, na política ou nas instituições que produzem conhecimento abre outras perspectivas ao exercício do poder, mas elas tem de evitar ficar reféns do modelo masculino de poder. Quando uma mulher é investida num cargo, seja como ministra, directora de um banco, reitora de uma universidade, passa a fazer parte de uma organização que foi «desenhada» por homens e para homens e, portanto, vai ter de se adaptar; mas neste contexto funcionam mecanismos que Jean Piaget descreveu para explicar o processo de aquisição de conhecimento, ele falou em «assimilação», «acomodação» e «equilíbrio»: uma mulher num determinado cargo tem tendência a desempenhá-lo de acordo com os esquemas de acção que já possui, por exemplo, pode procurar flexibilizar horários, ser dialogante e compreensiva, eventualmente improvisar uma creche para os filhos/as dos empregados/as - isto corresponde à fase de assimilação; mas para desempenhar bem o cargo tem de se adaptar à situação e suas exigências - isto é acomodação e leva-a a modificar os seus esquemas de acção iniciais; será bem sucedida se encontrar equilíbrio entre assimilação e acomodação, se uma não se sobrepuser à outra. Todavia, há que reconhecê-lo, por vezes a pressão masculina dentro das organizações é tão forte que a tendência das mulheres é acomodarem-se, nesse contexto surge o desequilíbrio e surgem as «damas de ferro» que nem sempre deixam grandes memórias. Mas, não há como fugir: renunciar ao exercício do poder significa desistir de qualquer mudança social efectiva, o único caminho é aceder ao poder e partilhá-lo e, uma vez dentro da cidadela, tentar modificar a estrutura e o modo de exercício do poder.

Não há volta a dar-lhe, como diz Amanda Marcote[1]: não se pode sair da selva, a única hipótese é sobreviver; eu acrescentaria: e ir abrindo algumas clareiras.

[1] It’s a Jungle out there

Mulheres com o estatuto de menores

Na Arábia Saudita, país tão “ amigo” do Ocidente, em pleno século XXI, as mulheres gozam do estatuto legal de menores: não podem tomar a mínima decisão no que lhes diz respeito sem a aprovação de um guardião masculino que pode ser o pai, marido, irmão, ou mesmo um filho. É certo que na Europa, no século XVIII, as coisas não eram muito diferentes, mas bolas, passaram-se mais de dois séculos e nesses dois séculos processaram-se mudanças radicais.

O governo saudita, segundo as entrevistadas neste vídeo, é refém dos sectores religiosos mais reaccionários da sociedade civil e não propõe legislação no sentido de alterar tão aberrante situação; esta até sobrecarrega os homens que têm de tomar a seu cargo todas as decisões que dizem respeito às mulheres da família: como elas não podem entrar nos estabelecimentos oficiais e públicos para, por exemplo, requererem passaporte, bilhete de identidade ou uma simples consulta médica, são eles que têm de resolver esses e outros assuntos do mesmo teor.

As mulheres tentam reagir denunciando estas situações e reivindicando direitos e há pressões externas para que se operem mudanças, mas até à data, tudo o que se conseguiu, e que as entrevistadas consideram um passo significativo, foi o direito de as mulheres, vítimas de violência doméstica, puderem alugar apartamento ou hotel para residirem e assim se afastarem do agressor.

Um símbolo de opressão

Segundo um artigo da Associated Press, o governo francês pondera proibir o uso da burka nos espaços públicos e eu assino por baixo.
O uso da burka é para nós ocidentais um símbolo de opressão das mulheres que fere profundamente a nossa sensibilidade e assim como nos países islâmicos qualquer mulher jornalista ocidental procede em conformidade com os costumes do país e não se lembra de se apresentar de mini saia ou vestidos decotados, chegando mesmo a usar um arremedo de véu, cobrindo os cabelos, é de esperar que as mulheres muçulmanas, que vivem e transitam pelas nossas ruas, estabelecimentos comerciais e outros lugares públicos se vistam em conformidade com os nossos costumes, sem por isso precisarem de se exibir ou de serem menos discretas.
Não me parece que se possa falar em intolerância da nossa parte porque como escreveu o filósofo inglês contemporâneo Anthony Grayle «a tolerância tem de se proteger a si mesma» e não pode tolerar o intolerante sob pena de se auto-destruir.
Tolerar o atropelo dos direitos humanos mais fundamentais nos nossos próprios países é algo que não se chama tolerância, chama-se parvoíce e falta de respeito por si mesmo.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Brinquedos, jogos e sexismo

Falei anteriormente nos mecanismos, por vezes muito pouco subtis, que interferem com o processo de socialização e propõem modelos de comportamento que favorecem a continuação da supremacia masculina. Este vídeo, que encontrei no blog The Feminist Agenda, chama precisamente a nossa atenção para a maneira como a própria publicidade dirigida a crianças, nomeadamente a meninas de tenra idade, propõe brinquedos e jogos que nada têm de inocentes, ignorando completamente as conquistas feministas. No caso aqui caricaturado, é publicitado um jogo para as meninas se dedicarem àquilo em que são realmente boas: cozinhar e fazer compras para a casa. Assim realmente não vamos lá.

É preciso denunciar estas e outras situações semelhantes, pois não podemos esquecer que brincar é uma actividade demasiado séria para ser deixada ao arbítrio daqueles que com má fé ou por estupidez a pretendem continuar a manipular.

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quarta-feira, 17 de junho de 2009

Complementaridade entre os sexos – igualdade na diferença!?

A teoria da complementaridade entre os sexos renuncia a falar da superioridade de um sexo em relação ao outro, mas insiste nas diferenças que os distinguem e que atribui a naturezas também diferentes, insistindo em mais uma das visões dualistas em que a metafísica clássica é pródiga: o ser humano feminino teria uma natureza diferente do ser humano masculino.
De acordo com os partidários desta teoria, numa visão optimista e algo idílica, as diferenças entre os sexos permitiriam que eles se complementassem reciprocamente e que, nas suas respectivas funções, fossem felizes e realizados. É uma teoria que parece deixar toda a gente satisfeita e que vai ao encontro do senso comum; este apercebe-se de diferenças óbvias nos comportamentos dos dois sexos, mas não se questiona sobre as razões dessas diferenças; confunde costumes e hábitos de conduta com natureza e, com uma tão conveniente confusão, as mais gritantes desigualdades sociais passam a ser muito naturais. De resto, as classes dominantes sempre consideraram os seus privilégios muito naturais e, para se garantirem, com frequência chamaram Deus à colação, e às vezes até a própria ciência, para corroborar e tornar inquestionável o seu estatuto.
Mas já Stuart Mill, ainda em pleno século XIX , escreveu com acutilante lucidez:

«Aquilo que agora se designa por natureza da mulher é uma coisa eminentemente artificial – o resultado de repressão forçada em algumas direcções, estimulação não natural em outras. Pode afirmar-se sem hesitação que nenhuma outra classe de dependentes tem tido as suas características tão completamente distorcidas das suas proporções naturais pela sua relação com os seus senhores. (…)
As diferenças mentais que se supõe existirem entre homens e mulheres são apenas os efeitos naturais de diferenças na sua educação e circunstâncias e não indicam diferenças radicais, e muito menos, inferioridade radical de natureza.»

Postas estas considerações, na minha apreciação desta teoria considerar que as esferas feminina e masculina são separadas e que essa separação tem por fundamento a natureza é mais uma estratégia utilizada para evitar o perigo da igualdade sexual e para continuar a reservar o lar doméstico para as mulheres e o mundo para os homens, dimensões bastante diferentes, não?

Entendo a teoria da complementaridade entre os sexos como um mecanismo conceptual ao serviço da dominação masculina e alerto as mulheres para a ratoeira que com ela lhes querem continuar a armar e onde facilmente hão-de cair se estiverem, como na maioria dos casos estão, desprevenidas.

terça-feira, 16 de junho de 2009

Michel Onfray - um filósofo feminista

Michel Onfray, 50, embora extremamente popular em França, definitivamente não é um filósofo alinhado; bastante crítico do sistema é o que hoje em dia chamamos de «politicamente incorrecto». A sua crítica abrange as três grandes religiões monoteístas que acusa de negarem a vida e denegrirem o prazer em nome de pretensas realidades eternas e transcendentes. Não poupa também os grandes mestres da filosofia e a sua bastante óbvia misoginia. Neste contexto, como não podia deixar de ser, Onfray é também um defensor do feminismo e da reposição da justiça em relação às mulheres.

Considera que o cristianismo e a filosofia institucional se constituíram em super estrutura ideológica de suporte da dominação masculina, ao construírem um ideal feminino de abnegação, sacrifício e desistência, ao serviço do homem e da sua progenitura.

Embora reconheça Simone de Beauvoir como um marco na história do feminismo, não comunga a ideia, que aliás o próprio processo histórico desmentiu, de que o socialismo, acabando com a opressão de classe, poria automaticamente termo ao domínio dos homens sobre as mulheres.

Contra os que pretendem radicar a submissão da mulher ao homem numa pretensa natureza feminina, essencial e imutável, Onfray sublinha que a ética tem de ser anti-natura, contra-natura, por isso é que ela existe, de outro modo bastaria seguirmos a natureza e ela seria desnecessária. Convida a filosofia a desistir do seu passado e a denunciar o preconceito de que o destino da mulher é ser esposa e mãe. Denuncia a tentativa de, através da educação, impregnar as jovens com os valores da classe dominante masculina para que estas se tornem cúmplices do sistema.

Por fim, insiste na necessidade de se estabelecer uma efectiva igualdade de ser – igualdade ontológica entre mulheres e homens, acabando-se com mais um dos dualismos em que o pensamento ocidental é fértil - o dualismo no próprio domínio do ser humano.

O artigo de Michel Onfray que traduzi, publicado no Nouvel Observateur em 2008, dá conta dos aspectos que acabei de referir:

«O peso do cristianismo abate-se forte sobre os ombros das mulheres. A filosofia emprestou uma mão pesada à sujeição desta metade sublime da humanidade convidando-a a renunciar à sua feminilidade para se consagrar em exclusivo ao casamento e à maternidade. Há mil anos celebra-se a Virgem ou, o que vai vagamente dar no mesmo, a Esposa e a Mãe.
Eu fui preciso: a filosofia oficial. Entendo por esta a que, depois da instauração do cristianismo, dispõe de plenos poderes nas instituições. É longa a lista de pensadores que têm a pretensão de dizer a verdade para a totalidade do planeta mas que se cobrem de ridículo debitando disparates quando consideram a metade dos seus ocupantes.
O feminismo de Simone de Beauvoir teve o seu tempo, certamente, foi grande e necessário, mas a releitura da conclusão do «Deuxième Sexe» convence sem dificuldade da necessidade de repensar esta questão.
A ideia de que a instauração do socialismo suprimiria a exploração das mulheres pelos homens, eis o que parecia bom nos anos cinquenta.
Mas a etologia passou por lá: mostra-nos que o macaco é o futuro do homem, logo da mulher. Pelo menos retiremos dos mamíferos lições para uma ética do futuro: de facto, a moral deve ser um assunto anti-natura, contra-natura. Nesta perspectiva, a questão das mulheres é antes de mais a das fêmeas num mundo de machos em que a maior parte aspira a tornar-se dominante. Na configuração etológica, uma mulher define-se antes de tudo pela sua capacidade para ser a fêmea de um macho ou a mãe da progenitura do dito macho dominante. Se a filosofia pode dizer alguma coisa sobre este assunto, deve convidar a uma ruptura com este modelo pré-histórico: apesar do que dizem os filósofos oficiais e dominantes dos dois últimos milénios, o destino de duma mulher não passa pelo casamento e pela maternidade.
Certamente os homens têm interesse em pensar e depois divulgar estes disparates, porque de tal depende a esconjuração da sua angústia de não saberem responder ao desejo das mulheres a não ser pela satisfação da esposa e da mãe. O pensamento dominante impregna-se na educação das jovens raparigas, que, a partir daí, se tornam numerosas no avalizar do esquema do dominador …
Para pôr um termo aos filósofos, companheiros de viagem da infame besta misógina, precisamos de romper com este esquema do tempo das cavernas. Se a célebre fórmula de Simone de Beauvoir, «não se nasce mulher, vêm-se a ser mulher», é correcta (o que creio), deixe-se de indexar o destino das mulheres sobre a natureza, a sua natureza e promova-se uma autêntica igualdade ontológica que permita às mulheres serem esposas e mães se o desejarem, decerto, mas outra coisa também. Mulheres, por exemplo…»

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Casamento, família patriarcal e prostituição

Friedrich Engels (1820-1895) em A Família, a Propriedade Privada e o Estado defende a ideia, verdadeiramente revolucionária para a época, de que o Casamento e a Família Patriarcal, embora tenham um passado antiquíssimo, têm também uma história – uma origem no tempo, e, portanto, não são realidades eternas e imutáveis que seria preciso aceitar sem discussão; retira-lhes, desse modo, o carácter sagrado e intocável, abre o domínio à crítica e levanta a hipótese de ele poder ser reorganizado.

Na génese do casamento e da família patriarcal Engels encontra a dominação e a apropriação das mulheres pelos homens e a constituição da propriedade privada, inicialmente do gado e das mulheres, incluindo em seguida as terras e, posteriormente, o capital.
Engels apoia a ideia, que tinha sido já defendida por Stuart Mill, do casamento como escravatura doméstica, que Mill supunha decorrente da brutalidade original dos homens e que Engels entende como uma inovação opressiva que se iria transformar no modelo de outras formas de opressão, estando assim na base de todas as desigualdades e injustiças posteriores.
Na organização da família patriarcal, a propriedade privada e o sistema de heranças com o favorecimento da primogenitura teriam sido os elementos determinantes: a fim de garantir que os seus bens vão ser herdados pelos seus legítimos filhos, o pai de família tem também de garantir a sua dominação sobre a mulher, controlando a sua sexualidade, exigindo-lhe recato absoluto e punindo brutalmente qualquer eventual transgressão à regra; todavia, irá reservar para si um outro padrão de conduta mais consentâneo com as urgências da «natureza». É neste contexto que surge o casamento monogâmico que afinal não é tão virtuoso como os seus partidários defendem porque, na prática, à conta do duplo padrão de conduta, a monogamia só funciona para as mulheres.

Ainda segundo Engels, é na instituição do casamento monogâmico que é preciso procurar as raízes da prostituição. Se as mulheres – esposas - têm de ser castas, se o adultério feminino é severamente punido e, portanto desencorajado, os homens só poderão ter outras relações sexuais fora do casamento com um tipo de mulheres que não estejam sujeitas a esses constrangimentos. Serão as mais fracas, as mais pobres e as menos educadas que irão constituir a reserva para a exploração sexual masculina.
Numa cultura em que a dominação masculina é elemento essencial, a prostituição transforma-se numa necessidade que decorre naturalmente dessa supremacia; mas, dado o contexto em que surge, com a proclamação oficial dos valores femininos da castidade, da fidelidade e do recato, ela tem de ser moralmente condenada pela moral hipócrita daqueles que, servindo-se das prostitutas, não têm qualquer pejo em marginalizá-las e em desprezá-las.
Foi assim que Tomás de Aquino, o grande e inefável Doutor da Igreja pode escrever com toda a tranquilidade do mundo:

«O que é que pode ser mais sórdido, mais desprovido de modéstia, mais vergonhoso do que prostitutas, bordeis e todos os outros males deste tipo?! Todavia, remove a prostituição dos assuntos humanos e poluirás todas as coisas com luxúria; estabelece-a entre as matronas honestas e desonrarás todas as coisas com desgraça e torpeza.»

sábado, 13 de junho de 2009

Mulheres – cúmplices e vítimas

Tenho dificuldade em compreender as razões por que tantas mulheres apoiam e defendem sociedades e valores que são nitidamente sexistas e que mantém condições objectivas para que se perpetue o sistema de opressão do feminino e a minha reflexão de hoje segue neste sentido.

Podemos considerar que ao longo dos tempos, nas diferentes sociedades, para além de outros tipos de dominação que aqui não vou referir, o masculino, enquanto classe, correspondeu a uma espécie de aristocracia e foi sinónimo de privilégio. Nas nossas memórias mais antigas, mas não tão antigas assim, lembramos, ou sabemos, que no Ocidente, nas famílias, a atenção e os cuidados concedidos aos filhos eram muito superiores aos reservados para as filhas, tanto em termos de alimentação, como de escolaridade e de liberdade de movimentos e de experiências e presumimos, com boas razões, que esta é a situação que ainda hoje se verifica em outras civilizações e em outros espaços geográficos e que está no cerne daquilo que entendemos por regime patriarcal: um tratamento de favor e um estatuto de superioridade concedido aos homens.

Julgo pois que podemos assentir em que a dominação masculina é um facto e que se manteve e mantém porque as mulheres não se revoltam contra ela. Mas para que tal tivesse acontecido, e continue a acontecer, torna-se necessário contar com mecanismos sociais mais ou menos difusos, mais ou menos subtis, que permitam a perpetuação da dominação. O objectivo desses mecanismos será o de conseguir “naturalizar” a dominação masculina, mostrar que ela é natural e não socialmente construída e que portanto está justificada. Para evitar a revolta da classe dominada - neste caso das mulheres, era necessário que as ideias, os valores e as regras da classe dominante fossem por elas assimiladas e isso foi conseguido em boa parte graças à intervenção desses mecanismos. Uma vez assimilados esses valores por um processo amplamente inconsciente, as mulheres tornam-se cúmplices da própria ordem social de que são vítimas.

Um desses mecanismos, porventura o mais poderoso, foi e continua a ser a religião de tipo patriarcal de que o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo – as religiões do Livro, constituem o exemplo mais acabado. Afirmar, sem poder ser refutado, sob pena de excomunhão ou até de condenação à morte, que foi o próprio Deus que decretou a submissão das mulheres é uma arma tenebrosa que mantém em respeito qualquer veleidade de dissidência e que ainda hoje se encontra perfeitamente actuante, embora mais atenuada - mas apenas mais atenuada, no Judaísmo e Cristianismo. Ora, como muito bem sabemos, as religiões “fazem a cabeça das pessoas” e por seu intermédio, as ideias e os valores da classe dominante são interiorizadas pelas dominadas.

Um outro mecanismo, que durante séculos funcionou lindamente, foi vedar às mulheres o acesso à educação e sobretudo à instrução. Lembremos que, mesmo no Ocidente só com o século XIX já bem entrado, foram admitidas mulheres em algumas universidades, e que, ainda hoje, a mulher letrada ou a intelectual é vista com desconfiança, afirmando-se que terá menores hipótese do que as outras no mercado marital. Também sabemos como as sociedades islâmicas mais fundamentalistas procuram dificultar ou até impedir a escolarização das mulheres e como há ainda muitos obstáculos ao exercício de determinadas profissões por parte das mulheres.

Além destes, há outros mecanismos mais difusos, mas não menos poderosos, ligados à indústria de entretenimento e à publicidade, hoje muito activos, e que sub-reptícia e insidiosamente moldam as mentalidades tentando perpetuar modelos de comportamento que remetem a mulher para o papel e o lugar que seria o mais adequado na perspectiva da dominação masculina. Sabemos como até na linguagem está presente o sexismo e como são combatidas as tendências para a libertar da carga sexista. Sabemos que a divisão de papéis e a sobrecarga da mulher com os trabalhos domésticos e o cuidado dos filhos funciona como mecanismo que as isola e impede de participar na esfera pública onde poderiam ter uma intervenção mais activa no sentido de promoverem mudanças nas estruturas sociais de opressão.
Deste modo, uma vez percebido o processo de actuação da dominação masculina já podemos entender as razões por que tantas mulheres a aceitam e até defendem. Elas são vítimas daquilo que Pierre Bourdieu designa de violência simbólica que leva a que inconsciente e involuntariamente incorporem e partilhem a visão do mundo e os valores da classe que as oprime. Assim, ou se encontram “mentalmente colonizadas” e não têm consciência da situação, ou como se costuma dizer, em linguagem mais popular, fazem da necessidade virtude – não conseguindo eliminar a dominação defendem-na e julgam-na boa.

Conhecer os mecanismos sociais de dominação masculina é um passo importante mas não suficiente para a pôr em causa, pois como escreve Bourdieu: “ A ruptura não pode resultar de uma simples tomada de consciência; a transformação das disposições não pode avançar sem uma transformação prévia ou concomitante das estruturas objectivas de que elas são o resultado…”
As estruturas objectivas que podem ajudar à transformação das disposições e à anulação da dominação masculina são todas aquelas que contribuam para autonomizar e libertar a mulher e de que podemos enumerar algumas das mais importantes: acesso á instrução e ao mercado de trabalho em termos paritários com os homens; controlo da sua capacidade reprodutiva; divisão de tarefas domésticas em termos equitativos com o homem; acesso das mulheres a cargos políticos.

O combate das Igrejas organizadas a práticas abortivas e até, pasme-se, a práticas anti-concepcionais não acontece por acaso; a ladainha de que a mulher que trabalha põe em risco a formação das crianças e consequentemente a tranquilidade da sociedade (como se os homens não fossem tidos nem achados na matéria) também não acontece por acaso.

Nada acontece por acaso!

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Uma moral de duas caras

A moral tradicional, de raiz judaico-cristã, tal como a conhecemos, exalta como valores a mansidão, a obediência, o espírito de sacrifício e de serviço, o altruísmo e a humildade e exala um odor indelével a santidade, muito do agrado das pessoas simples, pouco dadas à crítica e ao exercício da reflexão. Mas já Nietzsche (1844-1900), que de simples não tinha nada, a designou de moral de escravos, tanto no sentido em que teria resultado do triunfo dos escravos com o Cristianismo como porque defenderia um quadro de valores que implicariam submissão e obediência à autoridade, seja à autoridade divina, seja à autoridade temporal que se arvora em representante daquela.
Eu própria, bastante crítica em relação a Nietzsche, mas igualmente reticente em relação à moral tradicional, não posso deixar de tirar algumas conclusões que podem parecer cáusticas e ousadas e muito afastadas do politicamente correcto:

(1) Em primeiro lugar, a moral tradicional parece-me uma moral irrealista porque, como muito bem sabemos, ninguém gosta de obedecer, ninguém gosta de sacrificar a sua realização à realização do vizinho, ninguém gosta de ser escravo e todos preferem a liberdade; não toma pois em conta os seres humanos reais e pretende impor-lhes um dever ser que leva à negação do ser.

(2) Além disso, ou até por isso, revela-se uma moral hipócrita porque, embora idealize qualidades que procura impor aos oprimidos, na prática os opressores ignoram-nas completamente e só fica a retórica. Este aspecto é sublinhado por Mary Daly[1] que dá o exemplo de «Prelados ambiciosos (que) têm sido louvados não pela sua ambição, mas pela sua humildade» e «políticos rapaces e desapiedados (que) falam frequentemente em tom compungido de serviço, sacrifício e dedicação». Pode acontecer que estas pessoas se enganem a si mesmas - os mecanismos a que o ser humano recorre para se auto-ludibriar são inúmeros e poderosos, mas não é isso que estou a pôr em questão, o que defendo é que, na prática, as reais motivações e os valores que estão em campo são outros que não os apregoados pela moral tradicional, daí falar em hipocrisia: persiste apenas para consumo externo, proclamada e louvada nos discursos, mas não seguida nas práticas, serve uma agenda escondida cujo objectivo é manter as massas aquietadas.

(3) É a moral da sociedade patriarcal e, nesse aspecto, funciona muito bem porque ignora e nunca critica as estruturas opressoras e toda ela gravita à volta dos princípios da obediência e do respeito pela autoridade, transformando em pecado qualquer ofensa àqueles que detém o poder. É uma moral que não serve os seres humanos e, de entre estes, especificamente as mulheres, suas principais vítimas, porque estas, obrigadas a interiorizá-la por poderosos processos de aculturação, reforçam, por seu intermédio, o estatuto de seres dependentes e menores que a sociedade lhes atribui.

(4) É uma moral centrada no repúdio do corpo e do sexo, considerados obstáculo ao aperfeiçoamento do espírito, que tende a responsabilizar as mulheres pelas tentações dos homens, transformando-as em bodes expiatórios e repositório de todo o mal.

Denunciar os valores da moral judaico-cristã e transmutar esses valores era o projecto de Nietzsche, mas à moral dos escravos opunha a dos senhores e, atraiçoado pela sua profunda misoginia, não percebeu que os valores que criticava eram os da sociedade patriarcal e que só o sucesso do movimento feminista, que ele desprezava profundamente, poderia permitir que fossem postos em causa.

Esta moral, embora de raiz judaico-cristã, talvez porque é a que serve os interesses das sociedades patriarcais, não se limita geograficamente aos países do Ocidente, encontramo-la igualmente forte nos países muçulmanos e praticamente em todo o mundo onde as estruturas patriarcais subsistem.
Podemos dar um exemplo simples, que o comprova e que mostra como esta moral da submissão e da modéstia não serve a causa das mulheres. Recordemos o caso de Mukhtar Mai, jovem, vítima de violação de grupo, no Paquistão, violação que foi determinada por um conselho tribal para castigar o crime cometido pelo irmão que teria tido relações sexuais com uma rapariga de uma casta superior à sua. Mukhtar Mai sofreu o abuso, mas não ficou calada, não se envergonhou, não se suicidou: atreveu-se a desafiar o terrível estigma social que é a violação e apresentou queixa, sabendo que seria mal vista por muitos, a começar pelas autoridades, porque, em vez da coragem que revelou ao denunciar o crime - e que não seria própria do seu sexo, deveria ter tido vergonha e limitar-se a desaparecer de uma ou de outra maneira. Mas não, ela afirmou um novo estilo feminino de existência humana, não foi «mansa» nem «humilde», foi corajosa e enfrentou de cabeça erguida a situação; transgrediu a velha moralidade que lhe ordenava prudência e submissão por detrás da fachada da falsa modéstia, numa palavra, pôs em causa os valores da sociedade patriarcal e da moralidade na qual esta se respalda. Hoje Mukhtar Mai, que já viu a sua história publicada, dirige uma escola para jovens provenientes de meios desfavorecidos e uma casa abrigo para mulheres vítimas de abuso - transformou-se no símbolo de uma mulher que foi à luta e que venceu porque empreendeu uma luta justa e digna e não se deixou abater pela moral tradicional.

É curioso lembrar que também Kant, monstro sagrado da filosofia ocidental, teria reprovado o procedimento de Mukhtar Mai porque, para ele, a vergonha de ter sofrido uma violação e de não ter resistido, mesmo que fosse à custa da própria vida, deveria levá-la a esconder-se e a evitar toda e qualquer publicidade. Mas, se reflectirmos um pouco, percebemos que afinal a ética kantiana é apenas uma maneira mais sofisticada de reciclar e de tornar aceitável, em tempos mais críticos – período do Iluminismo, a tradicional moral judaico-cristã. Como sabemos, Kant sofreu forte influência da seita pietista em que foi educado e esta repercutiu-se na sua obra e particularmente na ética que nos legou.

Por todos estes motivos, não me canso de repetir que devíamos dar mais atenção às propostas éticas, simples e humanas, de David Hume, que aqui já tive oportunidade de apresentar, e devíamos começar a desconstruir éticas do tipo da kantiana e morais do tipo da judaico-cristã. Espero ter dado algum contributo nesse sentido.

[1] Beyond God the Father

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Filiação, vínculo de afecto ou vínculo biológico?

Assisti a um vídeo, divulgado pelo blog «Sindrome de Estocolmo», no qual se debate a questão de um menino que vive no Brasil com o pai afectivo, mas cuja guarda é disputada pelo pai biológico de nacionalidade norte-americana. Este caso é semelhante a outros que têm ocorrido em Portugal. Mas não resisti a divulgar o vídeo deste debate pois me parece constituir um exemplo, dada a elevação com que o assunto é abordado, que os nossos media deveriam seguir, ao invés do tratamento que costumam dar a estes temas, a puxar um pouco para o popular e demagógico.

terça-feira, 9 de junho de 2009

Quando o movimento pró-vida se compromete com assassínios terroristas

Nos Estados Unidos, país que se proclama da democracia e da liberdade, os movimentos anti-aborto procuram recuperar pelo terror e pelo assassínio o terreno que perderam nas urnas e fazem-no, paradoxo dos paradoxos, em nome da vida. Matar médicos que praticam o aborto e danificar as respectivas clínicas é a estratégia terrorista utilizada; se conseguirem aterrorizar os médicos, as mulheres deixarão de poder recorrer ao aborto nas circunstâncias em que a legislação em vigor o permite. Mais uma vez se invoca o nome de Deus e a autoridade de Jesus Cristo para cometer assassínios e julgar os actos dos outros, mesmo se estes se encontram protegidos pelas leis democraticamente votadas.

A corajosa reportagem de Rachel Maddow dá-nos conta deste preocupante fenómeno que visa intimidar a população e conduzir à revisão das leis existentes em relação ao aborto, estando nitidamente ao serviço de uma agenda política.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Temos uma sacerdotisa!?

Alysa Stanton, 45, afro-americana, será ordenada rabi no próximo sábado, o que constituiu um marco na história da religião judaica. Altura para se pensar em feminizar mais um nome, não?

Linguagem sexista e «dominação simbólica»

Continuando a seguir a exposição de Olga Castro Vasquez, podemos dizer que a linguagem sexista, que reflecte os valores dos grupos de poder constituídos por elementos masculinos da sociedade, foi durante séculos aquela a que as pessoas, homens e mulheres, tiveram acesso. Como Aristóteles disse, e todos sabemos, o hábito é uma segunda natureza e, aos falantes de uma língua, habituados a utilizá-la, esta surge como naturalmente necessária e como a única possível. Desse modo, mesmo sem se aperceberem os grupos dominados acabam por assimilar os valores que os dominantes entendem como bons e preferíveis. Este processo, que ocorre sem recurso a qualquer tipo de violência física, mas que efectivamente equivale a uma violência - porque o dominador impõe ao dominado um estatuto de inferioridade e de desigualdade, designa-se por «dominação simbólica»; foi Pierre Bourdieu quem cunhou o termo e explicitou o fenómeno:

«A dominação masculina está de tal modo ancorada nos nossos inconscientes que já nem nos apercebemos dela; corresponde de tal modo às nossas expectativas que temos dificuldade em pô-la em questão. Mas mais do nunca é indispensável dissolver as evidências e explorar as estruturas simbólicas do inconsciente androcêntrico que sobrevive nos homens e nas mulheres. Quais são os mecanismos e as instituições que cumprem a função de reproduzir «o eterno masculino»? É possível neutralizá-las para libertar as forças de mudança que elas conseguem travar?»

Podemos agora perceber porque é que muitas mulheres não se sentem incomodadas nem discriminadas pelo uso da linguagem sexista: encontram-se numa situação de alienação e de dominação simbólica; não tendo consciência de que estão a ser discriminadas, tal facto, que para elas não existe, não as perturba.

Eu não utilizaria os serviços da Mayflower

A nossa sociedade está de tal modo impregnada de sexismo que os criativos não resistem a incorporá-lo nos seus anúncios publicitários e, quando confrontados, normalmente manifestam uma ingenuidade que parece tudo menos genuína: não era essa a intenção, dizem.
Embalar a noiva em celofane e transportá-la qual objecto precioso pode servir os interesses de uma companhia de mudanças que pretende enfatizar o cuidado com que trabalha, mas não serve os interesses do feminismo e portanto precisa de ser denunciado. É o que se escreve no blog onde encontrei este vídeo: «Mulher como propriedade? Esta é uma das ideias sexistas mais antigas!»

O pior é que o anúncio até parece inofensivo, veja-se o ar radiante da noiva ao ser tratada como mais uma peça de mobiliário!

domingo, 7 de junho de 2009

Porque é que a linguagem não sexista incomoda tanta gente?

Como referido anteriormente, a linguagem não sexista pretende ser uma linguagem inclusiva que dá visibilidade às mulheres, estabelecendo um tratamento simétrico entre homens e mulheres a nível linguístico.
Se é certo que os hábitos linguísticos não se alteram por decreto, também é um facto que os defensores do status quo tudo fazem para impedir alterações que de modo nenhum os entusiasmam, recorrendo e invocando as mais diversas razões e apoiando-se no entendimento das estruturas linguísticas que mais lhes convém.

De qualquer modo, a reacção negativa à linguagem não sexista parece apenas ser explicável por dois tipos de razões:

(1) Ou se reage negativamente porque se considera que a questão linguística é uma questão menor e que a língua é apenas a expressão do pensamento e um simples meio para representar o mundo.

(2) Ou se entende muito bem a importância da linguagem, mas pretende-se impedir alterações pelo receio de que estas impliquem consequências práticas que não convém aos seus oponentes. Esconde-se todavia esta motivação por detrás de pretensos purismos linguísticos e razões gramaticais.

O texto de Olga Castro Vasquez, que temos vindo a seguir, expõe com clareza esta questão:

«Só encontro dois possíveis motivos para o repúdio do uso da linguagem inclusiva. O primeiro motivo radicaria no desconhecimento da dimensão que a linguagem tem na nossa cosmovisão da sociedade, pelo que se considera que a maneira como usamos as palavras não tem nenhuma repercussão no nosso pensamento nem na imagem da realidade que construímos na nossa mente. Quem adere a esta suposição não tem necessariamente intenção de ser sexista; mas é-o.
O segundo motivo consistiria em entender perfeitamente a repercussão da linguagem na sociedade e em compreender que mudar a nossa maneira de falar e de conceptualizar o mundo terá consequências práticas e materiais nas nossas vidas que implicam a perda dos privilégios patriarcais. E é justamente por esse motivo que quem adere a esta segunda suposição procura reduzir ao silêncio ou meter a ridículo a linguagem não sexista, recorrendo a quantas razões gramaticais encontra para esconder a sua verdadeira intenção misógina.»

sábado, 6 de junho de 2009

O potencial da linguagem na construção da realidade

A opressão das mulheres não decorre apenas das desigualdades de tratamento a que em diferentes partes do mundo as práticas sociais as sujeitam, mas tem também expressão onde menos esperávamos encontrá-la: na própria linguagem que, forjada em sociedades patriarcais, dominadas pelos elementos masculinos, teria de reflectir necessariamente os interesses e as perspectivas da «classe dominante». Assim, ainda hoje, mesmo nas sociedades mais avançadas, a linguagem retém inúmeros vestígios sexistas que indiciam tratamento assimétrico entre homens e mulheres a nível linguístico e a tendência para manter as mulheres numa certa invisibilidade e ausência de protagonismo.

A linguagem não se limita a reflectir e a exprimir a realidade, mas também a constrói e, se isto for verdade, então lutar por uma linguagem não sexista acabará por ter repercussão na prática e irá contribuir para que se operem mudanças não só na percepção que temos da realidade mas na própria realidade. Essa pode ser a razão, escondida e sempre negada, por que muitos resistem às alterações linguísticas propostas no sentido de se feminizar certas palavras e expressões, alegando que tal é desnecessário ou tentando ridicularizar tais esforços.

O texto de Olga Castro Vasquez[1], de que traduzimos alguns excertos, esclarece e aprofunda este tema:

«Para além das estruturas materiais e práticas, a opressão das mulheres existe também nas próprias bases do logos e do raciocínio, e estas incluem procedimentos linguísticos subtis e processos lógicos por meio dos quais se produz o significado. Pensamos com palavras e com categorias gramaticais e imaginamos a realidade através da representação cognitiva que fazemos dela por meio da linguagem. O famoso princípio cartesiano “penso, logo existo» ganharia sem dúvida precisão se se formulasse como propôs Wittgenstein, “falo, logo penso, logo existo”. As empresas mediáticas e publicitárias sabem isto tão bem que calculam escrupulosamente as palavras a utilizar nos seus discursos para construir nas nossas mentes uma realidade que resulte vantajosa para os seus propósitos, concordes em geral com os princípios hegemónicos neo-liberais. Todavia, isto que tem valor axiomático nas escolas de comunicação e publicidade inexplicavelmente deixa de ser válido quando reinvindicado pelos feminismos. Ou talvez haja uma explicação: dado o potencial da linguagem na construção mental da realidade, a linguagem não sexista supõe toda uma ameaça contra a ordem social estabelecida e por este motivo provoca em certos grupos sociais um receio profundo de que os valores feministas derrubem esses princípios hegemónicos que tanto os beneficiam, origina o medo de que se produza uma mudança social que enfraqueça parte dos privilégios que a linguagem e a sociedade patriarcal lhes outorgam e, por isso, quando não conseguem submeter ao silêncio as reivindicações feministas, utilizam o ridículo como forma de deslegitimação.
A linguagem não sexista não visa apenas tratar de forma simétrica mulheres e homens a nível linguístico, mas também ganhar precisão e exactidão a nível cognitivo, sem excluir nem tornar invisível qualquer dos sexos. Não se trata de mudar a linguagem apenas para o fazer, nem sequer por uma questão estética ou de moda, nem se trata tão pouco de impôr mudanças prescritivas. Pelo contrário, do que se trata é de mudar o repertório de significados que as línguas transmitem, de transformar a linguagem para fazer uma representação mais igualitária da realidade que conduza a uma categorização também mais igualitária nos modos de pensamento, e de promover a reflexão sobre as mudanças na língua para que as e os falantes pensemos no que dizemos e em como o dizemos, de modo que desse modo se gerem mudanças nas perspectivas que, por sua vez, terão consequências materiais na acção humana e na realidade.»

[1] Olga Castro Vasquez (1980) é jornalista e tradutora e encontra-se a escrever uma tese de doutoramento na Universidade de Vigo sobre o papel da linguagem, dos media e das novas tecnologias na reforma societal conducente a uma sociedade não sexista.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

É errado pagar por sexo?

Porque me parece bem argumentada, aqui apresento uma intervenção no debate sobre este tema que defende que não é errado pagar por sexo.Vale a pena ponderar as razões que Tyler Cowen apresenta.
Cowen começa por referir que é preciso levar em conta a condição humana e a diversidade de situações em que se recorre à prostituição, antes de produzir um discurso moralista sobre o problema.
Por outro lado, chama a nossa atenção para o facto de que proibir uma actividade humana nunca foi solução para a erradicar, mas sempre contribuiu para abusos, injustiças e exploração associadas ao seu exercício.
Referiu ainda que também a instituição do casamento em muitas culturas e partes do mundo é ocasião para tremendos abusos mas nem por isso nos lembramos de a proibir, o que pensamos é que seria melhor aperfeiçoar essa instituição; o mesmo se passando com a instituição bancária. Cita ainda o exemplo da pesca de alto mar que comporta tremendos riscos para aqueles que se lhe dedicam, mas que se deve encarar não numa perspectiva moralista mas numa perspectiva de tornar a actividade mais segura, melhorando os recursos e as condições de trabalho.
O ponto crucial da argumentação de Cowen é que se estiverem envolvidas pessoas adultas informadas e que dão o seu consentimento, nessas condições, pagar por sexo não é errado; o que é errado é a actividade não estar legalizada nem regulamentada dando assim origem aos abusos já referidos.
Em defesa da sua tese, cita o exemplo da Nova Zelândia que tem a prostituição regularizada desde 2003 e que, de acordo com os dados revelados, é uma experiência que tem dado certo.
A intervenção de Tyler Cowen neste debate parece-me bastante realista e pragmática e esse aspecto seduz-me, todavia julgo ser necessário aprofundar a reflexão antes de decidir sobre o tema.


quinta-feira, 4 de junho de 2009

"A moral ocidental é homossexual"

Estava à procura de uma imagem para ilustrar a moral judaico-cristã sobre a qual ia escrever e eis que topo com este magnífico poema de um poeta que desconhecia. Não resisti a transcrevê-lo, deixando para depois o post sobre a dita moral.

Deus fez a mulher,
O Diabo a possuiu.
O homem então fez a poesia.

Essa moral judaico-cristã
Cansa a minha beleza.

Não é preciso ir muito longe
Pesquisar o Tao no Oriente
Pra sacar coisa melhor.

Aqui mesmo em Pindorama
Existe a moral Yorubá…
A feminina Odudua
E o masculino Obatalá
Fizeram juntos a criação:
Da Terra, da Gente e a Natureza.


A moral Ocidental
Explica a Criação
Na oposição Deus-Diabo.
A mulher no caso
É mera coadjuvante.

Olha aqui,
Não me leve a mal,
Mas a moral Ocidental
É homossexual!


Ricardo Muniz de Ruiz – poeta mameluco-brasileiro
Publicada por Nelson Ngungu Rossano em 12:17 AM

Obama sobre a educação das mulheres

Barack Obama pronunciou hoje 4 de Junho no Cairo, Egipto, um discurso de que seleccionei um excerto no qual se refere às mulheres e a questões de igualdade:

"I reject the view of some in the West that a woman who chooses to cover her hair is somehow less equal, but I do believe that a woman who is denied an education is denied equality. And it is no coincidence that countries where women are well-educated are far more likely to be prosperous.Now let me be clear: issues of women's equality are by no means simply an issue for Islam. In Turkey, Pakistan, Bangladesh and Indonesia, we have seen Muslim majority countries elect a woman to lead. Meanwhile, the struggle for women's equality continues in many aspects of American life, and in countries around the world.Our daughters can contribute just as much to society as our sons, and our common prosperity will be advanced by allowing all humanity – men and women – to reach their full potential. I do not believe that women must make the same choices as men in order to be equal, and I respect those women who choose to live their lives in traditional roles. But it should be their choice. That is why the United States will partner with any Muslim majority country to support expanded literacy for girls, and to help young women pursue employment through micro-financing that helps people live their dreams."
Media Resources: Remarks of President Barack Obama 6/4/09


Pela minha avaliação, trata-se de um discurso positivo, mas, e se calhar não podia deixar de ser - considerando o contexto, apenas politicamente correcto, no qual foram proferidas algumas trivialidades e omitidas referências a direitos fundamentais das mulheres ignorados em tais partes do mundo.

Começar por colocar o costume de tapar cabelo e rosto em termos de escolha é capaz de não ser muito sério; apenas é desculpável por Barack estar a falar onde estava.

A tónica na educação lembra a primeira vaga do movimento feminista quando mulheres, como Mary Wollstonecraft, reivindicavam igualdade de oportunidades em relação á instrução e educação. É um primeiro e importante passo, um passo básico. Ligar a educação da população feminina à maior prosperidade das nações é uma estratégica inteligente, mas não sei se será persuasiva, considerando as mordomias que muitos homens porventura não estarão interessados em perder.

Referir que no Ocidente ainda há muitos problemas a resolver quanto à igualdade entre homens e mulheres não é novidade, mas pretender equiparar estas dificuldades com as sentidas nos países muçulmanos só pode ser entendido como uma operação de charme, para agradar aos anfitriões.

Empenhar-se e empenhar o seu país activamente no apoio à alfabetização das raparigas e na promoção do emprego para jovens mulheres parece-me ser o aspecto mais positivo da intervenção de Barack Obama.
Na imagem: estudantes universitárias manifestam espectativas positivas em relação à visita de Obama.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

É errado pagar por sexo!?

Depois de Catharine Mackinnon, cabe a Melissa Farley, psicóloga clínica e investigadora que tem participado em campanhas anti-pornografia e anti-prostituição, pronunciar-se sobre o mesmo tema:

«Some words hide the truth. Prostitution is named a choice, a job, work, a “victimless crime…”
Prostitution is not a choice because the precise conditions that make for a choice are absent; for example, equality with buyers, physical safety, real alternatives. If you imagine a pyramid, only five percent of those in prostitution are at the top. They are privileged by race and class. The other 95 percent don’t have that privilege or alternatives for escape.
Our studies show that the johns who have bought the most women in prostitution are the most likely to commit sexually coercing acts with non-prostituted women.»



Depois de assistir a este vídeo, considera errado pagar por sexo? Mudou a sua opinião sobre o assunto?

Assassínio em nome da vida

George Tiller, médico e proprietário de uma clínica que pratica aborto no Kansas, foi assassinado. Tiller já tinha sido ferido em 1993 e a clínica tinha sido alvo de um atentado à bomba.

Encontra-se detido um suspeito, Scott Roeder, 51, membro de um partido de extrema direita e integrante da Operation Rescue de 2007 que promovia a luta violenta contra a prática do aborto.

Nesta imagem de 2001, um grupo de homens do movimento anti-aborto encosta-se a uma vedação no exterior da clínica do Dr. Tiller. O medo de perder o controlo sobre as mulheres é o combustível que alimenta o movimento anti-aborto e é tão grande que em nome de uma vida potencial se põe termo a uma vida real. Claro que, mais uma vez, a religião fornece o suporte ideológico para um crime de ódio.

terça-feira, 2 de junho de 2009

Uma mulher na Presidência do Parlamento Indiano

Ms Kumar, 64, deve ser hoje, quarta-feira, 3 de Junho, eleita Speaker do Parlamento Indiano. Este importante lugar será ocupado pela primeira vez por uma mulher e por uma mulher que pertence à casta Dalit - comunidade dos intocáveis que durante séculos foi discriminada na India. Este é pois um momento histórico com um duplo significado.

É errado pagar por sexo!?

Neste vídeo, que acabei de conhecer no Blog Women´s Space, Catharine A. Mckinnon, professora na Faculdade de Direito da Universidade de Michigan, responde à pergunta de um debate promovido pela NPR Televisão: É errado pagar por sexo?
Catharine Mackinnon, conhecida como feminista radical, advoga o modelo sueco que criminaliza o homem que se serve da prostituta, considerando a desigualdade e a assimetria em que se encontram os dois intervenientes no «negócio»; este modelo visa assim proteger a parte mais fraca.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Linguagem e sexismo

Estou a ler um artigo de Olga Castro Vasquez, publicado na revista O Verbo Patriarcal e editado no Blog Sexismo Publicitário sobre linguagem e sexismo e proponho a seguinte reflexão:

Será desejável feminizar-se determinadas palavras, como por exemplo, a presidenta ... a fiscala, a chefa, ou deve manter-se a linguagem sexista tradicional?

Quando nos dirigimos a alunos e alunas, bastará utilizar-se a primeira formulação, considerando-se que o masculino é genérico?
Reparem, hoje dizemos: a ministra, a juíza... mas nem sempre foi assim!


Querem dar palpite sobre o assunto?