segunda-feira, 26 de março de 2012

As mulheres e o cristianismo

Surgido no Império Romano, o cristianismo era inicialmente apenas um entre muitos outros movimentos religiosos em que a época era fértil e não tinha quaisquer ligações com o poder político.
Desde muito cedo, os cristãos, procurando fazer a diferença em relação ao paganismo e ao judaísmo, advogaram uma moralidade sexual austera que acabou por se tornar uma marca identitária do novo credo. Assim, a ética sexual cristã foi-se formando com a nítida pretensão de se demarcar da moral sexual pagã e judaica; apresentou-se como uma moral sexual muito mais exigente e muito menos permissiva que considerava a abstinência sexual uma virtude e via no celibato um estado mais perfeito do que o próprio casamento heterossexual.
Curiosamente era uma moral muito mais igualitária do que a pagã ou judaica pois que, por uma questão de coerência interna, tinha de rejeitar a poligamia e o divórcio (que favoreciam os homens), o adultério, tanto de esposas como de maridos, e a instituição da prostituição (também favorável aos homens). Segundo o ensinamento religioso, Cristo tinha condenado a prostituição mas não culpara as prostitutas
Inicialmente o cristianismo era um movimento milenar que pregava a salvação das almas. Para se prepararem para o juízo final, que não viria longe, muitos abandonavam bens, profissões, não casavam para se juntarem ao movimento, juravam castidade, ou mesmo, quando casados, levavam vidas de abstinência sexual.
Não foi por mero acaso que as hostes cristãs foram engrossadas sobretudo por mulheres e escravos, socialmente marginalizados, eram quem tinha mais a ganhar com este tipo de moralidade sexual. Para mulheres de todas as classes sociais o celibato era quase uma bênção pois representava uma possibilidade de liberdade que, de outro modo, não podiam antever. Se a sexualidade impunha e reforçava a hierarquia social e um estatuto desigual, evitar a sexualidade, negá-la, equivalia em certo sentido a negar essa desigualdade:

” Para escravos e mulheres de todas as classes, no mundo antigo, a escolha do celibato significava uma liberdade que de outra maneira não conseguiriam. Escapar à sexualidade significava libertar-se de um estatuto servil no qual mulheres e escravos viviam para conveniência dos maridos, pais, senhores, e governantes.” (Hard Bargaisn)

Claro que, como a autora de Hard Bargains insiste, o celibato só apresentou esta vantagem para as mulheres porque era defendido num contexto de desvalorização do físico e de enaltecimento do espiritual, se este não tivesse sido o contexto, as mulheres seriam desvalorizadas e ainda ficariam mais a mercê dos homens porque só seriam vistas como necessárias no contexto do casamento heterossexual.
Mas esta moral igualitária veio a ter de fazer concessões à sociedade real, afinal o mundo não acabava, como os milenaristas profetizavam, e os sacríficos perdiam sentido. Assim, quando finalmente o cristianismo se transformou na religião oficial do Imperio Romano do Ocidente, teve de fazer concessões políticas e de se harmonizar com os interesses da sociedade patriarcal, retirando completamente às mulheres alguma autonomia que inicialmente lhes conferira.
Não deixa todavia de ser interessante saber que potencialmente, até em relação às mulheres, o cristianismo se assumiu como uma ideologia progressista, pena é que rapidamente tenha degenerado, colocando-se ao serviço dos senhores de sempre.

quarta-feira, 14 de março de 2012

As jovens e o feminismo

Encontrei aqui um post interessante sobre a velha rejeição do feminismo por jovens mulheres que são ignorantes da história, o que não admira muito porque se tem feito tudo para apagar do passado o que não interessa ao statu quo. Mas mesmo assim não deixa de ser lamentável essa ignorância, sobretudo vinda de uma jovem que cursou uma universidade e até tirou um curso de filosofia, pergunto-me para que lhe serviu? A jovem em questão é Talyta Carvalho e o texto a seguir de Lélia Almeida é escrito a pensar nela:

Marcelo Mirisola publicou hoje, dia 8 de março, no Facebook, a matéria de Talyta Carvalho, uma filósofa de 25 anos onde ela diz que não deve nada ao feminismo e às feministas. A frase não é original, quem a disse assim, tal e qual foi Margaret Thatcher quando chegou ao poder. Não sei se a moça sabe o que a Dama de Ferro significou na história da Inglaterra e no aniquilamento das políticas de direitos humanos, trabalhistas e outros daquele país. O GNT está passando esta semana um documentário canadense que se chama "Quem Quer Ser Feminista?" falando sobre os diferentes momentos da história da luta das mulheres e entrevistando algumas feministas famosas. Naomy Wolf diz que o grande problema do feminismo hoje é para quem passar o bastão da luta já que as mulheres jovens não se interessam pelo ideário feminista numa falsa ilusão de que tudo já foi conquistado. Germaine Greer diz que a tendência de uma nova onda feminista sempre tende a negar a anterior e que, portanto, é compreensível que as jovens mulheres neguem o feminismo. O que é legítimo, elas que inventem o feminismo que bem entenderem ou que nunca mais falem neste assunto.
Marcelo Mirisola diz que a moça é corajosa, pergunta ás leitoras do face o que achamos de fazer uma entrevista com a jovem e publicá-la no Congresso em Foco, veículo onde ele é colunista e propõe que enviemos perguntas para a entrevista. Sugiro que ele entreviste a moça, e que possibilite que ela vire uma celebridade e, quem sabe, a candidata a calendário de oficina mecânica, como sói acontecer.
Mas vou fazer o meu dever de casa. Seguem as minhas sugestões de perguntas: Você já fez um aborto? Você já se sentiu constrangida, desconfortável, impotente junto a um parceiro que se negou terminantemente a usar camisinha com você? Você sabia que houve um momento na história do mundo em que as mulheres tiveram de se rebelar contra normas e padrões muito rígidos para poder estudar, dirigir um carro, não querer casar e ter filhos e fazer qualquer coisa que achassem mais interessantes? Você se sente inteiramente feliz e confortável com o seu corpo, sua sexualidade e isenta do bombardeio midiático que preconiza a beleza feminina jovem e bela e que trata as mulheres como retardadas e infantis? Você sabia que milhares de mulheres no mundo inteiro morrem na mesa de abortos mal feitos, de mutilação genital e nas mãos de homens que dizem matar por amor ou para defender a própria honra? Você acha que as mulheres devem votar e defender suas demandas, interesses, e os das suas filhas? O que você acha dos índices relativos á saúde mental que provam que as mulheres são supermedicadas por depressão e outras moléstias modernas por viverem situações de sobrecarga cada dia mais insuportáveis para grande parte delas? Você acha que os maridos devem sustentar suas mulheres? Você acha que as mulheres devem ficar em casa cuidando dos filhos? Você acha que em briga de marido e mulher não se mete a colher e que as mulheres que são estupradas, no fundo, provocaram esta situação?

domingo, 11 de março de 2012

A alma do zigoto

No século IV, no Concílio de Niceia, discutiu-se com “seriedade” e “pureza de intenções” a questão de saber se as mulheres tinham alma. No século XXI, em círculos religiosos, e ultimamente também em círculos políticos dos Estados Unidos, discute-se com igual “seriedade” e igual “pureza de intenções” a questão de saber se o zigoto tem alma. Quem discutia e discute são obviamente homens e ninguém levanta a questão do conflito de interesses, até porque nos nossos dias algumas mulheres fazem a fineza de concordar com eles dando força e respeitabilidade às suas decisões.

As almas - presume-se - são iguais perante O Todo-Poderoso que, por acaso, e é só por acaso, também é pensado à imagem do homem; têm todas igual valor e não se pode sacrificar uma em benefício de outra, se tal acontecesse o Todo-Poderoso ficaria muito ressentido. Claro que nisto da igualdade das almas continuo com a estranha sensação de que me estão a engrupir e que afinal deve haver algumas almas mais iguais do que outras, mas essas devem ser de homens e quem sou eu para me meter no assunto?!

Para além deste paralelismo de temas, há outras analogias entre o passado e o presente, e essas vão no sentido de indicar que a ”pureza de intenções” tem exatamente o mesmo conteúdo e a mesma substância que é o de colocar as mulheres no lugar que Deus e a Natureza lhes reservaram, num lugar em que a sua liberdade e poder para tomarem em mãos a própria vida é severamente limitado.

Esta questão da alma, o que quer que ela seja, e tenho a convicção de que é apenas um termo forte dotado de uma aura de absoluto para referir uma realidade fraca e relativa - a inteligência - é de extrema importância. Eu não sei como acabou a história do Concílio de Niceia mas suspeito que o resultado deve ter sido inconclusivo a avaliar pelo modo como as mulheres continuaram a ser tratadas. Também não deve ser fácil concluir acerca da alma do zigoto; mas é bom reparar que com o levantamento destas questões conseguiu-se o que à partida se queria: instalar a dúvida em muito boa gente que deverá agir em conformidade, estou a falar de legisladores, conselheiros de bioética e homens e mulheres em geral.

Se as mulheres não têm alma então verdadeiramente não são pessoas; se o zigoto tem alma então verdadeiramente o zigoto é uma pessoa. Como estamos na dúvida, vamos agir com cautela e não permitir que uma eventual alma sacrifique outra eventual alma porque afinal as almas são iguais e têm todas o mesmo valor; claro que o zigoto, não pode fazer nada à eventual alma da mulher, mas os seus procuradores podem.

Não se julgue que falar especificamente em alma, em vez de falar em inteligência, não é relevante; tem várias e assinaláveis vantagens para as tais pessoas de intenções piedosas. A alma é um termo de conotação religiosa, refere uma entidade distinta do corpo., uma entidade que lhe sobrevive. Além disso, os direitos das almas serão iguais - não se pode falar em mais e menos alma.

Falar em alma coloca a questão num campo muito favorável a quem pretende atingir o objetivo, à partida pouco digno, de limitar a liberdade de ação das mulheres; tem de se encontrar uma boa razão para tal malfeitoria e a alma serve às maravilhas essa função; se falássemos em inteligência, desejos aspirações, projetos, sentimentos, logo veríamos que não há qualquer semelhança entre os direitos da mulher e os direitos do zigoto; por isso é que é tão importante manter a terminologia e a respetiva semântica. E enquanto não se abandonar este território minado qualquer tipo de argumentação que tente defender que afinal há circunstâncias em que é preciso sacrificar o zigoto para conferir dignidade á mulher está votada ao fracasso. Os amigos do zigoto e inimigos das mulheres vão sempre conseguir rebater tal argumentação, a derrota da mulher e a vitória do zigoto estarão asseguradas.

sábado, 3 de março de 2012

Dificultar a contracepção também dá jeito!!!

O Senado norte-americano conseguiu rejeitar recentemente, por uma margem mínima de 51/48 votos, a aprovação de legislação cujo objetivo era dificultar extremamente a aquisição de fármacos anticoncepcionais.
É altura de percebermos claramente que a direita norte-americana não se satisfaz com a restrição do recurso ao aborto, fazendo passar legislação que obriga qualquer mulher que solicita um aborto legalmente enquadrado a submeter-se a um exame de ultra-som - numa perfeita manobra dissuasora. A direita vai mais longe e pretende mesmo pôr em causa um direito de saúde reprodutiva que as mulheres já davam por adquirido: o direito a controlarem a sua capacidade reprodutiva.
A direita há muito percebeu que o melhor meio de manter um sistema iníquo, em que as mulheres se encontram numa posição de dependência e de inferioridade em relação aos homens, é limitar a sua liberdade e as sua possibilidade de escolha no campo reprodutivo, não permitindo que se autodeterminem e tomem em mãos as suas próprias vidas; daí todo este encarniçamento contra o aborto e agora também, imagine-se, contra o controlo dos nascimentos. A vida humana é apenas mais uma capa e um simulacro hipócrita para alcançarem propósitos que deixou de ser politicamente correto revelar.
O que se está a passar nos Estados Unidos deveria alertar-nos para o que pode vir a acontecer na Europa e em outras partes do mundo; a luta é sempre a mesma, uma luta em que a reação não desiste em controlar a vida do indivíduo comum, procurando regressar nostalgicamente a um passado que julgávamos já enterrado.
O que se está a passar também deveria levar as mulheres a questionarem o que verdadeiramente se pretende quando se apela para valores morais, como o direito à vida, para lhes limitar a própria vida; infelizmente muitas mulheres, neste como em outros domínios, sofreram uma autêntica lavagem cerebral, são facilmente manipuladas e não percebem que enquanto não controlarem a sua sexualidade não serão verdadeiramente livres.
Quando se fala em direita tende a pensar-se em partidos políticos, mas será melhor começarmos a perceber que a direita política só consegue progredir nos seus intentos porque conta com uma direita social e com uma mentalidade em que, apesar de tudo, valores hipócritas e interesses inconfessáveis disfarçados se encontram acantonados. Curiosamente essa direita social é bem mais ampla do que a direita política e ingénuamente acaba por servir os interesses desta.