segunda-feira, 28 de março de 2011

Capitalismo, relações de produção e relações de reprodução


Eu percebo perfeitamente que o sistema capitalista e o modo como gere a produção de bens são incompatíveis com a eliminação da exploração humana; este sistema baseia-se numa assimetria de fundo entre quem detém os meios de produção e aqueles que apenas possuem a força de trabalho e, conhecendo nós os seres humanos, facilmente percebemos que, se houver possibilidade de explorar, a exploração se vai manter, independentemente da boa ou má vontade das pessoas. Ora, no sistema capitalista, quem detém os meios de produção encontra-se numa posição óptima para impor condições a quem dispõe apenas da sua força de trabalho e, obviamente, não vai abdicar desta prerrogativa até porque o sistema está montado para funcionar a seu favor. No sistema de economia capitalista, as relações de produção estabelecidas entre capitalistas e trabalhadores são intrinsecamente explorativas; enquanto se mantiverem, a exploração não desaparece e os trabalhadores, como, primeiro que tudo, têm de sobreviver, precisam de se lhe sujeitar, a alternativa é não entrar na relação, mas não entrar na relação equivale a morrer de fome.

Até aqui tudo bem, não vejo qualquer incongruência na análise marxista da situação e sou levada a concordar com ela por uma questão de pura lógica. Mas quando o marxismo pretende estabelecer um paralelo entre as relações de produção estabelecidas no mundo do trabalho e as relações de reprodução estabelecidas no meio familiar, surgem-me as maiores dúvidas e tenho dificuldade em dar a minha aquiescência a tal interpretação. Quer dizer, para o marxismo, assim como é inevitável a opressão dos trabalhadores também é inevitável a opressão das mulheres, desde que se continue a manter a estrutura económica capitalista da qual a família seria uma unidade básica. A partir daí defende que para acabar com o sexismo é preciso acabar com o capitalismo e que as mulheres devem aceitar que a resolução dos seus problemas e a defesa dos seus interesses passe prioritariamente por aqui.

Mas a pretensa analogia entre a relação de produção e a relação de reprodução, para mim, é falaciosa e passo a explicar: na família e na relação heterossexual, não há de um lado homens, a deterem os meios de reprodução e do outro mulheres, sem esses meios, o que se verifica é que os meios de reprodução pertencem igualmente a mulheres e a homens, isto é, não há a força de trabalho das mulheres, por um lado, e os meios de reprodução dos homens, por outro, portanto logo à partida estamos perante uma falsa analogia, porque enquanto a relação de produção é intrinsecamente explorativa, a relação de reprodução não o é; pode assumir essa forma, tem assumido essa forma, mas essa forma não decorre da própria estrutura da relação. Por outro lado, o carácter falacioso da analogia entre as relações de produção e as relações de reprodução reforça-se com a constatação de que, enquanto os trabalhadores têm necessariamente de aceitar a relação de produção, porque a alternativa é morrerem de fome, não se passa o mesmo na relação de reprodução, as mulheres podem recusar entrar nela e temos de reconhecer que só o não fazem porque são doutrinadas desde a mais tenra infância para a aceitarem e para não perceberem o seu carácter problemático. Desde que se vislumbrou a possibilidade de as mulheres não a aceitarem, toda a cultura estabelecida se mobilizou para sacralizar a maternidade e dificultar o recurso à contracepção e ao aborto. Por isso, não vejo por que razão a luta das mulheres tem de ser, como pretende o marxismo, indissociável da luta contra o capitalismo; prevejo mesmo a possibilidade dessa luta ser bem sucedida mesmo mantendo-se a estrutura capitalista da sociedade. Porque uma coisa é a opressão dos seres humanos enquanto tais e outra é a opressão das mulheres, não enquanto seres humanos, mas enquanto mulheres, isto é, seres humanos do sexo feminino. Isto não quer dizer que uma vez ultrapassado o sexismo, mulheres não continuem a ser oprimidas, mas aí a opressão que sofrerem não é por serem mulheres, mas por serem, como os homens, seres humanos sujeitos a um sistema económico que gera inevitavelmente exploração.

Por outro lado, uma outra reflexão se oferece. Nas relações de reprodução as mulheres não só detém com os homens os meios de reprodução como têm ainda um papel mais relevante do que eles na reprodução da espécie e se resolverem não entrar na relação - e têm possibilidade de o fazer - criam um problema social grave e aí isso pode funcionar como moeda de troca para que os seus interesses, enquanto pessoas, sejam reconhecidos e acautelados. Aliás, em certa medida, isto já se começa a verificar quando se vê surgir legislação para proteger a maternidade e não permitir que as mulheres sejam prejudicadas nas suas carreiras profissionais pelo facto de resolverem ser mães, mas claro que muito há ainda para fazer.

Dizer que o capitalismo não favorece a eliminação do sexismo é uma coisa, dizer que não o permite é outra e não convém confundir os dois planos sob pena de se perder o foco da questão.

sábado, 26 de março de 2011

Porquê insistir nas diferenças entre homens e mulheres?


Realçar e acentuar as diferenças entre mulheres e homens tem sido uma estratégia que responde a um objectivo específico nem sempre declarado: o de definir papéis, lugares e esferas de influência para cada um dos sexos. Distinguir as mulheres dos homens não só em relação a características físicas mas até em relação a características afectivas e intelectuais serve para mostrar que a igualdade não é porventura aquilo que melhor convém às mulheres.
Precisamos dizer que não têm sido poucas as autoridades das mais diversas áreas que se encarniçaram no estabelecimento destas diferenças; todavia, nesse afã de confirmar diferenças houve uma que sempre ignoraram e que continuam a pretender ignorar e é a de que a diferença entre os sexos é também, porventura acima de tudo, uma diferença de poder.
Aqueles que insistem na tecla da diferença também ignoram que se espera que homens e mulheres sejam diferentes e que para confirmar esta expectativa de senso comum, se dá atenção, isto é, se percebem, todas as instâncias que a corroboram e tende-se a não perceber as semelhanças ou, quando elas são apontadas, a percebê-las como excepções. Além disso como Deborah Camerom observou: “Se um estudo encontra uma diferença significativa em questões relacionadas com homem e mulher, tal é considerado uma descoberta ‘positiva’ e tem boas hipóteses de ser publicado. Um estudo que não encontra diferenças significativas tem menos probabilidade de ser publicado”. Por estes motivos, qualquer análise cuidadosa desta questão, que requeira estatuto científico, não deve esquecer estes condicionalismos que a podem enviesar; não pode nem deve esquecer que conseguir que a realidade se ajuste aos nossos preconceitos e os confirme não é assim tão difícil como parece, basta escolher alguns casos conhecidos, insistir neles e deles passar para a generalização e para a justificação do correspondente estereótipo.
Nos dias de hoje continua a insistir-se nestas diferenças e por isso livros como «Os Homens são de Marte, as Mulheres de Vénus», apresentam os dois sexos como se pertencessem a planetas e a mundos estranhos, com a dupla vantagem de mostrar desde logo uma diferença de fundo entre homens e mulheres muito entranhada na psicologia popular, já que Marte e Vénus, para além de nomes de planetas, são nomes de divindades mitológicas, representando uma a Guerra e a outra o Amor. Ao confirmar esta crença popular, este livro rapidamente se transformou num best seller e, com a pretensão de ajudar homens e mulheres a chegarem ao melhor acordo possível, prescreve como uns e outras se devem comportar.
É muito conveniente que este reforço da psicologia popular não venha só de autores literários de créditos discutíveis, é preciso que a ciência apoie, ajudando a convencer públicos mais exigentes. Assim, não admira que recentemente, a biologia tenha pretendido estabelecer que mulheres e homens têm capacidades linguísticas diferentes, embora procurasse dourar a pílula, sugerindo que neste campo a superioridade estaria do lado das mulheres. Claro que a partir daí se poderia também tirar a ilação de que se deveria regressar à segregação nas escolas com base no sexo, o que porventura já não seria assim tão vantajoso para as mulheres.
Ao intervir nesta questão o que se verifica é que a biologia ou pelo menos alguns dos seus investigadores, procuram naturalizar diferenças entre homens e mulheres, dando de barato que elas, a existirem, se possam dever a condicionalismos sociais e culturais. Naturalizar diferenças é explicá-las fazendo intervir mecanismos biológicos e obviamente é dizer que elas são essenciais e imutáveis; não são contingentes, não se devem à influência do meio ambiente e da educação ou ao processo de aculturação, são inatas. Daí decorre que teremos de as aceitar e de aceitar as consequências que delas derivam.
O problema é, todavia, mais complicado do que alguns querem admitir, assim por exemplo, em relação às mencionadas diferenças de linguagem entre homens e mulheres, que seriam inatas e devidas a mecanismos ligados ao funcionamento cerebral, é preciso saber, em primeiro lugar, se elas existem, se correspondem a um facto estabelecido ou se, como defende Deborah Camerom, estamos perante mais um mito cultural - crença falsa amplamente difundida - muito convenientemente aceite para manter o statu quo; vejamos o conteúdo deste «mito»:

As mulheres falam mais do que os Homens. Tem maiores aptidões verbais. Os homens falam com propósito de conseguir que as coisas sejam feitas, as mulheres falam para comunicar com outras pessoas. Os homens falam de factos, as mulheres de sentimentos. Os homens usam a linguagem com fins competitivos, as mulheres visam mais a cooperação e a harmonia. Estas diferenças dificultam a comunicação entre os dois sexos.

Antes de mais, podemos dizer que se está perante um conjunto de generalizações empíricas, de tal modo vagas que tanto se pode encontrar instâncias que as confirmem como outras que as desmintam. Embora correspondam a convicções caras ao senso comum mais trivial, um escrutínio mais apertado revela as suas debilidades.
Comecemos por analisar a afirmação de que as mulheres falam mais do que os homens. Trata-se de uma asserção extremamente vaga que ignora inúmeros contextos em que o discurso pertence quase que em exclusividade aos homens, vide o caso da política, da economia ou da ciência. Mas, num livro publicado em 2006, The Female Brain, afirmava-se peremptoriamente que as mulheres em media, no decurso de um dia, proferiam 20000 palavras enquanto nos homens a média ficava nas 7000; com tão flagrante diferença estatística não só se corroborava como se reforçava a crença de senso comum de que as mulheres são faladoras pois que se «mostrava» que elas até falavam três vezes mais. Como refere Deborah Cameron esta notícia foi amplamente divulgada em todos os jornais do mundo.
Por sorte, um investigador da área da linguística, Mark Liberman, não acreditou na notícia e ao procurar a fonte para esta informação descobriu que ela remetia, em nota de rodapé, para um livro de auto-ajuda e não se baseava em qualquer investigação científica. Continuando a pesquisa, constatou que outros autores apresentavam dados estatísticos diferentes e com enorme variabilidade, o que logo à partida lançava suspeição, e nenhum citava uma pesquisa sobre o assunto que os confirmasse. «Concluiu que nenhum tinha alguma vez feito um estudo para contar o número de palavras produzido por uma amostra de homens e mulheres no decurso de um único dia. As afirmações eram tão variáveis porque eram fruto de pura adivinhação.»
Depois desta denúncia, a autora de Female Brain reconheceu que a afirmação não era suportada por evidência científica e prometeu retirá-la em edições posteriores, mas entretanto o prejuízo já estava feito: a tagarelice das mulheres fora «cientificamente» confirmada.
Esta história ilustra um procedimento dos media que constitui verdadeiramente um padrão: publicam em altas parangonas títulos/informativos de ‘factos’ relacionados com determinadas investigações. Quando mais tarde se vem a saber que não correspondem à verdade e não são de todo factos, ou não são pura e simplesmente desmentidos, ou então os desmentidos têm um lugar irrelevante e dificilmente são percebidos pelo público. E, por isso, as palavras de Deborah Cameron sobre esta história tem toda a razão de ser:
«O muito publicitado soundbite de que as mulheres falam três vezes mais do que os homens permanecerá na memória das pessoas e será reciclado nas suas conversações, enquanto a retratação, escassamente publicitada, não fará tal impressão. É assim que os mitos adquirem estatuto de factos.»
De qualquer modo fica ainda por explicar a origem/motivação deste mito, mas se lembrarmos, com a feminista Dale Spender, que o ideal proposto desde séculos para a mulher é o silêncio, compreendemos que qualquer fala só pode ser percebida como excesso.

quarta-feira, 23 de março de 2011

A persistência da cultura patriarcal

Publicado aqui vale a pena dar atenção a este texto de Boaventura Sousa Santos: “Celebrou-se esta semana o Dia Internacional da Mulher. Os dias ou anos internacionais não são, em geral, celebrações. São modos de assinalar que há pouco para celebrar e muito para denunciar e transformar. Não há natureza humana assexuada; há homens e mulheres. Falar de natureza humana sem falar na diferença sexual é ocultar que a "metade" das mulheres vale menos do que a dos homens. Sob formas que variam consoante o tempo e o lugar, as mulheres têm sido consideradas como seres cuja humanidade é problemática quando comparada com a dos homens. À dominação sexual que este preconceito gera chamamos patriarcado e ao senso comum que o alimenta e reproduz, cultura patriarcal.
A persistência histórica desta cultura é tão forte que mesmo nas regiões do mundo em que ela foi oficialmente superada pela consagração constitucional da igualdade sexual, as práticas quotidianas continuam a reproduzir o preconceito e a desigualdade. Ser feminista significa reconhecer que tal discriminação existe e é injusta e desejar ativamente que ela seja eliminada.
A cultura patriarcal vem de longe e atravessa tanto a cultura ocidental como as culturas africanas, indígenas e islâmicas. Para Aristóteles, a mulher é um homem mutilado e para São Tomás de Aquino, sendo o homem o elemento ativo da procriação, o nascimento de uma mulher é sinal da debilidade do procriador.
Esta cultura, ancorada por vezes em textos sagrados (Bíblia e Corão), tem estado sempre ao serviço da economia política dominante que, nos tempos modernos, tem sido o capitalismo e o colonialismo. As Novas Cartas Portuguesas, publicadas em 1972 por Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, denunciavam o patriarcado como parte da estrutura fascista que sustentava a guerra colonial. "Angola é nossa" era o correlato de "as mulheres são nossas (de nós, homens)" e no sexo delas se defendia a honra deles. O livro foi imediatamente apreendido porque justamente percebido como um libelo contra a guerra colonial e as autoras só não foram julgadas porque entretanto ocorreu o 25 de Abril, a revolução que tantos hoje desejam nunca tivesse acontecido.

A violência que a opressão sexual implica ocorre sob duas formas, hardcore e softcore. A versão hardcore é o catálogo da vergonha e do horror do mundo. Em Portugal, morreram 43 mulheres em 2010, vítimas de violência doméstica. Na Cidade Juarez (México) foram assassinadas nos últimos anos 427 mulheres, todas jovens e pobres, trabalhadoras nas fábricas do capitalismo selvagem, as maquiladoras, um crime organizado hoje conhecido por femicídio. Em vários países de África continua a praticar-se a mutilação genital. Na Arábia Saudita, até há pouco, as mulheres nem sequer tinham certificado de nascimento. No Irão, a vida de uma mulher vale metade da do homem num acidente de viação; em tribunal, o testemunho de um homem vale tanto quanto o de duas mulheres; a mulher pode ser apedrejada até à morte em caso de adultério, prática, aliás, proibida na maioria dos países de cultura islâmica.
A versão softcore é insidiosa e silenciosa e ocorre no seio das famílias, instituições e comunidades, não porque as mulheres sejam inferiores mas, pelo contrário, porque são consideradas superiores no seu espírito de abnegação e na sua disponibilidade para ajudar em tempos difíceis. Porque é uma disposição natural não há sequer que lhes perguntar se aceitam os encargos ou sob que condições. Os cortes nas despesas sociais do Estado atualmente em curso vitimizam em particular as mulheres. As mulheres são as principais provedoras do cuidado a dependentes (crianças, velhos, doentes, pessoas com deficiência). Se os doentes mentais são devolvidos às famílias, o cuidado fica a cargo das mulheres. A impossibilidade de conciliar o trabalho remunerado com o trabalho doméstico faz com que Portugal tenha um dos valores mais baixos de fecundidade do mundo. Cuidar dos vivos torna-se incompatível com desejar mais vivos.”


Boaventura Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).

segunda-feira, 21 de março de 2011

A luz ao fim do túnel é só um trem desgovernado, mas...

Não resisto a postar aqui este video a que assisti no blog Pensamentos Desconexos, pela alegria e vitalidade da mensagem que transmite.

domingo, 20 de março de 2011

A ditadura da beleza

O tema do modo como as mulheres se apresentam ou devem apresentar, isto é, a questão da aparência, é espinhoso porque se presta a confusões e a conotações que eu gostaria de evitar. Posto o assunto cruamente: será que as mulheres devem procurar pelo vestuário e comportamento que assumem em público passar uma imagem de discrição e recato ou, se fugirem completamente a este padrão, nada haverá a criticar e a objectar?
De uma perspectiva feminista, defendo que não é indiferente o modo como as mulheres se apresentam aos olhares da sociedade e nesta aos olhares dos homens. A minha postura sobre este assunto não significa que eu comungue os valores da direita religiosa, nem reflecte falsos pudores ou puritanismo. O que acontece é que percebo o que está em jogo e gostaria de evitar que outras mulheres, sob o simulacro de uma falsa liberdade de escolha sejam joguetes da sociedade sexista que entretanto se modernizou e cooptou o vocabulário do feminismo para se manter.
Parto do princípio de que aquilo que uma pessoa veste, como veste e «está» em público, envia sinais para os outros e diz alguma coisa sobre a própria pessoa e por isso não é de menor importância abordar este tema com total franqueza embora nesse percurso, me possa afastar do politicamente correcto. Hoje não é politicamente correcto criticar uma mulher porque veste, por exemplo, saias demasiado curtas, calças muito justas, sapatos de saltos muito altos, mostra a barriga ou os seios exuberantemente; nem tão pouco parece correcto criticar aquelas que decidem submeter-se a intervenções cirúrgicas para dar maior relevo a determinadas características corporais, entendidas como femininas. Admite-se implicitamente que nada temos a ver com isso e cada um/a faz aquilo de que gosta. Mas esquecemos que nestas situações as mulheres estão a enviar sinais que facilitam serem percebidas como objectos sexuais ou como objectos decorativos e assim reforçam um estereótipo secular, no qual desde sempre se tentou encerrá-las, que é extremamente nocivo para a sua realização enquanto pessoas. Se uma mulher não se importa de passar a mensagem de que é uma bunda ou um par de mamas, temos de convir que aceita ou parece aceitar reduzir-se a essa condição, que aceita ser encerrada num corpo e ser valorizada enquanto corpo. De facto não vemos os homens a explorarem os seus próprios corpos dessa maneira e alguns até o poderiam fazer, porque têm belos corpos, mas não o fazem porque não são culturalmente estimulados nesse sentido e porque o seu valor reside no que são e não no que aparentam.
Convém perceber que a moda actualmente exerce a função que antes cabia a outros institutos no sentido de manter as mulheres presas a estereótipos de beleza que só as podem prejudicar; estereótipos que as levam a investir na aparência física acima de qualquer outro aspecto como se o seu destino continuasse a ser pensado única e exclusivamente em termos de acasalamento e da capacidade que possam ter de atrair os machos.
Eu percebo como deve ser difícil para uma mulher, sobretudo se for jovem e atraente, resistir aos apelos constantes da moda e da publicidade, mas lembro-lhe que, para além de outros aspectos, a beleza física é efémera e se tudo lhe sacrificar vai acabar por concluir que fez um péssimo negócio, pois não investiu em si mesma, investiu apenas num simulacro de poder.
Lembro que a ditadura da beleza serve um objectivo e esse é o de escravizar as mulheres e de as obrigar a perseguirem um ideal não só superficial como inatingível; por outro lado, ao estipular que o valor de uma mulher reside na sua beleza e na sua juventude, carreia consequências terríveis porque significa que, enquanto os homens podem envelhecer tranquilamente, para as mulheres o envelhecimento é o pânico já que o seu valor foi construído à volta da sua aparência e não da sua personalidade, conhecimento e cultura; numa palavra, valorizaram-se como objectos e não como pessoas. O facto, por exemplo, de as actrizes de Hollywood terem dificuldade em encontrar trabalho depois dos trinta, enquanto os seus colegas continuam a ser requisitados para os mais diversos desempenhos, nas diferentes fases das suas vidas, mostra bem como esta ditadura da beleza e da juventude atinge as mulheres e trucida as suas vidas.
Claro que é muito difícil inverter este panorama, chega mesmo a ser desesperante, porque toda a nossa cultura, televisão, filmes e publicidade, consumida acriticamente, o favorece. As mulheres que triunfam, na grande maioria dos casos, têm o seu sucesso ligado à beleza, à juventude e exploração do corpo e são esses os modelos apresentados às jovens; em contrapartida, as desportistas, jovens cientistas, artistas, escritoras, ou outras profissionais competentes têm uma exposição mediática reduzida. Também é preciso dizer que ser cientista, ou tão-somente uma profissional competente, exige estudo, esforço, perseverança, isto é, exige o cultivo de qualidades que não nos são dadas de bandeja e parece sempre mais apelativo tirar partido de atributos naturais, mas também aqui se está a esquecer o prazer que podemos encontrar no estudo e como é gratificante crescer intelectualmente.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Imanência, transcendência e condição feminina


Quando se procura reduzir a mulher à natureza, e isso está manifesto na tentativa de a limitar aos seus papéis naturais, cumpridos através do acasalamento e da maternidade, está a encerrar-se a mulher numa situação de imanência, não se permitindo que transcenda o dado natural e se realize como ser humano. Ora o ser humano realiza-se enquanto humano, precisamente através da transcendência, isto é, da capacidade de ultrapassar o dado natural criando uma cultura humana.
Por esta razão, o feminismo e uma filosofia feminista têm de defender para a mulher a abertura de opções que lhe permitam o acesso à esfera onde se produz cultura, recusando encerrá-la na esfera da produção/reprodução da espécie que o mundo puramente animal executa exemplarmente. Claro que, para além desta razão de fundo, outra há igualmente importante, é que sem o acesso à esfera da produção socialmente útil e sem o rendimento económico que este propicia a mulher ficará na dependência do homem e não terá qualquer garantia de que os seus desejos, as suas vontades, os seus interesses sejam reconhecidos.
As anti-feministas procedem exactamente ao contrário, ao sacralizarem a maternidade e ao exaltarem o valor desse papel; em desespero de causa chegam a propor que as mulheres possam escolher entre uma carreira profissional e a função exclusiva de «dona de casa»; mas essa não é verdadeiramente uma escolha autêntica se considerarmos que o sujeito que escolhe a imanência e a dependência denuncia «falsa consciência», isto é não percebe que está a «escolher» sob pressão, social, cultural, aquilo que nunca deveria escolher se reflectisse e percebesse o que está em jogo.
Mesmo se vislumbrássemos a remota hipótese de se remunerar substancialmente, através de mecanismos estatais, as mulheres que «optassem» pela maternidade e pela família, essa seria uma pseudo-solução porque apenas se estaria a encontrar um subterfúgio para as encerrar na imanência da sua condição enquanto fêmeas ao serviço da perpetuação da espécie.

segunda-feira, 7 de março de 2011

Como Hollywood replica e reforça a sociedade de supremacia masculina

Numa sociedade patriarcal, os interesses e necessidades dos homens encontram-se no centro da cena, por isso não surpreende que os filmes produzidos por Hollywood, na sua avassaladora maioria, sejam histórias sobre homens, como a lista abaixo apresentada comprova; mas o pior é que estes filmes não só reflectem como reforçam este tipo de sociedade e tornam muito difícil a ultrapassagem do statu quo; e é por isso que, por exemplo, a história do movimento das mulheres no sentido da emancipação está toda por explorar, o que não acontece por acaso, acontece porque quem tem competência e recursos para fazer filmes não está nem um bocadinho interessada em contá-la.

Anita Sarkeesian no blog sociological images fornece a lista dos filmes premiados nos últimos 50 anos e outras informações importantes para percebermos porque é que a replicação da sociedade patriarcal é «quase» uma inevitabilidade.

Lista de filmes que ganharam o prémio da Academia nos últimos cinquenta anos
The Hurt Locker - embora dirigido por uma mulher é acerca de homens.
Slumdog Millionaire – homens
No Country for Old Men – o titulo diz tudo
The Departed – homens
Crash – conjunto
Million Dollar Baby – foge a regra, é uma história equilibrada acerca de um homem e de uma mulher
Lord of the Rings – homens
Chicago – centrado numa mulher
A Beautiful Mind – homens
Gladiator – homens
American Beauty – um homem
Shakespeare in Love – homem
Titanic – contado a partir de uma perspectiva masculina
The English Patient – homem
Braveheart – homem
Forrest Gump – homem
Schindler’s List – homem
The Unforgiven – homens e cavalos
The Silence of the Lambs – homem
Dances with Wolves – homem
Driving Miss Daisy – é acerca de um homem e de uma mulher Rain Man – homem
The Last Emperor – homem
Platoon – homem
Out of Africa – centrado numa mulher
Amadeus – homem
Terms of Endearment – centrado numa mulher
Gandhi – homem
Chariots of Fire – homens
Ordinary People – acerca de uma família
Kramer vs Kramer – acerca de um casal
The Deer Hunter – homens
Annie Hall – é acerca de um homem e sua vida amorosa
Rocky – homem
One Flew Over the Cuckoo’s Nest – homem
The Godfather, Part II – homens
The Sting – homens
The Godfather, Part I – homens
The French Connection – homens
Patton – homens
Midnight Cowboy – homem
Oliver! – rapaaz
In the Heat of the Night – homens
A Man for All Seasons – homem
The Sound of Music – centrado numa mulher
My Fair Lady – equilibrio entre homem e mulher
Tom Jones – homem
Lawrence of Arabia – homem
West Side Story – homem e mulher
The Apartment - história contada de um ponto de vista masculine.

Apenas 4 dos filmes premiados em 50 anos são centrados exclusivamente em vidas de mulheres.
Numa história de 83 anos, apenas 4 mulheres receberam nomeações para o prémio de melhor realizador. A última Kathryn Bigelow ganhou o prémio, mas o filme The Hurt Locker, 2009 é nitidamente centrado numa perspectiva masculina.
Actualmente em Hollywood há apenas 7% de mulheres realizadoras e praticamente todo o circuito de produção de filmes se encontra nas mãos de homens.