domingo, 30 de agosto de 2009

Sexo e amor em Sartre - uma paixão inútil

Para se compreender melhor a teoria do filósofo existencialista Jean-Paul Sartre (1905-1980) sobre sexo e amor, convém recordarmos alguns aspectos mais gerais do seu pensamento.
Sartre entende o ser humano como um ser contingente, que existe no mundo, mas que poderia não existir, que tem portanto a noção de que não é um ser necessário. Por outro lado, esse ser contingente sabe que está entregue a si mesmo, e que não tem, nem dentro nem fora de si, nenhum quadro de valores pré-estabelecido que lhe diga como agir e como moldar a sua conduta. É um ser totalmente livre que, se não usar aquilo que Sartre designa de má fé – uma espécie de processo de auto-mistificação, terá de assumir essa liberdade. Tal situação explica o sentimento de abandono, de vazio e de estranheza que o ser humano experimenta e também o terrível desafio que encontra pela frente. Só o amor, enquanto ponte entre o eu e o outro, parece permitir eliminar esse sentimento de contingência intrínseco à existência humana.

Para Sartre, o propósito daquele que ama é ser amado, porque só aquele/a que o ama resgata a contingência do seu ser no mundo, onde não encontra razão para a existência, dando-lhe um sentido, tornando-o único, necessário, absoluto. Mas como se apresenta o desejo sexual, o que se encontra na relação amorosa?

Como Sartre não separa o corpo da mente, a pessoa é para ele uma totalidade - não há de um lado um corpo e de outro uma inteligência ou um espírito. Do mesmo modo, ele também não dissocia nunca o sexo do amor. Por isso, Sartre diz que, quando há atracção sexual, quando se deseja sexualmente, não se deseja um corpo, deseja-se uma pessoa, e uma pessoa é uma subjectividade livre com a qual a minha subjectividade se confronta. O amor do outro assegura a minha identidade, protege-me da indiferença do olhar dos outros, dos que não me amam, justifica a minha existência. Desse modo, a relação amorosa ideal implica reciprocidade e nela dois sujeitos livres e iguais reforçam mutuamente as suas identidades e procuram possuir-se enquanto objectos. Mas este desejo, o desejo amoroso, é uma paixão inútil:

“O homem que quer ser amado não deseja realmente a escravização da amada … A total escravização da amada mata o amor do amante. Se a amada se transforma num autómato, o amante reencontra-se a si mesmo sozinho. Por isso, o amante não deseja possuir a amada como se possui um carro. Ele exige um tipo especial de apropriação. Ele quer possuir uma liberdade, enquanto liberdade, ele quer ser amado por uma liberdade, mas exige que esta liberdade deixe de ser livre.” (1)

Desta caracterização decorre que o desejo sexual tem um objecto impossível porque o que ele quer possuir, aquilo que o satisfaz, assim que for possuído deixa de existir enquanto tal: uma vontade livre, uma vez possuída, deixa de ser vontade e deixa de ser livre e aquele que ama não pode querer que tal aconteça. Assim, nem mesmo o amor permite eliminar a contingência de se ser no mundo.
(1) Jen-Paul Sartre: L´Etre et le Néant

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

(7) Sexo e amor em Schopenhauer: amor ao serviço do sexo e sexo ao serviço da natureza

Para além da misoginia do filósofo alemão Arthur Scopenhauer (1788-1860), que tod@s conhecem e que ele resumiu magistralmente na fórmula: a mulher é um animal de cabelos compridos e de ideias curtas, há um outro aspecto das suas ideias sobre sexo, bem menos conhecido, e que faz dele um precursor da tão badalada sociobiologia do comportamento humano, com a sua ênfase no determinismo genético. Schopenhauer, em pleno século XIX debita o princípio fundamental desta ciência: a natureza tem propósitos e os seres humanos são meras marionetas para ela os alcançar.

Para acomodar e enquadrar esta extraordinária atribuição de propósito à natureza, Schopenhauer recorreu como era (é?) costume dos filósofos, à especulação metafísica, e descobriu uma realidade última, uma realidade autêntica, não apreensível nem pelos sentidos nem pelo intelecto, apenas captável por uma intuição íntima de identificação com essa realidade, a que chamou «Vontade de Viver», uma espécie de força cega e irracional que levaria os humanos a desenvolverem actividade sexual para se perpetuarem:

“Arthur Schopenhauer disse que a natureza manipula as pessoas no interesse da procriação – propósito da natureza. As pessoas julgam que estão a ter relações sexuais pelo prazer, mas o que realmente está a acontecer é que a natureza está a usá-las para produzirem novos membros da espécie.” (1)

Não só o sexo, mas também o amor sofre o mesmo tipo de reducionismo:

“ O propósito último do amor não é experienciar o êxtase de possuir o amado e entrar numa espécie de estado romântico de bem-aventurança. Os amantes, a nível da consciência, podem pensar que estão a ser altruístas, devotando-se reciprocamente, mas o que está realmente a dirigi-los para os braços um do outro é a Vontade de Viver cujo intento é preservar a espécie através da procriação.” (2)

E não se pense que Schopenhauer tem uma visão optimista do sexo e do amor, bem pelo contrário, o desejo sexual é visto como uma tirania a que os seres humanos têm de se submeter para se libertarem de uma insuportável tensão. O amor é uma espécie de disfarce que usam para justificar a actividade sexual. Por isso não é de estranhar que o nosso filósofo tenha manifestado grande admiração pelos santos e pelos ascetas, os únicos que do seu ponto de vista se conseguem libertar do jugo da natureza.

Estas interessantes ideias de Schopenhauer suscitam-me algumas observações: em primeiro lugar, atribuir propósitos à natureza, por mais apelativo e metafórico que seja, é fazer aquilo que se conhece por animismo e antropomorfismo - que a própria crítica filosófica denuncia; por outro, podemos perguntar que legitimidade há - também do ponto de vista filosófico, em falar de uma realidade que não é captável nem pelos sentidos nem pelo intelecto e a que se chega por aquilo que parece ser uma experiência mística que, por mais respeitável que possa ser, tem o valor que tem? Estes dois pontos são suficientes, em minha opinião, para se concluir que, mesmo do ponto de vista filosófico, as ideias deste pensador, não resistem ao escrutínio crítico.

Pode ainda perguntar-se: se o propósito da natureza e a vontade de viver determinam tudo e, nesse caso, as pessoas não diferem dos restantes seres animais, porque é que os humanos se deram ao trabalho de construir o amor romântico, porque é que no seu caso foi necessário um recurso que a natureza dispensou nos outros?

Da explicação de Schopenhauer o que se retém é que o sexo é mais uma vez encarado na sua vertente exclusivamente biológica e fisiológica; o próprio amor é diminuído e reduzido a um estratagema ao serviço da preservação da espécie e no meio disto tudo os indivíduos - não conseguindo resistir aos «apelos» da natureza, são meros fantoches que, inconscientemente, cumprem um plano previamente estabelecido.

(1) Don Marietta: The Philosophy of Sex.
(2) Russell Vannoy: Sex Without Love.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

(6) Sexo e amor em Johann Fichte: esposas ou putas em regime de exclusividade?

Johann Gottlieb Fichte (1762-1814), filósofo alemão, protegido de Kant, foi um pensador democrata que não se livrou da terrível suspeita de ateísmo pois, entre outras coisas, teve a coragem de proclamar que Deus não estava a serviço dos príncipes. Mas, apesar de politicamente progressista, no que às mulheres diz respeito, e sobretudo no que respeita à sua sexualidade, as proclamações que proferiu são conservadoras e mesmo reaccionárias.

Fichte, embora teoricamente considerasse que homens e mulheres eram seres naturalmente livres, iguais e dotados de razão, não conseguiu extrair as consequências lógicas decorrentes da admissão deste princípio e à maneira dos pensadores liberais anglo-saxónicos da primeira vaga pretendeu que a mulher prescinde dos seus direitos no casamento e deixa-se representar pelo marido que saberá defender sempre os seus interesses.

Em relação à sexualidade as suas ideias estão eivadas dos preconceitos correntes na época que não conseguiu escrutinar criticamente e a que mais uma vez deu voz, como aconteceu com muitos outros filósofos:

“Fichte aceitou acriticamente a teoria suportada pela autoridade de Aristóteles e Tomás de Aquino segundo a qual o macho é activo na procriação e a fêmea inactiva. Pensou que isto colocava a mulher numa situação contraditória na qual ela, enquanto agente racional livre, escolhe um papel sexual passivo, o papel passivo da fêmea na procriação. O que a mulher faz, proclamava Fichte, é escolher satisfazer o macho para a salvaguarda do amor. O homem, diz, não deve tentar satisfazer a mulher. Fichte defendia que as mulheres amam naturalmente, enquanto os homens têm de aprender a amar. È interessante ver quão persistentes são algumas destas ideias. Muitas pessoas ainda pensam que as mulheres não podem, ou não devem, ter prazer com o sexo e que o homem não tem a responsabilidade de se preocupar com o prazer da mulher na relação sexual. " (1)

A teoria segunda a qual na procriação o macho é activo e a fêmea passiva apresentava-se, mesmo em fins do século XVIII, como uma teoria científica que hoje definitivamente sabemos estar errada e ser tudo menos científica. Este exemplo deveria levar os cientistas a serem mais modestos e cautelosos e a medirem bem as consequências de afirmações que, apresentando-se como científicas, podem ter um efeito deletério para o progresso da humanidade. Vem esta observação a propósito da sociobiologia do comportamento humano também conhecida por psicologia evolucionista que anda por aí a apresentar pretensas evidências das características inatas de fêmeas e machos humanos que explicariam, e consequentemente justificariam, o sistema patriarcal em que ainda vivemos.

A teoria da reprodução humana que Fichte aceitou, como atrás se aponta, explicaria a passividade da mulher no acto sexual e consequentemente a inexistência de prazer na fêmea humana e também ilibava o homem de qualquer preocupação com o prazer da sua parceira sexual, reduzindo a mulher à função de satisfazer as necessidades do macho.

Facilmente se vislumbra como estas teorizações podem ter prejudicado a construção da sexualidade feminina e o investimento das mulheres na actividade sexual. Muitas deveriam sentir-se profundamente inibidas em relação ao sexo, ou mesmo culpabilizadas, pois sentir prazer, no seu caso, corresponderia a uma anormalidade. O único caminho que a sexualidade lhes abria era a de agradarem ao macho e colocarem-se ao seu serviço, não só no plano doméstico como no sexual - putas voluntárias e em regime de exclusividade, parece demasiado cruel, mas não está muito longe da realidade!
(1) Don Marietta: Philosophy of Sexuality

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Sexo e amor em Immanuel Kant: reciprocidade - a regra de ouro

Kant (1724- 1804), que nunca casou e cuja vida amorosa parece ter sido praticamente inexistente, deixou algumas considerações sobre a vida sexual que hoje no mínimo nos parecem estranhas, como, por exemplo, quando refere o grave crime moral que seria a masturbação ou a prática de sexo fora de uma união conjugal. Mas, apesar disso, contribuiu para uma concepção muito positiva da sexualidade:

“Nas Leituras sobre Ética, Immanuel Kant afastou-se da ideia tradicional de que o sexo serve apenas para a procriação. Kant acreditava que fora do casamento o sexo degradava a natureza humana e uma pessoa era usada como um «objecto de apetite»: uma pessoa não é desejada como uma pessoa, mas é usada como uma coisa. Em contrapartida, no casamento monogâmico, as duas pessoas «garantem uma à outra direitos iguais recíprocos, numa união de seres humanos que envolve a pessoa no seu todo». O casamento é o único uso moralmente correcto do sexo. Num casamento monogâmico uma pessoa não está a ser usada como um objecto sexual. “

Kant, apesar do puritanismo que as suas considerações pressupõem, teve o mérito de: (1) não reduzir o sexo à função procriativa; (2) reconhecer, implicitamente, que é a procura de prazer que move aqueles que se envolvem no acto sexual; (3) entender a reciprocidade como exigência ética da vida sexual; (4), insistir em que a pessoa não seja tratada como um objecto sexual. - a reciprocidade é a regra de ouro de uma sexualidade gratificante e saudável.

sábado, 22 de agosto de 2009

(4) Sexo e amor em David Hume

David Hume, filósofo escocês do século XVIII (1711-1776), aborda o tema do sexo e do amor com alguma ligeireza, mas também com a bonomia de quem encara com naturalidade os factos da vida.

Em nenhum momento, Hume reduz o sexo à função biológica reprodutiva, aliás nem sequer a refere explicitamente; liga sim o sexo ao desejo e ao prazer com a correspondente gratificação que provoca nas pessoas e nesse aspecto reconhece abertamente que as mulheres, tanto ou mais do que os homens, experimentam a força do desejo sexual. A tão apregoada modéstia e castidade que outros, a maior parte, defendiam ser inata nas mulheres é por ele desmascarada e atribuída à pressão social e aos mecanismos que levam à interiorização das normas de conduta; foi assim que no Tratado da Natureza Humana considerou a modéstia e a castidade virtudes artificiais que a sociedade incute nas mulheres para assegurar aos homens confiança de que a progenitura é realmente sua. Por outro lado, as virtudes monásticas, como o celibato, a abstinência e a mortificação da carne, tão prezadas nos meios mais religiosos, são por ele abertamente rejeitadas e consideradas imprestáveis por não terem qualquer sentido nem contribuirem em nada para a felicidade dos seres humanos.

O amor deve decorrer da união de dois seres que se completam e que se encontram numa relação de igualdade. Claro que Hume sabe que isso nem sempre ocorre nas situações práticas da vida, mas não deixa de considerar que essa seria a situação ideal, tal como nos faz ver no ensaio sobre O Amor e o Casamento no qual admite ainda que a submissão não é virtude feminina - é uma imposição, e que tanto homens como mulheres têm vontade de poder e de domínio.

Hume é uma lufada de ar fresco num monumental edifício cheirando a bolor e a bafio: restitui ao sexo a sua dimensão prazerosa; reconhece a força da sexualidade feminina. Vê no amor a união física e espiritual de dois seres que numa relação simétrica se completam. Mas Hume foi uma voz clamando no deserto, praticamente ignorada pelo Canon filosófico.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

(3) Sexo e amor em Marcilio Ficino – não ao homossexualismo, sim ao homoerotismo

Nos fins da Idade Média e início da Moderna, pressente-se certo desregramento nos costumes e na vida sexual, como as histórias contadas por Boccaccio no Decameron, os relatos dos escândalos da vida dissoluta de figuras do alto clero e os sermões inflamados do carismático Savonarola, sugerem. Mas, se consultarmos os escritos de Marcilio Ficino, verificamos que as ideias defendidas não anunciavam ainda mudanças significativas.

Marcilio Ficino (1433-1499), filosofo neoplatónico, criador da Academia de Florença e tutor de Lourenço de Médicis, procurou conciliar o platonismo com o cristianismo. Ficino desenvolveu o conceito de amor platónico, defendendo que todo o amor deve ser espelho do amor de Deus e, portanto, de natureza puramente espiritual, embora se possa ascender da contemplação da beleza física até à própria beleza de Deus. A beleza do corpo humano seria o laço entre o mundo sensível e Deus. Só o amor permitiria atingir a realidade de Deus:

«A definição de beleza de Ficino é a de “uma certa graça que, na maior parte das vezes, resulta da harmonia de várias coisas (De Amore). Esta graça pode ser do tipo de almas que se conhecem através do intelecto, de corpos através da visão, de sons através da audição. “Deste modo, o amor é limitado a estes três tipos, qualquer apetite que siga outro sentido, não é chamado amor, mas luxúria ou loucura (De Amore).” Portanto, Ficino declara que o desejo do coito, porque envolve o sentido do tacto, não é chamado amor, mas é o seu oposto. Esta era a razão dos seus frequentes ataques contra o desejo lascivo que impele as almas para a copulação …
Através das suas mútuas percepções de beleza, tanto física como intelectual, o homem (adulto) e o jovem cultivam o amor por uma beleza superior.» (1)

Na prática, esta concepção de amor permitiu a Marcílio Ficino manter relação estreita com Giovanni Cavalcanti, jovem e nobre, a quem dirigiu inflamadas cartas de amor, pois embora condenasse as relações sexuais entre homens, considerou que o amor entre homens era um sentimento positivo – repudiou o homossexualismo, mas exaltou o homoerotismo – o prazer que decorre da contemplação dos corpos belos e da conversação entre almas sublimes.

Podemos pois dizer que na Renascença prevalece a separação entre sexo e amor, considerando-se o sexo degradante, culpabilizando-se os prazeres da carne, que continuam a ser considerados pecaminosos, e enaltecendo-se o amor enquanto realidade puramente espiritual. Mas, para além destes aspectos, percebe-se já a valorização do corpo (masculino) que pela sua beleza é um reflexo da beleza divina e procura-se uma certa ligação entre sexualidade e espiritualidade.
(1) A. Ferreiro e J. Burton Russell: The Devil, Heresy and Witchcraft in Middle Ages.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

(2) Amor e sexo em Agostinho e Tomás de Aquino – a sexualidade sob perspectiva masculina

Para conhecer a visão que a Idade Média nos legou da sexualidade, nada melhor do que consultar os dois teólogos/filósofos medievais que gozaram de maior prestígio no mundo cristão: Agostinho e Tomás de Aquino.

“Agostinho, que foi o teólogo mais influente da Idade Média e que ainda hoje é aceite como uma autoridade maior em matéria de doutrina, ensinou que o corpo é corrompido pelo pecado original; expressou grande vergonha pela actividade sexual da sua juventude; defendeu que todo o amor deve ser o amor de Deus e que a luxúria é má. Uma pessoa sensata preferiria que a procriação fosse alcançada sem a luxúria sexual; o sexo servia apenas para a procriação, e mesmo as relações conjugais legítimas são acompanhadas de vergonha, o que, disse ele, é indiciado pela privacidade em que a relação tem lugar. (…)

Tomás de Aquino promulgou oito verdades:
(1) Em primeiro lugar ensinou, como doutrina cristã, que a descarga de sémen define a essência da relação sexual;
(2) A procriação é a única função moral correcta da relação sexual; a emissão de sémen de um modo que evite a concepção é imoral e não natural;
(3) A procriação completa-se naturalmente na geração de um ser humano;
(4) Aqueles que se envolvem no acto sexual devem prover o que for necessário para a criação do novo ser;
(5) A família é o melhor lugar para criar as crianças;
(6) (7) As mulheres são inferiores aos homens e no casamento o homem deve governar a mulher;
(8) O divórcio é impróprio.”

Deste modo, a Idade Média, através dos seus teólogos/filósofos, inspirados em muitos aspectos em Platão e Aristóteles, defende a concepção dualista da alma e do corpo com a correspondente depreciação do corpo; continua a não reconhecer qualquer ligação entre amor e sexo e define o amor em termos puramente espirituais.

A relação sexual é vista exclusivamente sob a perspectiva masculina: a essência do acto sexual é a descarga de sémen. A única finalidade da actividade sexual é a procriação. Qualquer prática anti-conceptiva ou abortiva é considerada pecaminosa. É legitimada a subordinação das mulheres aos homens, em função do seu papel inferior, nomeadamente na procriação, pois o homem seria o princípio activo.

Pode dizer-se que na Idade Média se manteve e aprofundou a visão negativa da sexualidade que, além do mais, passa a ser considerada como algo que envergonha os humanos, sendo o desejo sexual identificado com algo que é mau em si.

O que é também curioso verificar é como, volvidos tantos séculos, estas ideias sobre a sexualidade continuam a ter enorme aceitação. Ainda hoje, a igreja católica e facções evangélicas fundamentalistas diabolizam as práticas anti-concepctivas e o aborto; proíbem o divórcio, sob o pretexto de que o que Deus uniu os homens não podem separar.
Ainda hoje, mesmo nos meios onde a religião perdeu influência, muitas destas ideias continuam a condicionar as mentalidades. Um pormenor linguístico pode permitir ver a força deste fenómeno: em certos meios, quando uma mulher engravida, é frequente ouvir-se dizer: fulano fez-lhe um filho, o que não pode ser mais falso, porque um filho não é o resultado de um espermatozóide, é sim o resultado de um espermatozóide (do macho) e de um óvulo (da fêmea), mas que corresponde bem à noção errónea e sexista que o próprio Tomas de Aquino veiculou ao afirmar que na procriação só o macho é activo.

Dissociar o sexo do amor, culpabilizar o sexo e definir a sexualidade como essencialmente masculina, são os princípios básicos da concepção que a Idade Média nos legou da sexualidade.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Sexo e amor em Platão

Tenciono a partir de hoje começar a abordar o tema da sexualidade que não só é um importante aspecto da vida humana como também comportou através dos tempos uma carga sexista que a desfigurou completamente e que se tem revelado muito perniciosa para a vida das mulheres e consequentemente também para a dos homens.

Vou abordar este tema recorrendo, entre outras, a uma obra de Don E. Marietta, Philosophy of Sexuality, de que irei traduzindo excertos, acompanhados dos comentários que o assunto me vai merecendo.

Os filósofos não dedicaram ao sexo e ao amor grandes reflexões e de uma maneira geral não se afastaram muito das ideias correntes nas respectivas épocas, dando frequentemente voz a preconceitos em vez de os escrutinarem, mas, de qualquer maneira, interessa conhecer o que pensaram e escreveram para melhor percebermos como chegamos onde chegamos. Um dos filósofos que maior influência exerceu na nossa cultura e civilização foi Platão e parece pois justo começar este ciclo temático com ele.

«Platão deu um contributo significativo para a psicologia do amor ao perceber que todo o amor é erótico, que resulta de uma carência e procura satisfazer essa falta; já não é tão obviamente correcto o que ele entendia que o amor buscava: imortalidade e crescimento intelectual. Aquilo que surpreende em Platão é que ele não valorizava o amor em si mesmo; o amor era valorizado como um meio ao serviço de outra coisa.

O sexo era visto como um assunto do corpo, o que limitava a sua importância. Platão relegava o corpo para um nível baixo de significância: era um dos objectos do mundo terreno que estava sujeito a mudança e eventual destruição, o que lhe conferia menor importância do que a das formas inteligíveis que nunca mudam e são as únicas coisas acerca das quais se poderia alcançar verdadeiro conhecimento. Platão não percebeu que o sexo é em grande parte mental, daí que para ele o sexo partilhava do estado inferior do corpo; não era um assunto apropriado para a contemplação filosófica. Platão declarava abertamente que o sexo era apenas para procriar e que os casais sem crianças após dez anos de casamento deviam ser separados. Qualquer prazer obtido através do sexo era prejudicial ao desenvolvimento da mente. Platão considerava que o propósito da vida era cuidar da alma, o que se conseguia através do crescimento intelectual que consistia num movimento contínuo em que o pensamento se desprendia das coisas sensíveis em direcção às coisas inteligíveis e das coisas particulares em direcção às verdades universais. As relações de amor e de amizade deveriam conduzir ao desenvolvimento intelectual, não ao gozo físico." (1)

O dualismo platónico entre o mundo sensível, mutável e perecível, e o mundo inteligível, imutável e eterno, levou Platão a separar o amor do sexo, a valorizar o primeiro e a depreciar o segundo. Com esta concepção dualista do real, Platão não percebeu, nem podia admitir, que o sexo tem uma forte componente mental, depende de ideias, imagens e sentimentos e não é simples mecanismo fisiológico.

Com a depreciação do sexo é também o prazer físico que é considerado negativamente na medida em que distrai a alma da sua tarefa fundamental: desprender-se do corpo e alcançar as verdades eternas e universais. Ao sexo apenas é atribuída a função biológica de garantir a sobrevivência da espécie.
(1) Don Marietta Jr. : Philosophy of Sexuality.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Fundamentalismo feminista! Não pago para esse peditório



Uma organização feminista escocesa recusou uma doação resultante dos lucros da venda de um calendário que apresenta mulheres nuas com o argumento de que desse modo estaria a apoiar o comércio sexual.

Depois de ver as páginas desse calendário, você vai concordar comigo. Vai perceber que representar e expor a nudez feminina não implica necessariamente a objectificação; porque esta não decorre só do «objecto» em si, este precisa apresentar determinados requisitos para que o observador o perceba como objecto. Quero com isto dizer uma coisa que a mim me parece óbvia e que só um fundamentalismo estreito, neste caso feminista, não vê: pelo facto de se representar uma pessoa nua isso não a transforma num objecto sexual.
Aqui as mulheres representadas, não sendo predominantemente jovens, aparecem com ar jovial, senhoras de si mesmas, dando aquela sensação de naturalidade e perfeita indiferença em relação a qualquer olhar, masculino ou não. Não adoptam aquela pose estudada de disponibilidade, receptividade, e mesmo passividade e convite submisso, que encontramos nas imagens que correspondem a situações de objectificação. São mulheres de carne e osso, gordas, magras, com rugas, cabelos brancos - normais, isto é, são pessoas que acontece encontrarem-se nuas.
São mulheres que trabalham e que resolveram divertir-se um pouco - estão a posar nuas, mas não para homem ver. Tudo indicia paródia da própria objectificação, essa sim presente nos calendários que é corrente encontrar nas oficinas de mecânica e afins.
Por tudo o que disse aqui, reeitero que é de evitar que as feministas dêem tiros nos próprios pés e munição a todas/os que as acusam de excessivas e até de ridículas.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Defender os trabalhadores crucificando as mulheres?!

Mais uma vez se prova como sacrificar os interesses das mulheres aos interesses da classe trabalhadora, como propõe o feminismo de inspiração marxista, pode redundar no atropelo dos mais elementares direitos das mulheres, enquanto direitos humanos.
Vem isto a propósito do que se passou recentemente na Nicarágua em que o governo de Daniel Ortega, ex-combatente pela liberdade e pelos direitos dos trabalhadores, para se manter no poder, pactuou com a igreja católica e com as forças de direita, dando ocasião a que se banisse no país o acesso legal a todo e qualquer tipo de aborto, incluindo o aborto terapêutico ou por motivo de violação.

Temos assim, meninas, ainda crianças, vítimas de abusos de vária ordem, a criarem outras crianças, num círculo infernal de sofrimento e pobreza; temos assim mulheres, correndo o risco de perderem a própria vida, obrigadas a levarem a termo uma gravidez de alto risco; temos assim crianças a nascerem com malformações congénitas, num país em que os recursos e as possibilidades de sobrevivência digna são mais do que problemáticas. (1)

Estamos habituados ao cinismo político, mas que podemos esperar quando nos dizem que se serve a causa das mulheres servindo-se a causa da classe trabalhadora e quando, de todos os quadrantes e de todos os meios, desde os religiosos aos de entretenimento e espectáculo, nos vendem o mito do amor materno incondicional, e nos forjam a imagem da mulher cujo mérito maior será o de se esquecer de si própria, colocando-se ao serviço da espécie e … obviamente dos machos complacentes que lhe hão-de prodigalizar adulações tão balofas quanto hipócritas.

Todas estas malfeitorias, este controlo abjecto sobre a sexualidade das mulheres, se cometem em nome da vida, dos valores cristãos e, porventura agora também, em nome dos valores revolucionários. Que mais queremos? Parece que toda a gente fica feliz! As mulheres não devem ser gente, afinal já no Concílio de Niceia se discutiu se elas teriam alma e pelos vistos continua a considerar-se que não têm, basta que sejam máquinas a serviço da propagação da espécie.

(1) veja neste outro blog a abordagem deste tema com dados estatísticos que interessa conhecer.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

O que é ser objecto sexual

A representação da realidade, qualquer representação, pretende dizer a verdade sobre a realidade, dizer como ela é; ora representar a mulher, constante e uniformemente, como objecto sexual equivale a dizer que ela é objecto sexual, que essa é a sua identidade. Ser objecto sexual é ser representada como um corpo, ou partes do corpo, relacionadas com a função sexual, e ser com ele identificada.

Para além do empobrecimento que implica ser reduzida ao corpo, dado o pouco valor que a cultura religiosa e a cultura popular lhe reconhecem, é ainda uma forma de inferiorizar as mulheres, é como se alguém dissesse: os homens têm mentes; as mulheres são corpos.
A objectificação sexual é também uma forma de fragmentação do eu feminino porque, ao reduzir a mulher ao corpo, lhe nega a capacidade para transcender a sua função sexual. Ser feminina é ser um corpo cuja função determinante é a sexual.

Com o declínio da influência da Família e da Igreja, que durante séculos nos disseram como deveríamos ser obedientes, dóceis e preocupadas em agradar aos outros, hoje é a indústria da moda quem dita as regras da feminilidade; estas, embora formuladas de modo ligeiramente diferente, continuam a ser as mesmas. Ser feminina é preocupar-se com a aparência, mais, é ser escrava da aparência. Deste objectivo decorre a glorificação do corpo, que encontramos nas revistas de moda e na publicidade; mas por detrás da representação de rostos e corpos absolutamente perfeitos, encontra-se um outro objectivo escondido, o de criar nas mulheres uma auto-imagem negativa pois que, ao compararem os seus rostos e corpos com o modelo que lhes propõem, não podem deixar de sentir que há sempre algo errado: ou o nariz é demasiado cheio, ou os lábios muito finos, as ancas largas ou estreitas, o busto pequeno ou descaído, algo se encontra sempre fora do lugar. A mensagem que o mundo da moda envia é a de que o corpo está sempre a precisar de intervenção, seja para o modificar, seja para o conservar, pois o envelhecimento é visto como uma tragédia e começa cedo, se nos descuidarmos. «Todas as projecções do complexo moda-beleza têm isto em comum: são imagens do que eu não sou ... eu não sou aceitável como sou».(1)

Assim, com a objectificação sexual e com esta definição de feminilidade, por um lado, reduz-se a mulher ao corpo e, por outro, exige-se que se distancie dele para melhor perceber o que precisa de fazer para o adaptar ao padrão de beleza proposto. A indústria da moda tem tudo a ganhar ao criar necessidades inesgotáveis de consumo, o sistema patriarcal também agradece ao contar com mulheres cujo objectivo de vida é agradarem aos outros e que estarão bem adormecidas para pensarem em outros vôos.
(1)Sandra Lee Bartky: Femininity and Domination.

domingo, 9 de agosto de 2009

Hiper-realidade e suas vítimas de estimação

O conceito de hiper-realidade foi criado e utilizado pelo sociólogo francês Jean Baudrillard (1927/2007) para referir a «realidade» construída pelos Mass Media e pelas novas tecnologias; nessa realidade, a distinção entre o real e o imaginário desaparece. A hiper-realidade é assim uma fraude que não é percebida como fraude.

Na publicidade e na pornografia, mas não só, a hiper-realidade de mulheres que são apresentadas como mulheres, mas que não parecem mulheres reais, de carne e osso, dados os atributos físicos que manifestam – silicon e botox intervindo em força, e a ausência das imperfeições que normalmente se notam nos rostos e corpos humanos - como se de bonecas se tratasse, revelam a ausência de autenticidade que caracteriza o hiper-real.

Publicidade e pornografia vendem simulacros de mulheres, vendem as mulheres - objecto das fantasias dos homens e o que é mais grave, obrigam as mulheres espectadoras, as mulheres reais, a reverem-se nesses simulacros, a procurarem atingir a «perfeição plastificada» desses simulacros.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Violência simbólica – estrutura e consequências

O conceito de «violência simbólica» foi cunhado por Pierre Bourdieu, sociólogo francês, e permite compreender melhor as motivações profundas que se encontram na origem da aceitação de atitudes e comportamentos de submissão.

Nas relações sociais em que o vínculo é de domínio/submissão, os dominados, inconsciente e involuntariamente, assimilam os valores e a visão do mundo dos dominantes e desse modo tornam-se cúmplices da ordem estabelecida sem perceberem que são as primeiras e principais vítimas dessa mesma ordem. Não são violentados nem por palavras nem por actos, aparentemente não há coacção nem constrangimento, mas a violência continua lá sob forma subtil e escondida, sob forma de violência simbólica: o modo de ver, a maneira de valorar, as concepções de fundo são as dos dominantes, mas os dominados ignoram totalmente esse processo de aquisição e partem ingenuamente do princípio que essas ideias e esses valores são os seus.

A relação de domínio não é percebida como uma relação de força em que o mais forte impõe a regra e a norma ao mais fraco, e, não se compreendendo que deve ter começado algures no espaço e no tempo, é aceite como um dado, uma inevitabilidade e desse modo é naturalizada. Acontece ainda que as instituições religiosas, políticas, sociais e culturais convergem no sentido de reforçarem esta característica.

Poderia parecer que a violência simbólica se exerce apenas sobre os dominados, mas não é assim. Para que o domínio se perpetue e não seja detectado e denunciado, é preciso que não só as identidades dos dominados, mas também as dos dominantes sejam construídas em conformidade com estes dois modelos de comportamento, não se desculpando a mais leve transgressão, o mais ligeiro desvio à norma. É por isso que «um homem não chora»; que um menino que gosta de brincadeiras menos agressivas é um «mariquinhas», que certas profissões são impróprias para homens, etc. etc. - é preciso garantir a reprodução das estruturas de domínio. Cada homem está também sob a pressão constante de afirmar a sua virilidade e a sociedade é implacável para aqueles que são “frouxos” - é preciso garantir a manutenção dessas estruturas. Esta pressão começa cedo, na escola, os meninos perseguem sempre aquele que parece não se conformar à norma e, pela vida fora, qualquer homem sente que tem de estar à altura da ideia que tem do que é ser homem.

Nesta camisa de forças que é a violência simbólica - exercida através de um conjunto de mecanismos subtis de conservação e reprodução das estruturas de domínio, mulheres e homens têm poucas opções; estará a sua liberdade ferida de morte?

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

O potencial revolucionário do Feminismo Liberal

Uma das críticas que mais insistentemente as esquerdas – feminismo radical e feminismos de inspiração marxista, fazem ao feminismo liberal é a de que ele é reformista e que, ao pretender conciliar mudanças e reformas com a manutenção das estruturas políticas existentes, não irá identificar as estruturas mais amplas que oprimem as mulheres, tais como o sistema patriarcal e a organização hierárquica do sistema capitalista. Mas as esquerdas parece não terem percebido que feminismo liberal não é igual a feminismo mais liberalismo e não querem ver que, de facto, o feminismo liberal revelou potencialidade para radicalizar o liberalismo porque, ao procurar fazer coisas que interessam às mulheres enquanto mulheres, acabou por ultrapassar a ideologia e por a subverter.
Podemos mostrar a bondade desta tese, lembrando factos. Foi o feminismo liberal que trouxe os problemas da esfera privada para a esfera pública, afinal foi ele que de facto e não apenas em teoria defendeu que «o pessoal é político», procurando promover e incrementar medidas tendentes a resolver os problemas com que as mulheres se deparam enquanto mulheres, tais como o problema da violência doméstica, até então conhecido pelo eufemismo de «disputa familiar» na qual obviamente a polícia não intervinha, lutando pela instituição de casas abrigo para as vítimas de abuso e sensibilizando os legisladores que haveriam de vir a reconhecer em épocas diferentes este crime como um crime público que qualquer um poderia denunciar. Foram feministas liberais que insistiram na necessidade de creches para as crianças das mães trabalhadoras, entendendo que todos estes problemas tinham uma dimensão social e política que não mais poderia ser escamoteada. Mais recentemente o estabelecimento nas próprias empresas privadas de licença parental quando do nascimento de filhas/os e a guarda comum das crianças em caso de divórcio, são relevantes conquistas pelas quais o feminismo liberal se bateu.

A agenda feminista liberal esteve e continua a estar no terreno, identificando problemas, definindo objectivos e propondo estratégias para os resolver e foi ela que na prática integrou muitos problemas familiares na esfera do social e do político, com isso operando transformações profundas ao nível da família e da esfera privada que até há pouco era considerada pelo próprio liberalismo como uma espécie de área sagrada onde o Estado nunca deveria intervir.
Assim, embora o feminismo liberal inclua como objectivo prioritário o acesso a direitos de que antes apenas os homens gozavam, sendo por isso acusado de burguês – o que de qualquer modo é contestável, não se ficou por aqui e na sua lógica interna de dar corpo a esses direitos acabou por transformar o próprio liberalismo, ao revelar, embora de forma implícita, que as mulheres constituem uma classe sexual que é oprimida enquanto tal, ora «Este reconhecimento das mulheres como uma classe sexual transfere a qualidade subversiva do feminismo para o liberalismo porque o liberalismo tomou como premissa para a exclusão das mulheres da vida pública essa base.» (1)

Se quiséssemos resumir o potencial revolucionário do feminismo liberal poderíamos dizer que, ao exigir igualdade de facto para as mulheres e ao levar essa exigência às suas lógicas consequências, ele acabará por desmantelar a estrutura patriarcal da família. Por isso, criticar o feminismo liberal por ele ser meramente reformista é ignorar que muitas das reformas que propõe e implementa, pela sua natureza subversiva, podem acabar numa autêntica revolução, não tão turbulenta, como estamos habituados a pensar, mas não menos revolucionária.
(1) Patrícia S. Misciano: Rethinking Feminist Identification. Praeger Publishers, 1997.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Quem controla a produção e a reprodução?

A opressão das mulheres decorre de relações de poder assimétricas entre homens e mulheres em que uns se encontram numa situação de domínio e outras de submissão. Esta assimetria, que deve ter tido origem primeira e fundamental na superioridade física dos homens, foi consolidada e mantida pelo modo como a reprodução e a produção se organizaram e foi legitimada pela construção social da sexualidade e das categorias de género; para essa legitimação contribuíram a religião, a literatura, a filosofia e até as próprias ciências.
A força física foi progressivamente perdendo importância como factor determinante de uma relação de poder e hoje só em situações que a sociedade reconhece como de abuso pode revelar o seu potencial.
O sistema de produção, que até há pouco estava concentrado praticamente em exclusividade nas mãos dos homens, o que constituía um instrumento de domínio económico sobre as mulheres, começou progressivamente a integrar mulheres que hoje desempenham as mais diversas tarefas no mundo do trabalho socialmente produtivo.
A organização da reprodução que, durante milénios, obrigou as mulheres a gravidezes numerosas e extenuantes (reprodução da espécie) a que se adicionava o cuidado da prole e das tarefas domésticos (reprodução da vida social) foi, e é ainda em muitas circunstâncias, um instrumento poderoso para o controlo das mulheres pelos homens. Mas hoje as práticas anti-concepcionais e o acesso ao aborto no caso de gravidez indesejada significam que esse controlo se encontra seriamente ameaçado.
Assim, o modo de organização da produção e da reprodução foram áreas fulcrais e factores determinantes da supremacia masculina e por isso não é de estranhar que o anti-feminismo mais ou menos encapotado que perpassa a nossa sociedade se encarnice sobre estes dois aspectos. Por exemplo, a Igreja católica, com pezinhos de lã, a espaços, vem deplorar o empenhamento das mulheres em prosseguirem as suas carreiras profissionais, «abandonando» os filhos a estranhos; as campanhas nos media para promover o retorno das mulheres ao lar são um objectivo constante dos sectores mais conservadores da sociedade. Nunca se fala no papel dos pais masculinos na educação dos seus filhos, é mais uma vez à mulher que se pede o sacrifício da sua vida pessoal. Ora se nós soubermos, como sabemos, que a independência económica é condição imprescindível para qualquer outra independência, não podemos deixar de denunciar mais esta mistificação.
Quanto à reprodução, a sanha da igreja católica e do fundamentalismo evangélico não conhece limites. Os direitos reprodutivos, do seu ponto de vista, não são direitos das mulheres: hipocritamente pregam o valor da vida com o objectivo escondido e nunca declarado de controlar a vida das mulheres.
Podemos pois concluir reafirmando que o controlo da produção em termos equitativos com os homens e o controlo da reprodução enquanto direito das mulheres serão dois mecanismos com enorme capacidade emancipatória que permitirão pôr cobro à relação domínio/submissão que tem prevalecido.

sábado, 1 de agosto de 2009

Sociobiologia e critérios de cientificidade

Segue hoje mais um episódio sobre a Sociobiologia no qual se discute a sua legitimidade enquanto teoria que pretende ser científica, ou, como dizem os filósofos, o seu estatuto epistemológico.

A título prévio, precisamos dizer que a evidência que suporta uma teoria pode ser verdadeira e a teoria pode ser falsa e que a mesma evidência pode encontrar-se na origem de teorias alternativas. Isto acontece porque a evidencia constitui a premissa ou premissas de que se parte e a teoria é a conclusão a que se chega através de uma dedução e o laço entre umas e outra pode não ser constringente.

Como já referimos, a Sociobiologia, partindo da reprodução e do modo como ela afecta homens e mulheres, defende que os traços de carácter masculinos diferem radicalmente dos traços de carácter femininos; considera que essa diferença, geneticamente determinada, explica a dominância e agressividade masculina e a passividade e submissão feminina. As mulheres, de acordo com esta teoria, são passivas e submissas porque tal está inscrito no seu código genético; pelo mesmo motivo, os homens são dominadores e agressivos.

A explicação (hipótese) que a Sociobiologia fornece entra em conflito com a hipótese proposta pela própria Sociologia que explica a dominância masculina e a submissão feminina apelando para processos de socialização radicalmente diferentes que condicionam, através de mecanismos de vária ordem, a construção das identidades feminina e masculina. Estamos pois perante teorias concorrentes e mais uma vez perante o conflito é entre o inato e o adquirido. Não é de pequena monta decidir por uma ou outra teoria, mas para já é preciso afirmar que existe uma explicação alternativa à sociobiologia, ficando por decidir para qual nos devemos inclinar, após a análise dos seu méritos e deméritos.

Comecemos como o papel que homens e mulheres desempenham na reprodução da espécie; tem de se concordar que é muito maior o investimento da mulher do que o do homem; mas já não tem de se concordar que tenha estado aqui a origem da dominação de um sexo sobre o outro e a aceitação pacífica por parte da mulher da submissão ao homem. E isto porque a submissão é uma atitude tão pouco natural (para aquele/a que vai ser submetida), tão pouco desejável, que muito mais verosimilmente deve ter tido origem na superioridade física de um sexo em relação ao outro e na consequente imposição da dominância.

Acresce ainda que há um aspecto importante que a hipótese sociobiológica não consegue explicar: Se é tão natural e conveniente que as mulheres sejam dominadas pelos homens, porque é que foi preciso montar tantos constrangimentos sociais para as manter no seu «lugar» e nos seus «papéis naturais», recorrendo-se à força intimidante das tradições, à força sobrenatural das religiões, à pressão constringente da literatura, da ciência e até da própria filosofia, para produzir constantemente discursos legitimadores do «status quo»? Como se pode ver, um arsenal poderosíssimo e desproporcionado contra um ser tão «frágil e passivo»! Mais, se o comportamento de dependência e de submissão das mulheres está inscrito no seu código genético, se é tão natural, porque é que tantas mulheres se sentem profundamente desconfortáveis no papel que a natureza para elas determinou? Estes são factos que não corroboram a teoria, mas que a falsificam.

Concluindo, por um lado, há uma explicação mais simples e verosímil para os factos que a Sociobiologia se propõe explicar; por outro, há factos que esta hipótese não explica. Deste modo, pode defender-se que a Sociobiologia complica desnecessariamente a questão, tem pouco poder explicativo e é falsificada por factos que, se a aceitássemos não poderiam ter ocorrido, mas que ocorreram; estes são critérios importantes para se determinar a cientificidade de uma teoria, que Guilherme de Ockham, um dos pais fundadores do modo científico de conhecer o mundo, já tinha evidenciado e que Karl Popper na Época Contemporânea reforçou.