domingo, 29 de maio de 2011

O Amor na vida de uma mulher


Em O Segundo Sexo, Simone de Beauvoir dedica um capítulo à Amorosa. Aí reconhece que mulheres e homens têm concepções diferentes acerca do amor. Citando Byron e Nietzche, confirma que as mulheres entendem por amor a dedicação total da sua vida a um homem, enquanto o amor para este não implica tal reciprocidade. O amor, como escreve Byron, é apenas «uma ocupação na vida do homem, ao passo que é a própria vida da mulher.» Para a mulher, o amor é demissão da sua própria vida enquanto para o homem é anexação da vida da mulher amada na sua. Beauvoir reconhece a justeza deste retrato:


“Em certos momentos de sua existência, alguns homens puderam ser amantes apaixonados, mas nenhum há que se possa definir como "um grande apaixonado"; nunca abdicam totalmente, mesmo em seus mais violentos transportes; ainda que caiam de joelhos diante de sua amante, o que desejam afinal é possuí-la, anexá-la; permanecem no coração de sua vida como sujeitos soberanos; a mulher amada não passa de um valor entre outros; querem integrá-la em sua existência, e não afundar nela uma existência inteira. Para a mulher, ao contrário, o amor é uma demissão total em proveito de um senhor.” p. 410


Simone de Beauvoir poderia ter referido que estamos perante personalidades do século XIX - um poeta e um filósofo - que têm em comum o facto de serem, cada um à sua maneira, profundamente misóginos, aproveitando as obras que nos deixaram para expressarem de uma forma mais palatável a sua misoginia. Poderia ainda ter referido como a literatura que eles produziram, nomeadamente Byron e muitos novelistas da época, como Dickens, consumida avidamente pelo público feminino, reforçava este estereótipo da amorosa, apresentada como o modelo de todas as virtudes femininas. Não referiu nem uma coisa nem outra, não alertou para estes pormenores significativos, mas pelo menos, e isso não foi de menor importância, denunciou que é a situação em que decorre a vida das mulheres que explica porque concebem e sentem o amor dessa maneira. Assim, ao essencialismo destes autores que atribuem à natureza feminina estas peculiaridades do amor, contrapõe a existência social das mulheres.
A história provocou que ela estava certa e os essencialistas errados porque hoje muitas mulheres não se revêem de modo nenhum nesta concepção de amor precisamente porque as suas condições de vida mudaram. Os intelectuais do século XIX não conseguem de modo nenhum explicar por que é que, se essa é como pretendem a natureza da mulher, precisam de estar tão atentos, reforçando esse papel e execrando todas as mulheres da época - e já eram algumas - que a ele não se ajustavam; também não conseguem explicar por que é que hoje cada vez menos mulheres se revêem nesse papel. Mas vejamos a abordagem de Beauvoir que é extremamente interessante e plausível, mais do que plausível reveste um extraordinário poder explicativo:


“Em verdade, não é de uma lei da natureza que se trata. É a diferença de suas situações que se reflete na concepção que o homem e a mulher têm do amor. O indivíduo que é sujeito, que é êle mesmo, tendo o gosto generoso da transcendência, esforça-se por ampliar seu domínio sobre o mundo: é ambicioso, age. Mas um ser inessencial não pode descobrir o absoluto no coração de sua subjetividade. Um ser votado à imanência não pode realizar- se em atos. Encerrada na esfera do relativo, destinada ao macho desde a infância, habituada a ver nele um soberano a quem não lhe é dado igualar-se, a mulher que não sufocou sua reivindicação de ser humano sonhará em ultrapassar-se para um desses seres superiores, em unir-se, confundir-se com o sujeito soberano.
Não há para ela outra saída senão perder-se de corpo e alma em quem lhe designam como o absoluto, o essencial. Como de qualquer maneira se acha condenada à dependência, a obedecer a tiranos — pais, marido, protetor — prefere servir um Deus; escolhe querer tão ardorosamente sua escravidão que esta se apresentará a ela como a expressão de sua liberdade; esforçar-se-á por superar sua situação de objeto inessencial assumindo-a radicalmente; através de sua carne, de seus sentimentos, de suas condutas exaltará soberanamente o amado, pô-lo-á como a realidade e o valor supremos; aniquilar-se-á diante dele. O amor para ela torna-se uma religião.” 412

A mulher que entende o amor como abdicação da sua própria vida para se fundir e plasmar na vida do amante encontra aí uma solução de compromisso e uma forma vicariante de existir como ser humano; perante a dificuldade de se afirmar como sujeito e de transcender a condição que a sociedade, aproveitando algumas das suas limitações naturais, lhe impõe, não se assume como um ser livre e foge para a inautenticidade. Essa fuga é compreensível a partir do momento em que todo o processo de aculturação a ela conduz: à falta de independência económica junta-se a colonização cultural devidamente reforçada por códigos jurídicos que a tratam como um ser inferior e inessencial. Neste contexto é preciso ser uma heroína para ser um ser humano.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Esposa ou prostituta honoris causa?!


A história recente do escândalo sexual que envolveu o diretor do FMI Dominique Strauss Kahn é uma boa oportunidade para mostrar mais uma vez como o papel da mulher no casamento a «obriga» a alimentar o ego do marido e a sarar as suas feridas, muitas vezes com graves prejuízos dos seus (dela) legítimos interesses. Neste caso concreto, logo após a detenção do marido por alegada violação da camareira do hotel em que se hospedara, a esposa deslocou-se para os Estados Unidos e colocou-se incondicionalmente ao seu lado, prestando-lhe apoio e solidariedade, num contexto em que o ego dela estava a sair bastante maltratado.
Se repararmos, este caso ilustra de forma exemplar os três perigos que espreitam as mulheres no desempenho do papel de curadoras de maridos e família, como referimos no texto atrás publicado, «Alimentar egos e sarar feridas». Esses perigos são: (1) o desempoderamento epistémico, (2) o desempoderamento ético e (3)a mistificação da real situação da mulher. Vejamos cada um destes aspetos nesta concreta situação.


(1)A senhora em questão viu-se obrigada a perceber a situação de acordo com a perspetiva que o marido forneceu; a isso a obrigava o papel que tinha de desempenhar. Qualquer atitude crítica e de dúvida estava completamente vedada e a sua autonomia intelectual seriamente comprometida.


(2) A mesma senhora tornou-se necessariamente cúmplice dos atos dele pela aprovação tácita que teve de lhes dar.

(3) No fim ainda vai ficar convencida de que cumpriu o seu dever e que prestou um serviço muito meritório ao esposo e à sociedade, não percebendo como está a ser manipulada e encerrada numa autêntica ratoeira.

Claro que se não tivesse procedido da maneira esperada, teria sido alvo de críticas da parte não só da generalidade dos homens como de muitas mulheres, assim evitou o embaraço e tornou-se o exemplo da esposa abnegada; mas ao fim ao cabo ela está a usar a categoria de má fé para não assumir uma posição crítica ou pelo menos para não se remeter ao silêncio e afastamento temporário, e está a cair na inautenticidade.
O problema desta mulher, como de um número incalculável de outras é que, de demissão em demissão, acabou por ver-se confrontada com uma situação limite da qual só conseguiria sair com um ato de extraordinária coragem. Mas desta particular mulher, que conhecia provavelmente melhor do que ninguém a «folha de serviço» do marido, rotulado publicamente pelo eufemismo de mulherengo e referido como consumidor frequente de prostitutas, se calhar era impensável esperar sequer outro comportamento, habituada como estaria a ser uma espécie de prostituta honoris causa.

terça-feira, 17 de maio de 2011

"Alimentar egos e sarar feridas"


Sandra Lee Bartky em Femininty and Domination dedica um capítulo à análise de uma consensual maior «vocação» das mulheres para suportarem afetivamente os seus companheiros, maridos, namorados ou amantes, sem esperarem reciprocidade da parte deles, como se este comportamento, estando inscrito na essencia da feminilidade, fosse natural e espectável. Tal desequilíbrio – uma troca afetiva profundamente assimétrica - parece provocar alguma frustração em muitas mulheres e assim impõe-se perguntar se não estaremos mais uma vez perante um condicionamento psicológico que em última análise as prejudica e revela o parasitismo masculino decorrente de uma posição hierárquica de supremacia.


Um homem espera da sua companheira apoio emocional; espera que ela esqueça os seus interesses ou, na melhor hipótese, os identifique com os dele próprio, e a mulher sente que é seu dever corresponder a essa expectativa, se quiser ser considerada uma boa mulher. Manter a auto-estima do companheiro, «massajar-lhe» o ego; apoiá-lo incondicionalmente quando se vê confrontado com reveses profissionais ou outros, aligeirar-lhe o fardo da existência, reconfirmá-lo no seu valor e importância, é isso que dela se espera.
Neste sentido, pessoas conservadoras, nomeadamente as anti-feministas assumidas, vêem o casamento como uma relação em que o homem fornece sustento – marido provedor – e a mulher em troca corresponde com atenção e cuidado ao bem-estar físico e psicológico do esposo e da família. Ora em que medida é que este contrato, livremente aceite, pode ser um prejuízo para a mulher e resultar numa relação de exploração? Como pano de fundo pode reconhecer-se que esta relação, ao invés de empoderar a mulher, lhe retira poder porque, ao dar trabalho doméstico e apoio emocional nestes termos, coloca-se completamente na dependência económica do marido e já toda a gente percebeu que isto, a menos que ela consiga impor um contrato de casamento leonino, pode vir a revelar-se um péssimo negócio. Quem depende economicamente de outra pessoa encontra-se sempre numa posição de fraqueza que obriga ou pelo menos cria condições para atitudes de subserviência.


Não é preciso dar exemplos de comportamentos de apoio emocional porque praticamente todas as mulheres, mais ou menos emancipadas, estão com eles familiarizadas. Ser demasiado crítica é entendido como ser agressiva e os homens queixam-se amargamente das mulheres que se atrevem a assumir este comportamento. Vejamos agora possíveis consequências negativas para as próprias mulheres ao assumirem a sua missão feminina de alimentarem o ego do companheiro e de repararem as suas feridas através de suporte emocional.Na relação heterossexual, o apoio sem condições da mulher ao companheiro comporta riscos em três vertentes importantes, identificadas por Sandra Lee Bartky: (1) desempoderamento epistémico, (2) desempoderamento ético e (3) mistificação da sua real situação.

(1)Para dar um suporte convincente ao companheiro, a mulher precisa de ver as coisas do ponto de vista dele, abdicando de uma perspetiva crítica no conhecimento do mundo e das relações sociais; abdicando do que poderíamos designar de autonomia cognitiva. Isto é tão verdade que praticamente todas as mulheres conhecem as ameaças à estabilidade da relação quando ousam confrontar a mundividência masculina, confronto esse que é interpretado como deslealdade: a última coisa que um homem quer é uma esposa ou amante que ponha em causa a sua perceção do real e os seus valores. Ora isto só pode reforçar a falta de autoridade epistémica reconhecida nas mulheres e que resulta de vários fatores, entre outros do facto do saber sobre o mundo ter sido até ao presente construído quase em exclusividade pelos homens e de as mulheres terem sido «obrigadas» a assimilarem acriticamente uma maneira masculina de ver o mundo que lhes é apresentada nas escolas, nas igrejas, nos media como neutra e universal.

(2) Ao desempoderamento epistémico acresce o desempoderamento ético. Desde sempre os filósofos tenderam a desvalorizar a capacidade ética das mulheres - a capacidade de se regerem por princípios abstratos de natureza racional - ora esta crítica, profundamente descontextualizada, pode receber reforço se percebermos que o suporte emocional que é suposto a mulher prestar ao companheiro pode precisamente obscurecer o seu sentido ético, o seu sentido do dever, pode levá-la a ser cúmplice do homem em atos que contrariam princípios éticos de reconhecido valor; e assim ser boa esposa - um dever social que se lhe exige – pode revelar-se incompatível com ser uma pessoa boa – um dever ético que obriga todo e qualquer ser humano. Na resolução deste conflito a mulher corre o risco de desempoderamento ético.

(3) Mas há uma outra consequência negativa que o dever de suporte emocional da mulher em relação ao homem comporta. É que a percepção do risco de desempoderamento, atrás identificado, pode ser completamente obscurecida pela percepção que muitas mulheres têm de que as coisas se passam exatamente ao contrário. Muitas mulheres, perante a vulnerabilidade e até fraqueza revelada em determinadas situações pelos seus companheiros e perante a sua própria capacidade de os conseguirem fortalecer, imaginam-se poderosas. E não podemos esquecer que esta ficção de poder feminino é «oportunamente» sustentada pelos elogios que recebem e pelo pedestal em que os homens as colocam. Vários filósofos e autores literários, através dos tempos, têm feito o elogio e a apologia da mulher como anjo do lar, capaz dos maiores sacrifícios para manter a estabilidade da família, esquecendo os seus interesses que deve identificar com os interesses do marido, dotada de um poder muito especial, o poder do amor, apresentado como um substituto e equivalente de outros tipos de poder. Cair nesta ratoeira é assim bastante compreensível, pois torna-se difícil reconhecer que se trata de facto de uma ratoeira. A mulher não percebe que não está a ser respeitada enquanto pessoa e torna-se cúmplice do desrespeito que sofre. O poder do amor é apenas um simulacro de poder porque está muito afastado do poder real de intervenção no mundo e só funciona enquanto a mulher concordar em renunciar a este último e real poder. Apoiar o companheiro pode ser emocionalmente gratificante para a mulher na medida em que descobre a vulnerabilidade deste e como pode contribuir para lhe retemperar as forças e restaurar a coragem, mas é sempre uma forma vicariante de poder que, pela sua capacidade de sedução, impede as mulheres de reconhecerem a situação real em que se encontram e como esta as desfavorece injustamente.

A apologia desta tradicional capacidade das mulheres em prestarem um cuidado muito especial aos seus companheiros e de uma maneira geral a todos os membros da família em que se integram – o anjo no lar de que falam filósofos e novelistas – foi recentemente retomada por um conjunto de autoras feministas, conhecidas pela defesa da «ética do cuidado, que aceitando esta caraterística feminina pretendem valorizar o estatuto social das mulheres. Independentemente das boas intenções que as suportam e de quão tentadora possa ser a sua pretensão, temos, como faz Sandra Lee Bartky, de evidenciar como a insistência neste conceito de feminilidade pode ser pernicioso para as mulheres e como pode ser limitativo da sua capacidade de autonomia e de realização enquanto pessoas.

terça-feira, 10 de maio de 2011

Vergonha e género


Sendo o enquadramento social de mulheres e de homens muito diferente, os seus modos de conhecer também têm de ser diferentes. Por isso, as feministas defendem, com boa razão, que o abstrato sujeito cognoscente de que os filósofos gostam de falar - o sujeito epistémico, neutro do ponto de vista de género - foi sempre um sujeito masculino, convenientemente disfarçado de sujeito universal. Mas também no que aos sentimentos e sua expressão diz respeito, as diferenças entre mulheres e homens são significativas e por isso, como escreve bartky «assim como o conhecimento não pode ser descrito em termos neutrais, do mesmo modo não o pode ser o sentimento.»
Importa ainda dizer que na medida em que a diferença social tende a inferiorizar as mulheres e serve para manter a opressão que sofrem, não só o conhecimento produzido e apresentado como universal tende, grosso modo, a justificar a opressão como, um pouco paradoxalmente, alguns dos sentimentos que as mulheres experimentam caminham no sentido de a reforçarem.


Em relação aos sentimentos encontramos um padrão que distingue as mulheres dos homens: as mulheres sentem-se mais vulneráveis, são mais envergonhadas, tímidas, vaidosas e dominadas pela aparência, e também mais propensas a submergirem a sua identidade na identidade do homem (marido, amante). Deste padrão vamos destacar o sentimento de vergonha que aparece com caraterísticas peculiares nas mulheres e que, como procuraremos mostrar adiante, seguindo a tese defendida por Sandra Lee Bartky em Femininity and Domination, serve para reforçar a opressão das mulheres e «pode ser uma marca ou sinal de carência de poder».


Em primeiro lugar observa-se que as mulheres tendem a passar por muitas mais experiências de vergonha do que os homens. Se percebermos que a vergonha resulta do sentimento de que se é, de alguma maneira, inadequado e se lembrarmos que as normas de conformidade e de ajustamento são muito mais impositivas e restritivas para as mulheres do que para os homens, perceberemos porque é que isso acontece. Vejamos então as caraterísticas que este sentimento/emoção reveste:


(1) A vergonha tem, como Sartre tão bem evidenciou, uma estrutura intersubjetiva, isto é requer um sujeito que é visto por um outro e que se percebe como sendo objeto do olhar do outro; pode acontecer, e acontece, que o sujeito que experimenta vergonha introjeta o sujeito perante o qual se envergonha, mas ainda neste caso esse sujeito está lá, embora interiorizado, e a estrutura intersubjectiva do fenómenos não foi beliscada.
(2) A vergonha é sempre acompanhada por uma tonalidade afetiva desagradável e portanto negativa, aparece como uma perturbação psíquica que resulta de o eu se apreender como inadequado e diminuído em termos de valor, como, de algum modo, inferior.
(3) A vergonha implica a necessidade de ocultar e de esconder: revelar as minhas falhas ou o que eu percebo como falhas pode ser extremamente doloroso, pois se o fizer corro o risco de ser desvalorizado pelo outro; daí a ocultação, mas em simultâneo também vou sentir vergonha por esconder. Ora a necessidade de ocultar e de esconder empobrece a pessoa porque lhe corta a possibilidade de ser autêntica, de se afirmar como realmente é, tira-lhe poder, tira-lhe capacidade de auto-afirmação.
(4) Com a experiência da vergonha é a minha autoconfiança que é minada e por isso o sentimento de vergonha tem relação com o sentido da identidade, com o que eu sou; ao experimentar vergonha eu apercebo-me penosamente de aspectos da minha personalidade que até então ignorava e que me podem diminuir ainda mais se forem revelados aos outros - a minha auto-estima é afetada, o meu auto-conceito é empobrecido, vejo-me como um ser de menor valor.

Há casos em que a vergonha pode ser instrumentalmente positiva, como acontece quando nos envergonhamos de não ter estado à altura do que uma dada situação requeria de nós e aí pode dar motivo ao nosso aperfeiçoamento como pessoas. Quando a pessoa se envergonha de não ter respeitado uma regra a que a própria reconhece valor, esse reconhecimento pode ajudá-la a tornar-se uma pessoa melhor. Mas, falando em termos gerais, a vergonha que as mulheres especificamente experimentam não é deste tipo e não dá lugar a qualquer aperfeiçoamento moral.

Nas mulheres, a vergonha corresponde ao sentimento de não se sentirem adequadas, de não estarem em conformidade com as normas que se espera que elas respeitem. O próprio estatuto social de inferioridade que lhes é atribuído ocasiona esse sentimento difuso mas persistente que não só não dá lugar a que se aperfeiçoem como seres humanos como as leva a perceberem-se como mais fracas e menos confiantes. O estatuto que lhes é conferido, ao provocar sentimentos de inferioridade e de desajustamento, legitima a ordem social que o confere. Se eu me percebo como inferior acho normal e natural que me tratem como inferior.


Resumindo, a vergonha é um sentimento negativo que apenas em certas e específicas condições pode ter um valor instrumental positivo. Se uma determinada ordem social quer manter uma classe de pessoas numa posição de subordinação, nada melhor do que conseguir que essas pessoas se sintam inferiores e experimentem vergonha, no sentido de se perceberem como mais fracas e menos dotadas, minando assim a sua auto-confiança e legitimando a posição de subordinação. Se as mulheres, muito mais do que os homens, passam pela experiência de vergonha, então a ordem social consegue que elas se aquietem no estatuto que lhes atribuiu, pois este sentimento auto-avaliativo vai integrar a subjetividade das mulheres e ao mesmo tempo vai «perpetuar a sua sujeição».

terça-feira, 3 de maio de 2011

Narcisismo feminino e alienação



Segundo Freud, o narcisismo é o estádio infantil da libido no decurso do qual o instinto sexual toma como objecto a própria pessoa; por isso designa-se de fase auto-erótica. Meninos e meninas passam por esse estádio; mas enquanto os primeiros amadurecem e ultrapassam-no, as meninas tendem, diz Freud, a fixar-se nele.
A fixação das mulheres no narcisismo funciona, segundo Freud, como um mecanismo de compensação da inveja do pénis e respetivo complexo de castração, experimentado quando descobrem a «inferioridade» do seu órgão sexual quando comparado com o dos meninos. Para compensarem a sua inferioridade sexual tendem a admirar o próprio corpo; inconscientemente sentem-se deficientes e, num processo também inconsciente, voltam-se para elas próprias, para a valorização dos seus encantos físicos que funciona como uma compensação para a sua inferioridade sexual, tendência que se intensifica na adolescência.
Em certo sentido, nesta teoria, o narcisismo feminino é apresentado como o correlato do masoquismo, e até tornaria este último aceitável; seria pois uma coisa boa para contrabalançar uma má; mas Sandra Lee Bartky não deixa de salientar com algum azedume que tal visão, ao invés de resolver o problema o complica, pois o narcisismo irá revestir-se de consequências negativas para a realização da mulher enquanto pessoa, pelo que, em princípio não será uma coisa positiva:


«[Diz-se que] sem o antídoto do amor-próprio, a mulher sentir-se-ia incapaz frente aos infortúnios que uma natureza inerentemente masoquista lhe trariam – como se uma constituição psíquica composta em tão larga medida de masoquismo e narcisismo já não fosse infelicidade bastante.»


Esta teoria sobre o narcisismo feminino encontra como suporte a teoria da inveja do pénis - hoje descredibilizada - e ignora completamente o contexto social e político que enquadra o desenvolvimento das jovens - é uma teoria essencialista; por estes motivos carece de plausibilidade. Em Simone de Beauvoir encontramos uma explicação para a persistência do narcisismo feminino bem mais plausível; segundo ela, o narcisismo resulta da situação em que decorre a vida das mulheres que as predispõe a encararem o seu próprio corpo não como um instrumento que lhes permite transcender a sua condição, mas como um objeto destinado a ser olhado e apreciado por outrem.
De fato, no passado, como ainda nos nossos dias, as mulheres, desde muito jovens, são objetificadas sexualmente e é aqui que se deve procurar a raiz do narcisismo – não na inveja do pénis. A consequência desse fenómeno de objetificação na formação do psiquismo feminino reveste uma dimensão dramática: a existência das mulheres vai depender de tal maneira do olhar dos outros que elas acabam por interiorizar esse olhar; a sua personalidade é fragmentada pois elas são em simultâneo o objecto que é mirado, mas também se vigiam a elas próprias. Nelas sujeito e objecto vão coincidir, ou melhor dito, a mulher tenderá a coincidir com o seu próprio corpo, a reduzir o seu eu total ao eu corpóreo, o que obviamente significa um empobrecimento.

O mais grave da objetificação sexual é que ela é uma tentação para a mulher, que proprende a encará-la positivamente enquanto fonte de gratificação: ser valorizada e apreciada enquanto corpo é qualquer coisa! Mas não percebe como, desse modo, está a reduzir o leque das suas possibilidades no mundo, está a remeter-se para a imanência que governa o mundo das coisas. Para além deste aspecto, como diz Beauvoir, «ao identificar o seu eu com o eu corpóreo» a mulher evita o fardo e o risco de uma subjetividade que tem de se constituir e afirmar. A mulher infantil, dependente, amada, porque submissa e dócil, não terá de se preocupar em garantir para si um lugar no mundo à custa do seu próprio esforço e trabalho.


Para reforçar a permanência da mulher na fase narcísica, radicada na objetificação sexual, é necessária a intervenção de um outro instrumento - o complexo moda/ beleza, de que Sandra Lee Bartky fala. Esse “instituto”, substituindo-se nos nossos dias ao papel anteriormente exercido pela Igreja e pela família, regula a feminilidade, criando ansiedade e necessidades fictícias nas mulheres e apresentando em simultâneo os remédios que devem tomar para se aproximarem da perfeição, de acordo com padrões estéticos por ele estabelecidos e, de uma maneira geral, sempre inatingíveis. Assim tudo se faz para que a mulher nunca ultrapasse a fase narcísica: começa-se pela objetificação sexual e complementa-se com a imposição de uma estética que a obriga a um esforço permanente para aproximar esse objeto do padrão estabelecido, centrando-se e ocupando-se constantemente com o corpo, como se uma mulher, em vez de ser uma pessoa, fosse principalmente um corpo.


Denunciar o caráter alienante do investimento narcísico é necessário, mas tem sido uma estratégia que muitas mulheres não compreendem nem aceitam e que em parte explica o seu afastamento do feminismo: como se as feministas quisessem tirar-lhes a única fonte de gratificação que têm à sua disposição. Claro que toda a cultura se esforça por reforçar esse sentimento: postas perante a possibilidade de serem rainhas de beleza ou cientistas de nomeada, provavelmente a maioria das jovens seguiria a primeira possibilidade, afinal nada se compara ao glamour da beleza, e ser cientista exige esforço e capacidade para diferir o prazer imediato, algo que é visto e apresentado como demasiado cansativo e entediante, além de que as intelectuais, de um modo geral, são percebidas como pouco atraentes sexualmente. Tudo isto complementado com os modelos que a midia propõe às jovens, sempre repetida e insistentemente do primeiro tipo, nunca do segundo.


Se a objetificação sexual é uma fonte de gratificação a que sobretudo as adolescentes e as jovens mulheres dificilmente conseguem resistir, como vamos dizer-lhes que é uma coisa má, quando de fato não é essa a tonalidade afetiva que a acompanha?
Para perceber porque é que a objetificação sexual é negativa temos de a desconstruir e de revelar as consequências nefastas que vai revestir; temos de oferecer às jovens modelos que não sejam os dos concursos de beleza, das estrelas pop ou dos anúncios publicitários. Mas esta tarefa é praticamente impossível enquanto os midia estiverem dominados por uma cultura informativa e de entretenimento que navega exatamente em sentido contrário.