quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

«boas raparigas» e «más raparigas» - todas são objectificadas


"O sistema patriarcal sugere que há apenas duas identidades que uma mulher pode assumir. Se aceita o seu papel tradicional de género é uma «boa rapariga»; se não, é «má rapariga». Estes dois papéis … vêem as mulheres apenas em termos de como se relacionam com a ordem patriarcal. Claro que o modo como as «boas rapariga» e as «más raparigas» são especificamente definidas alterar-se-á de acordo com a época. Mas será o sistema patriarcal que procederá à definição porque ambos os papéis são projecção do desejo masculino patriarcal; por exemplo, o desejo de possuir mulheres adequadas para serem esposas e mães, o desejo para controlar a sexualidade da mulher de modo a que a sexualidade dos homens não seja ameaçada de nenhum modo, e o desejo de dominar em todas as questões financeiras. Este último desejo é bem servido pela ideologia patriarcal que considera certos tipos de ocupações impróprias para as «boas raparigas»; foi uma ideologia que forçou muitas mulheres escritoras da era vitoriana na Inglaterra a publicarem o seu trabalho sob pseudónimo e que obrigou escritoras dos dois lados do Atlântico a acomodarem a sua arte a expectativas patriarcais. (...)
De acordo com a ideologia patriarcal, em plena força na década de 1950, as más raparigas violam as normas sexuais patriarcais de um ou de outro modo, são sexualmente atrevidas em termos de aparência ou de comportamento, ou tem múltiplos parceiros sexuais. Os homens dormem com as «más raparigas», mas não casam com elas; as «más raparigas» são usadas e depois descartadas porque não merecem melhor e provavelmente nem mesmo esperam melhor; não são boas o suficiente para usarem o nome de um homem e para serem mães das suas crianças legítimas. Esse papel apenas é apropriado para uma convenientemente submissa «boa rapariga». A «boa rapariga é recompensada pelo seu comportamento sendo colocada num pedestal pela cultura patriarcal. A ela são atribuídas todas as virtudes associadas com a feminilidade patriarcal e com a domesticidade: é modesta, não assertiva, auto-sacrifica-se e cuida dos outros, não tem necessidades próprias porque se sente totalmente satisfeita por servir a sua família. De vez em quando pode sentir-se triste com os problemas dos outros e preocupa-se frequentemente com aqueles de que cuida – mas nunca está zangada. Na Inglaterra da cultura vitoriana ela era o «anjo na casa», fazia da casa um porto seguro para o marido - onde ele podia fortalecer-se espiritualmente, antes de reassumir as lutas diárias no local de trabalho - e para as suas crianças onde podiam receber a orientação moral necessária para virem a assumir os seus papeis tradicionais no mundo adulto.
O que há de errado em ser colocada num pedestal? Uma coisa: os pedestais são pequenos e deixam a uma mulher pouco espaço para fazer outra coisa que não seja desempenhar o papel prescrito. Por exemplo, para permanecer no pedestal vitoriano a «boa rapariga» tinha de permanecer desinteressada da actividade sexual a não ser com o objectivo da procriação, porque se acreditava que não era natural que as mulheres tivessem desejo sexual. De facto, esperava-se que a «boa» mulher achasse o sexo ameaçador ou desgostante. Além disso, os pedestais são instáveis, pode cair-se facilmente de um pedestal e quando uma mulher cai é punida com frequência; no melhor dos casos, sofre auto-recriminação, no pior sofre punição física da comunidade e do seu marido, o qual até há relativamente pouco tempo era encorajado pelas leis e pelos costumes, e é ainda com muita frequência tacitamente perdoado por um sistema de justiça ineficiente ou cúmplice.
Neste contexto, é interessante notar que o sistema patriarcal objectifica tanto as «boas» como as «más» raparigas. Isto é, trata as mulheres, qualquer que seja o seu papel, como objectos. Como objectos as mulheres existem, de acordo com a ordem patriarcal, para serem usadas, sem consideração pelas suas próprias perspectivas, sentimentos e opiniões. Afinal, de um ponto de vista patriarcal, as perspectivas, sentimentos e opiniões das mulheres não contam a não ser que se conformem com as do sistema patriarcal.”
Lois Tyson, Critical Theory Today, Routledge, 2006.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Olha par eles a protegerem as mulheres ... acobertando o casamento infantil

Uma lei internacional, cujo objectivo era proteger crianças do sexo feminino, foi derrotada recentemente nos Estados Unidos quando o partido republicano resolveu retirar-lhe o seu apoio com o argumento de que a medida iria custar dinheiro ao erário público. Tal lei, a ser aprovada, reconheceria o casamento de crianças como uma violação dos direitos humanos e permitiria a partir daí desenvolver estratégias para evitar esse tipo de casamento.

A prática do casamento de crianças encontra-se disseminada a nível mundial e basicamente permite que as famílias utilizem as filhas, meninas ainda ou adolescentes, como moeda de troca. Desse modo, as crianças do sexo feminino, muitas vezes com apenas dez anos de idade, são «dadas» - leia-se vendidas - em casamento a homens que geralmente têm mais do dobro da sua idade. É a educação dessas crianças que fica comprometida, é a sua saúde que corre um risco sério, é o ciclo infernal de pobreza que não vai ser quebrado.
E tudo isto acontece sem que a comunidade internacional consiga intervir, com um país tão poderoso como os Estados Unidos a eximir-se de responsabilidades através de um partido que revela nestes pequenos pormenores a sua identidade reaccionária.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

A emancipação das mulheres

Vale a pena assistir ao vídeo que mostra a extraordinária caminhada que as mulheres têm vindo a percorrer um pouco por todo o mundo.
Pode activar legendas se clicar nos subtitles e escolher o idioma



sábado, 18 de dezembro de 2010

Olha pra eles a protegerem as mulheres ... com violação correctiva


Anda por aí uma comunidade masculina - espero que ainda não tenham cooptado nenhuma mulher para a causa - que se propõe desviar as lésbicas do pecado, através daquilo a que chamam penetração correctiva. Esta prática, dizem-nos, mesmo que prescinda do consentimento da mulher, se for feita com intenção amorosa por parte do «penetrador», não é violação é um acto de amor que leva a mulher a cumprir a vontade divina.
O problema é que, como eles nos avisam, isto não é para rir, é para levar muito a sério, mas talvez não fosse preciso o aviso porque as mulheres sabem muito bem que entre outros mecanismos, a violação, com o perigo que significa para a sua integridade física e psíquica, continua a mostrar-se muito eficaz para se manterem no lugar que os homen, com a cumplicidade das religiões que criaram, para elas reservam.
Vale a pena conhecer directamente o manifesto destes machos alfa de inspiração nazi, que pretendem fazer dos seus «instrumentos» instrumento da vontade divina:

“A penetração corretiva é um ato de amor.
Onde a mulher é tirada do caminho da perdição através do amor introduzido por um varão capacitado.
A mulher outrora desviada do caminho natural agora cumpre seu divino papel de acolher o amor.
A penetração corretiva se bem feita gera a vida.

AVISO1: Não fazemos aqui apologia ao estupro. Estupro é quando não há amor de nenhuma das partes.

AVISO2:Não Somos homo fóbicos com lesbicas

AVISO3:Não Somos humoristas o assunto aqui é sério

Somos a favor do amor ♂ +♀=S2 “

O que estes marmanjos não são capazes de fazer em nome do amor! Como têm desenvolvido o espírito de altruísmo e o fervor religioso! Só é pena que o cérebro não apresente um desenvolvimento equivalente !

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Olha pra eles a protegerem as mulheres ... à chibatada


No Sudão em Dezembro de 2010 é assim para aprenderem a não usurparem os símbolos do poder masculino, no caso em apreço: um par de calças. Nao está mal para gente tão religiosa.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Uma questão de justiça mas também de segurança

Como Hillary Clinton acentua neste discurso, dar poder às mulheres e às jovens e garantir-lhes igualdade de direitos é não só uma questão de elementar justiça mas também de estabilidade e de segurança para os países e para mundo:

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Conseguir a protecção dos homens ou conseguir proteger-se dos homens?


Todas as anti-feministas fazem a apologia do cavalheirismo e da galanteria com o pressuposto de que as mulheres precisam da protecção dos homens; em contrapartida as feministas compreendem bem que as mulheres não precisam da protecção dos homens, precisam sim de se proteger dos homens.

Atenção, estamos perante duas coisas muito diferentes. No primeiro caso tudo permanece na mesma nas relações de género, só se aconselha as mulheres a serem cordatas e obedientes para merecerem a protecção dos homens, uma espécie de máfia aplicada às relações de género. No segundo caso, exigem-se mudanças na organização social e no equilíbrio de poder. Enquanto houver a assimetria de poder entre homens e mulheres, que ainda hoje se verifica mesmo nos países mais desenvolvidos, as mulheres apenas podem contar com a protecção dos homens, mas obviamente esta só será garantida se elas se comportarem “como deve ser”, ou seja, como eles acham que elas se devem comportar. Quem não perceber isto, mesmo que se intitule feminista, está a fazer uma análise idealista da situação e não vai contribuir para que esta se altere porque não identifica correctamente a raiz do problema. Infelizmente a maioria das mulheres e mesmo dos homens têm uma visão idealista do mundo e da vida - a ideologia dominante - que afecta a sua interpretação da realidade e colabora na manutenção do statu quo.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

O feminismo implica a crítica radical da cultura em que fomos educadas


Um dos argumentos mais utilizados pelo anti-feminismo para desprestigiar o feminismo é o de que afinal as jovens, livres e emancipadas – diz-se - não querem nada com o feminismo e rejeitam mesmo o rótulo. Ora isto é em parte verdade, mas precisa de ser desconstruído e é essa a tarefa, ou uma das tarefas, do feminismo - produzir conhecimento - que tanto irrita quem se lhe opõe.
Comecemos pela realidade dos factos: são tão poucas as oportunidades oferecidas às jovens na vida pública que é compreensível que encarem o romance e o casamento como a saída adequada e o campo em que naturalmente se podem realizar; paralelamente, a sociedade esgrime com os valores da família e estimula-as a constituírem família, considerando que, se o não fizerem, a sua identidade fica em risco; tudo no ambiente cultural que as rodeia leva a que se definam em termos da capacidade de serem atraentes e de encontrarem um parceiro sexual; neste contexto, aquelas que tiverem a coragem de se afirmar feministas não vão de modo algum favorecer as suas hipóteses no mercado marital - basta recordarmos que ainda hoje são poucos os homens, jovens ou menos jovens, que simpatizam com o feminismo. Quando se vive num ambiente destes, as justas exigências das jovens, se forem apresentadas, vão dificultar a sua capacidade para encontrar parceiro e como a sua identidade foi construída nessa base é a sobrevivência do eu que fica ameaçada.
A posição das jovens mulheres em relação ao feminismo torna-se assim perfeitamente compreensível porque o feminismo implica a crítica radical da cultura em que foram educadas e das instituições em que se encontram integradas; é uma postura muito exigente que pressupõe o sacrifício de interesses imediatos. Na fase de vida em que se encontram, as desilusões ainda não fizeram o seu caminho e o amor romântico parece pleno de promessas, como resistir quando todo o condicionalismo social convida à desistência?
Lisa Maria Hogeland, professora de Inglês e de Estudos sobre as Mulheres na Universidade Cincinnati, resume de forma magistral as ideias que acabei de expor: “A nossa cultura dá às mulheres tão escassos domínios para se desenvolverem, para explorarem possibilidades, para testarem os limites do que podem fazer e do que podem ser, que as relações sexuais e românticas tornam-se no principal e frequentemente único domínio de realização pessoal.”

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Natureza da violência masculina

Ainda hoje, quando um marido, namorado ou companheiro maltrata ou mata uma mulher, continua a fazer-se passar a mensagem, mesmo que sub-repticiamente, que o fez por amor e não por poder; um amor excessivo, traduzido em ciúmes mórbidos, ou um amor que não aguentou a rejeição; deste modo, com tal percepção, aceita-se a violência masculina e, obviamente, criam-se condições para a perpetuar.

Mas, a violência masculina não é um fenómeno individual, atribuível a idiossincrasias destas ou daquelas pessoas, embora obviamente possa ter uma componente desse tipo, e, por isso, não deve ser encarada dessa maneira; ela é a consequência natural do sistema de dominação em que vivemos, no qual continua a imperar a supremacia masculina; é um fenómeno político, resultante do modo como a vida de homens e de mulheres se encontra organizada; se não se entender isto, não se vai resolver o problema, pode-se agir circunstancialmente, mas o remédio será ineficaz.

Mesmo nas nossas modernas sociedades é difícil encontrar mulheres que em uma ou outra circunstância da sua vida não tenham sofrido ou temido a violência masculina e é esta dimensão que importa não escamotear; todavia, apesar desta constatação, muitas mulheres jovens preferem pensar que a igualdade já foi alcançada e que os casos de violência masculina são esporádicos e pontuais; pensar assim é muito reconfortante, mas ilude a questão porque a violência existe de facto e a ameaça que representa, quanto mais não seja, limita os movimentos das mulheres e por isso é um real impedimento à igualdade. É muito doloroso ter esta consciência e por isso é tão fácil rejeitá-la. Um caso obvio de dissonância cognitiva.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Beleza e política

A obsessão com a perfeição e com a juventude das mulheres é tal que leva os homens e até as próprias mulheres a olharem as candidatas a cargos públicos nesses termos e a desqualificarem-nas porque não satisfazem os parâmetros exigidos: não são jovens e frequentemente não bonitas. E o que é mais espantoso é que esta atitude não se encontra apenas nas pessoas comuns mas, o que é muito mais grave, encontra-se disseminada mesmo entre os jornalistas e outros profissionais de televisão.
Quando olhamos para um grupo de políticos reunidos num qualquer parlamento vemos homens de meia-idade ou até de terceira idade, pançudos, carecas e normalmente pouco atraentes fisicamente, mas ninguém parece reparar e não se estranha porque de facto eles não foram eleitos pelos seus atractivos físicos, mas pela sua pressuposta inteligência e competência. Todavia, parece que se julga, diversamente, a inteligências das mulheres pela sua figura, fisionomia e juventude; mais uma vez nos encontramos perante um duplo padrão de conduta que lesa gravemente os interesses das mulheres, sujeitas a uma crítica implacável e a uma sátira corrosiva independentemente das competências que revelem. A mulher que se candidata a um cargo político não está a pretender fazer carreira como estrela cinematográfica; por isso, se é gorda ou magra, jovem ou menos jovem, esses atributos são, no caso, irrelevantes. Mencionar os atributos físicos de uma candidata é assim mais uma prova de que continuamos a viver em sociedades sexistas que discriminam pessoas com base no sexo.
Que tal começar a aplicar as mesmas exigências a candidatos masculinos e esperar para ver?!

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

A inveja do pénis e o destino das mulheres


Freud, malgrado toda a genialidade que temos de lhe reconhecer, era um homem do seu tempo, nascido e educado na era vitoriana, e um oponente determinado da emancipação das mulheres.
Uma das suas teorias,amplamente divulgada, foi a teoria da inveja do pénis, segundo a qual as meninas, ao constatarem a inferioridade do seu aparelho sexual, passavam a alimentar o sentimento de inveja do órgão sexual masculino. Essa inveja só seria ultrapassada através de um mecanismo compensatório que implicava necessariamente o casamento e a maternidade, com o nascimento de um filho.
Esta teoria explicava assim por que o casamento era tão necessário para as mulheres e o que era ainda mais importante, permitia atribuir o estatuto de anormalidade àquelas que se atrevessem a desdenhá-lo e perseguissem um estilo de vida que lhes garantisse independência e autonomia. A inveja do pénis servia para apresentar as reivindicações das mulheres como um comportamento profundamente desajustado, como uma resposta ressentida ao seu status, naturalmente inferior ao dos homens:

“Aceitar a inveja do pénis como inevitável já era suficientemente mau para uma mulher. Não a aceitar era pior. Se tentasse compensar a falta desse órgão, imitando a vida ou as ambições de um homem, então ela ficaria refém de uma «masculinidade complexa», condenada a uma vida de imaturidade sexual e de frustração.»

Não se queria entender, melhor, não convinha entender, que não era o pénis que as mulheres invejavam, mas sim os privilégios que este simbolicamente representava; desse modo, a teoria freudiana correspondeu, no domínio sexual, á reacção conservadora que mais generalizadamente atingia a sociedade .

Claro que a teoria da inveja do pénis era uma fantasia interessante, mas uma fantasia, e, aplicando a metodologia psicanalítica ao próprio autor, pode-se suspeitar que serviu para aplacar angústias e temores do próprio Freud. Sabemos que muitas das pacientes por ele tratadas relatavam casos de abuso sexual na infância por progenitores masculinos, sabemos de uma história de contornos algo escabrosos para a época que envolvia o próprio pai de Freud, conhecemos a sua moralidade rígida, vestígio de educação vitoriana, e podemos também imaginar o desconforto que esses relatos e essa história haviam de produzir nele e como havia de parecer tão lógico atribuir às próprias pacientes fantasias de abusos resultantes de um inconsciente em que procuravam seduzir a figura paterna, por inveja do pénis, atribuindo de seguida aos pais, homens respeitáveis e de reputação impoluta, como Freud devia considerar, aquilo que tinham desejado inconscientemente, mas que rejeitavam ao nível da consciência. Num caso por ele analisado de uma paciente, o caso de Dora, Freud interpretou as queixas da paciente contra o pai como manifestação de um desejo incestuoso reprimido. O facto do pai de Dora a ter «cedido» sexualmente, quando ela tinha dezasseis anos, a um comerciante de meia-idade para conservar uma ligação ilícita que ele próprio mantinha com a mulher deste, é desvalorizado por Freud.

Assim se compreende mais uma vez que a razão é escrava das paixões e que o pensamento voluntarista nos faz perceber a realidade não como ela é mas como nós gostaríamos que fosse.

domingo, 21 de novembro de 2010

Ideologia e mistificação



A ideologia, enquanto representação imaginária de uma existência real, exerce frequentemente uma função mistificadora e serve interesses que se encontram camuflados. Este aspecto é facilmente demonstrável através do escrutínio da ideologia de «sacralização da maternidade». As mulheres normalmente são mães, mas apresentar a maternidade como uma função sagrada, conquanto pareça ser uma representação que favorece as mulheres, a uma análise mais atenta revela os interesses que serve. Esta ideologia foi posta a circular através dos filósofos, dos cientistas, dos romancistas e dos meios de comunicação do século XVIII, (revolução americana revolução francesa e revolução industrial) numa altura em que a mulher começou a reivindicar acesso à esfera pública, aí então convencê-la de que o seu verdadeiro papel, o mais sagrado, era o de mãe tornou-se muito conveniente para a circunscrever à esfera privada ou pelo menos para limitar o mais possível a sua incursão na esfera pública. Desde então esta ideologia, no essencial, tem-se mantido e reforçado, para limitar o poder das mulheres. Ainda hoje é a ideologia dominante, por isso se torna necessário desconstruí-la, mas está de tal modo entranhada nas mentalidades e é tão pervasiva que se torna muito difícil ter sucesso na tarefa. O mais que se pode fazer é mostrar que ser mãe e ser pai, conquanto prazeroso e gratificante, não é tudo na vida de uma pessoa e que, sobretudo, a maternidade não deve ser usada para punir as mulheres e limitar o seu leque de opções de vida.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

O conceito de sexo como posse

O sexólogo austríaco Otto Weininger (1880-1903), no livro Sex and Character, publicado em 1903, dá-nos conta do entendimento que têm da relação sexual; esta, em sua opinião e na opinião dos sexólogos da época e mesmo posteriores, pressupõe a passividade e dependência da mulher que, muito convenientemente transposta para as relações sociais entre homens e mulheres, permitirá manter as tradicionais e defendidas relações de domínio/submissão.

«A mulher não deseja ser tratada como um agente activo, ela quer permanecer sempre e em toda a parte – e é nisso que precisamente consiste a feminilidade – puramente passiva, e sentir-se ela própria na dependência da vontade de outrem; ela apenas e tão-somente quer ser desejada fisicamente e ser possuída como uma nova propriedade.»

Este conceito de sexo como posse da mulher pelo homem - obviamente sem reciprocidade – foi o prevalecente ainda no decurso do século XX; mas hoje é algo que repugna a muitas mulheres e mesmo a alguns homens; de resto, desde sempre, estou em crer que o homem apenas imaginou possuir a mulher através do acto sexual e que ela aquiesceu a entrar no «jogo», por necessidade de sobrevivência, nuns casos, e por pura conveniência pragmática, em outros.
Weininger dá todvia um passo interessante, essencializa uma situação puramente contingente e procura fornecer-lha uma base ontológica permanente: faria parte da essência da mulher amar a passividade e a submissão. Mas, como bem sabemos, só as coisas são possuíveis e mesmo estas de modo efémero; a posse de uma pessoa é uma impossibilidade porque uma vez possuída deixa de ser pessoa e é transformada num objecto, desprovido de vontade e de autonomia. O filósofo francês Jean Paul Sartre percebeu bem a questão, quando escreveu:

“O homem que quer ser amado não deseja realmente a escravização da amada … A total escravização da amada mata o amor do amante. Se a amada se transforma num autómato, o amante reencontra-se a si mesmo sozinho. Por isso, o amante não deseja possuir a amada como se possui um carro. Ele exige um tipo especial de apropriação. Ele quer possuir uma liberdade, enquanto liberdade, ele quer ser amado por uma liberdade, mas exige que esta liberdade deixe de ser livre.” (1)

Desta caracterização decorre que, segundo Sartre, o desejo sexual tem um objecto impossível porque o que ele quer possuir, aquilo que o satisfaz, assim que for possuído, deixa de existir enquanto tal: uma vontade livre, uma vez possuída, deixa de ser vontade e deixa de ser livre e aquele que ama não pode querer que tal aconteça. Mas claro que os sexólogos de serviço no século dezanove e mesmo no século XX não se aperceberam desta contradição e desse modo deram um contributo inestimável à perpetuação de uma situação que menorizava e inferiorizava as mulheres.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

O cérebro cor de rosa

A tentativa de naturalizar as diferenças entre homens e mulheres e justificar papeis e lugares sociais, de que Aristóteles foi o ilustre pioneiro e de que Darwin, mais de dois mil anos depois, foi um lídimo representante, continua na ordem do dia. Mas hoje as mulheres já estão apetrechadas com cultura humanística e científica para lhe responder. É o que faz Cordelia Fine no livro Delusions of Gender. O artigo a seguir transcrita dá disso notícia.

O cérebro cor de rosa, Por Nurit Bensusan 30/09/2010 :

Homens de Marte, mulheres de Vênus... homens são melhores em entender mapas e mulheres, em entender pessoas... homens gostam de carros e armas e mulheres, de bonecas e roupas... A lista poderia ir muito além. Preconceitos sobre gênero, embalados numa roupagem "científica" e agora, cada vez mais, "genética" ou "neurológica", estão em todos os lugares, desde conversas de bar até livros aparentemente sérios.
Cordelia Fine, uma psicóloga escritora, em seu novo livro, Delusions of Gender, mostra que essas "diferenças" de gênero não resistem a um exame mais profundo. Com toda uma parte dedicada ao neurosexismo, o livro fala sobre a sensibilidade da nossa espécie ao estereótipos de gênero e como as crianças são imediatamente, desde a mais tenra infância, saturadas com informações sobre a divisão social de gênero, a mais importante na nossa sociedade.
Numa entrevista muito interessante
( http://blogs.plos.org/neuroanthropology/2010/09/28/cordelia-fine-and-delusions-of-gender/), a autora diz que há muito mais interesse em achar diferenças no "hardware", ou seja no cérebro, do que em reconhecer que as diferenças são resultados da nossa sociedade. Assim, ficamos com a impressão que a situação que vivemos é natural, desejável e inevitável. Não é o que Cordelia acha...
O neurosexismo e o determinismo genético contribuem para manter tudo como está, forçando um conforto que na realidade não existe. Como se não houvesse mais o que fazer... se as diferenças estão nos cérebros, só nos restaria, aceitá-las. Mas, como questiona o livro, será que é realmente assim?
URL:: http://blogs.plos.org/neuroanthropology/2010/09/28/cordelia-fine-and-delusions-of-gender/

domingo, 7 de novembro de 2010

Mulheres e dissonância cognitiva


Nós, mulheres, dado que somos forçadas a interiorizar um quadro de valores que frequentemente colide com as nossas necessidade vitais, somos presa fácil de um curioso fenómeno psicológico que se designa de dissonância cognitiva
A teoria da dissonância cognitiva foi desenvolvida na década de cinquenta do século passado; é uma teoria contra-intuitiva porque pressupõe que as nossas acções modificam as nossas crenças quando é costume admitirmos exactamente a situação contrária: julgamos que são as nossas crenças que estão na origem das nossas acções.

Os seres humanos manifestam uma constante necessidade de racionalizar e é essa necessidade que a teoria da dissonância cognitiva explica. Ela baseia-se em três pressupostos:

1. Os seres humanos são sensíveis às inconsistências entre acção e crença. Há inconsistência sempre que eu faço qualquer coisa que entra em contradição com um princípio em que acredito. Se eu acredito que uma mulher deve ter independência económica, mas caso e decido ficar no lar tratando do marido e filhos surge aqui uma contradição entre a minha crença e o meu comportamento.

2. O reconhecimento da inconsistência cria dissonância, que se caracteriza por um sentimento de desconforto, e motiva a resolvê-la.

3. A dissonância pode ser resolvida de três maneiras:
a. Mudo a crença
b. Mudo a acção
c. Mudo a percepção da acção

Partamos do exemplo citado:
(1) Posso tentar mudar a crença, convencendo-me que há valores mais altos do que a autonomia, adoptando outra crença, a crença que a mulher é por natureza um ser dependente que precisa da protecção do homem. Foi e é assim que muitas mulheres reagem e são ajudadas pelo condicionamento cultural a rejeitarem a crença de que a autonomia é um valor tão importante para uma mulher como para um homem.

(2) Posso mudar a acção: caso, mas estipulo bem que quero prosseguir uma carreira profissional. Também este caminho é seguido hoje por muitas mulheres.

(3) Ou posso mudar a minha percepção da acção: afinal fui eu que optei por ficar em casa, a decisão é minha e essa situação não vai limitar a minha capacidade de autonomia. A isto chama-se racionalizar a acção e frequentemente é uma forma de nos auto-mistificarmos.

Por isso convém estarmos atentas sempre que surge uma situação de dissonância cognitiva e tentar lidar com ela da forma mais inteligente.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Feminismo não é o contrário de machismo


É frequente encontrarmos comentários pouco abonatórios acerca do feminismo que supõem o princípio mais ou menos explícito de que o feminismo é o contrário de machismo e de que igualdade é o mesmo que identidade.
Ora esta confusão baseia-se num equívoco alimentado normalmente por quem se opõe ao feminismo. Senão vejamos. O machismo supõe a superioridade de um sexo sobre o outro, o feminismo supõe a igualdade entre os sexos. Igualdade não quer dizer identidade, há diferenças entre os sexos, mas essas diferenças não podem ser usadas para os separar em termos de hierarquia, de inferioridade de um em relação ao outro. E consequentemente é preciso garantir que os dois gozam dos direitos que são considerados inalienáveis da pessoa humana, dos quais a liberdade e a realização pessoal são fundamentais. O feminismo é basicamente a afirmação de que as mulheres são pessoas e têm os direitos que as sociedades reconhecem às pessoas, tratando-se assim de uma questão de elementar justiça.
Ser livre implica a capacidade para controlar a própria vida, tanto quanto possível, e qualquer entrave artificial a esse controlo é uma limitação iníqua dessa liberdade. Por isso é que o feminismo defende que as mulheres não podem ser discriminadas pelo facto de serem mulheres. O acesso à educação, ao exercício de diferentes profissões não lhes pode ser vedado, como foi durante tanto tempo, com o argumento de que são diferentes.
Liberdade e autonomia andam a par, ora como a autonomia supõe que a mulher não seja dependente economicamente do homem, as feministas incutem nas mulheres a ideia de que devem ter uma profissão, ganhar o seu próprio dinheiro, para puderem decidir acerca das suas próprias vidas. Ficar em casa a tratar do marido e dos filhos pode ser uma opção mas é bom não esquecer que vai ter consequências, e estas podem ser desastrosas para a liberdade e autonomia da mulher que seguir esse caminho.
E está na altura das mulheres exigirem dos seus companheiros apoio efectivo nas tarefas que visam o bem comum da família e de exigir que o Estado cumpra a sua quota parte no apoio à vida familiar. E não me venham com a ideia lamecha e muito conveniente para quem quer continuar a limitar as mulheres de que as crianças ficam melhor em casa com a mãe pois para aprender e socializar-se é muito mais rico o ambiente de um bom infantário ou jardim de infância do que o ambiente familiar muito mais pobre em estímulos. Claro que seria bom que os pais, tanto a mãe como o pai, estivessem mais disponíveis para a vida familiar, mas isso tem de ser conseguido com uma regulação diferente do mundo do trabalho e não às custas da mulher, pretendendo que, mais uma vez, seja ela a sacrificar-se. È tempo para dizer basta aos sacrifícios unilaterais, sacrifícios tem de ser partilhados, tarefas tem de ser partilhadas, o resto é demagogia.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Mulheres são escravas naturais?!

Aristóteles disse: «(a escravatura) é a condição de todos aqueles cuja função é mero serviço físico e que são incapazes de outra coisa melhor; esses são escravos naturais.»

No século XIX, havia um entendimento bastante amplo de que a função da mulher se reduzia à preservação da espécie e à criação dos filhos e cuidados com o lar; era esse entendimento que justificava que lhe fosse completamente vedado o acesso à participação na vida política, esta, dizia-se, não era a sua esfera - nem Deus nem a natureza a tinham capacitado para essas funções.
Não é necessária grande reflexão para se perceber que deste modo se transformavam as mulheres em autênticas servas domésticas, escravas naturais, como diria Aristóteles. Pessoas apenas capazes de serviço físico, serviço físico para preservar a espécie e serviço físico para prestar os concomitantes cuidados. Participar na vida pública, contribuir para a tomada de decisões que interessavam à sociedade, desenvolver-se enquanto ser livre e autónomo, isso estava completamente fora de cogitação
Em troca do serviço prestado, as mulheres recebiam comida, vestuário, abrigo e protecção, tal como os escravos. É certo que umas viviam em gaiolas douradas, outras em casebres, mas o estatuto não se alterava significativamente. Num caso ou no outro, não podiam abandonar os seus senhores – não podiam abandonar o domicílio conjugal nem requerer divórcio, esse direito era restringido aos maridos; os filhos que geravam eram propriedade dos maridos; não tinham o direito de propriedade nem mesmo sobre os bens que traziam para o casamento e se trabalhassem fora de casa, o salário pertencia ao marido que o podia administrar a seu bel-prazer. E isto ocorria não faz assim tanto tempo!
Hoje, em muitos países, as coisas são diferentes, mas mesmo assim ainda há mulheres que abdicam da sua participação na vida social e política para se colocarem na dependência dos maridos, esquecendo que afinal estão a seguir um padrão antiquíssimo que implica um enorme risco: o risco de sacrificarem a sua liberdade e de comprometerem a sua autonomia.
Claro que a escravatura das mulheres, pelo menos em tempos mais recentes, era atenuada por um tratamento mais humano do que aquele que normalmente era dispensado aos escravos tradicionais, mas isso não modifica substancialmente a situação e o facto desta não ser reconhecida como escravatura também não a altera, porque, realmente, que outro nome podemos dar a pessoas que não gozavam nem de direitos civis nem de direitos políticos e às quais era exigida subserviência e submissão?

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Sexismo, racismo e democracia – convivência improvável? Ou nem tanto assim!

Vem esta questão a propósito de Belford Bax (1854-1926), jornalista e socialista britânico, defensor das oprimidas classes trabalhadoras, paladino da democracia e, simultaneamente, antagonista enérgico do sufrágio feminino e da mistura racial.

Para compatibilizar o seu «amor» pela democracia com a rejeição do reconhecimento de direitos políticos às mulheres, Bax fundamentava-se em causas orgânicas, isto é, biológicas, não em causas sociais. Para ilustrar essas causas dava como exemplo, as crianças, que não têm acesso ao exercício de certos direitos precisamente por causas orgânicas, no caso, falta de maturidade biológica, mas também referia que, se na sociedade houvesse pessoas de uma raça considerada inferior, deveria ser-lhes vedado o mesmo direito com base nas mesmas causas e isso não interferia com a natureza democrática do regime. E, acrescenta, «a razão é óbvia – as raças inferiores estão em relação às superiores no mesmo nível que estão as crianças em relação aos adultos». Nesse sentido, para acautelar os interesses da sociedade, Bax preconizava uma espécie de regime de apartheid: «a verdadeira solução é que a raça organicamente inferior deve ser entregue a si mesma para resolver o seu próprio destino social»

Bax considera que excluir elementos organicamente inferiores ou organicamente diferentes da participação na vida política não elimina a natureza democrática do regime político pois que entidades tão diferentes como brancos e negros ou mulheres e homens não permitem que se fale em igualdade. Mesmo assim, em relação aos negros norte-americanos ainda defende uma ideia algo bizarra: nos estados do Norte seriam excluídos da participação, mas nos estados do Sul, onde constituíam a maioria, seriam os brancos os excluídos. E com esta ideia «tão liberal» e «revolucionária» pretende demonstrar quão democrático é e como aprecia a democracia. Já em relação as mulheres, sendo as condições diferentes, não considera qualquer alternativa, como veremos a seguir.

Bax começa por referir que lhe parece correcto, a fim de garantir o bem geral da sociedade, que sejam colocadas restrições às camadas sociais organicamente inferiores: «Penso que é claro, portanto que temos justificação para impedir qualquer tipo de pessoas do direito de voto, se elas, como classe, indiciarem uma inferioridade, baseada numa diferença orgânica, que é provável que torne a sua cooperação na vida política ou administrativa num perigo ou numa desvantagem para a comunidade no seu todo.» Isto para concluir que no caso de se provar que as mulheres têm uma diferença orgânica que as inferioriza em relação aos homens, devem ser impedidas de votar. E a tarefa que vai empreender é a de aduzir argumentos para mostrar que de facto há razões para se supor que as mulheres são inferiores aos homens, pelo menos em aspectos importantes.

Começa por citar os trabalhos de Cesare Lombroso, um cientista da época, hoje completamente desacreditado, para mostrar as diferenças ao nível do tamanho do cérebro que apontariam no sentido de uma menor capacidade intelectual.

Num outro registo, aponta a inexistência de mulheres que se tenham salientado nos domínios das mais altas criações do espírito humano: filosofia, ciências, invenções, etc. e, embora responda às objecções das feministas que apontavam a opressão e falta de oportunidade das mulheres, ele refere domínios da literatura em que se poderiam ter salientado mas em que também nada realizaram de importante, esquecendo que nesses domínios muitas mulheres escritoras dos séculos anteriores tiveram de publicar os livros sob pseudónimos masculinos o que prova bem como era difícil dedicarem-se a um mester aparentemente tão inofensivo.

Uma outra prova da inferioridade das mulheres seria a sua tendência para a histeria, um estado de excitação mental e emocional que logicamente não lhes permitiria o discernimento necessário para lidar com as questões políticas. Esquece mais uma vez que as perturbações histéricas, detectadas muito mais em mulheres do que em homens, na época, eram meros sintomas precisamente da situação de repressão de desejos e de necessidades que as mulheres vivenciavam. Hoje, por exemplo, deixamos completamente de ouvir falar, a sério, em tal tipo de perturbações histéricas.

Bax, ainda argumenta que as mulheres não têm sentido de justiça - o que viciaria o seu carácter moral - que decorreria da sua incapacidade para atingirem princípios abstractos e gerais: «Elas preocupam-se não com princípios mas com pessoas; elas odeiam e amam, não causas, mas homens.»

Por último, um receio, porventura o fundamento mais forte do seu antagonismo em relação ao sufrágio feminino: sendo as mulheres o que são, ou pelo menos o que ele pensa que são e que julgou ter provado com a variedade e força dos argumentos apresentados, há um argumento final que deveria desencorajar a concessão do voto às mulheres: se as mulheres puderem votar e se se unirem elas poderão derrotar o voto masculino porque são a maioria da população e as consequências obviamente só podem ser calamitosas: conceder o voto às mulheres significaria a sujeição de todo o sexo masculino.

domingo, 17 de outubro de 2010

Dona de casa - profissão em vias de extinção?


Em vez de assestarem baterias contra os remanescentes das estruturas patriarcais que, apesar de todos os desenvolvimentos, ainda subsistem, as anti-feministas contemporâneas culpabilizam as feministas e o feminismo por terem incentivado as mulheres a prosseguirem carreiras profissionais que, dizem, se revelam desgastantes, e defendem que as mulheres se devem centrar nos seus papéis tradicionais.
Em vez de lutarem pela humanização do mercado e das condições de trabalho e pelo empenhamento dos homens na partilha equitativa das tarefas domésticas, em vez de exigirem apoio estatal a creches e a jardins de infância de qualidade, contestam todas as medidas propostas pelas feministas neste sentido. Hasteando o fantasma do colectivismo na educação das crianças, consideram negligentes as mães que têm crianças pequenas mas entendem prosseguir as suas carreiras.
Afirmam que, bem no fundo, o que as mulheres querem é criar os seus filhos e cuidar dos seus maridos e que isso as realiza, continuando assim a defender a tese de que a essência da mulher é ser mãe e esposa e que as feministas fizeram um mau serviço ao sexo feminino ao inculcarem nas mulheres a ideia de que tal projecto não preenche as suas vidas.
Claro que encontram receptividade por parte de muitas mulheres que têm profissões mal remuneradas e ainda por cima arcam com as tarefas domésticas naquilo que ficou consignado como dupla jornada de trabalho. Além disso, as anti-feministas contemporâneas cooptaram a linguagem do feminismo e acenam-lhes com os conceitos de liberdade e de escolha, tentando fazer passar a ideia de que uma mulher pode escolher entre a carreira profissional e a vida doméstica e a segunda escolha é tão ou mesmo mais digna e enriquecedora do que a primeira. Mas aqui está a escamotear-se um aspecto fundamental e é o de que, para além do prazer que podemos tirar do trabalho dito socialmente produtivo em termos de relações interpessoais e de abertura de outros horizontes, o trabalho remunerado dá à mulher capacidade de independência e de autonomia e não a prende irremediavelmente a uma situação que pode vir a querer alterar. Conheço algumas mulheres que optaram por ficar em casa, apesar de capacitadas com títulos universitários e que vieram a descobrir mais tarde, com os filhos criados e os maridos «esfriados» e à procura de companhias mais estimulantes, que afinal fizeram a aposta errada. Só que então se torna difícil e em alguns casos impossível retomar uma vida que abandonaram à partida.
Hoje, mesmo a vida familiar heterossexual alterou-se profundamente, os casais decidem ter normalmente um ou dois filhos, e a frequência do infantário começa cedo com benefícios para as crianças. Constata-se ainda que as escolinhas são normalmente muito atractivas para as crianças que aprendem e brincam com outras num ambiente muito mais estimulante do que aquele que encontram em casa. Por outro lado, as tarefas domésticas ocupam um número reduzido de horas não tendo qualquer comparação com o que se passava há algumas décadas atrás. Por tudo isto, as pretensões das anti-feministas revelam-se completamente deslocadas e só poderiam fazer algum sentido se o relógio da história andasse para trás como elas gostariam que acontecesse.

P.S. Quando falo em anti-feministas não se pense que estou a invocar uma entidade abstracta, elas andam por aí bem activas, a título de exemplo, conheçam Danielle Crittenden e Wendy Shalit que fizeram carreiras profissionais prósperas e lucrativas a aconselharem as mulheres a desistirem das carreiras.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Mulheres e capacidade política

Vem este texto a propósito do ataque empreendido, não só pelas pessoas comuns, mas também por cientistas, intelectuais e filósofos, contra a reivindicação do sufrágio para as mulheres. Um dos argumentos utilizados invocava a manifesta falta de capacidade das mulheres para os assuntos políticos. David Ritchie, na época, denuncia brilhantemente a hipocrisia do argumento e a falácia circular em que repousava:

“É hipócrita negar a capacidade política das mulheres simplesmente porque a sua incapacidade política foi diligentemente cultivada através dos séculos, mas este é sempre o tipo de argumento favorito dos campeões do privilégio: primeiro para impedir uma raça, classe ou sexo de adquirir uma capacidade e depois para justificar a recusa de direitos com base nessa ausência de capacidade – encerrar um pássaro numa gaiola apertada e depois argumentar que ele é mantido nela porque é incapaz de voar.”

David G. Ritchie, Darwinism and Politics, 1890.

sábado, 9 de outubro de 2010

Auguste Comte - intelectuais progressistas e misoginia

Augusto Comte (1798 - 1857), o fundador do Positivismo e da Sociologia, um dos mais prestigiados intelectuais do século XIX, também não mostrou grande apreço pelas mulheres e pela justeza das suas reivindicações, embora tenha sido mais ambivalente e ambíguo em relação ao assunto do que Proudhon, como se pode constatar pelas atitudes variáveis e contraditórias que assumiu ao longo davida.

Comte considerava essenciais as diferenças entre homens e mulheres, mas vacilou entre a valorização dessas diferenças e um outra entendimento que implicava inferiorização. Segundo Mary Pickering, essas mudanças de opinião “reflectem, por um lado, o seu próprio relacionamento com a esposa e outras mulheres … ; por outro, apontam para tensões no culto da domesticidade do século XIX. Tais inconsistências de pensamento, particularmente no que respeita à representação das mulheres, revelam um foco de contestação na cultura em geral.”*

Comte oscilou entre uma atitude de devoção e de enlevo em relação as mulheres, que revelou quando jovem adulto, influenciado por Olympes de Gouges autora da Déclaration des Droits de la Femme (1791) e por Condorcet, o único filósofo que aberta e declaradamente assumiu posição a favor dos direitos da mulher. Nessa época da sua vida, considerou as mulheres vítimas da opressão masculina e do abuso de poder do mais forte, reduzidas, quando pobres, à opção entre vender o próprio corpo ou trabalhar nas profissões mais mal pagas. Chegou mesmo a condenar o Código Napoleónico por legalizar o sistema patriarcal e negar direitos de cidadania às mulheres. Mais tarde, no fim da vida parece ter reassumido esta postura.

Em consonância com as ideias que perfilhava na juventude, casou, contra a vontade dos pais, com uma mulher inteligente e determinada, Caroline Massin, filha ilegítima de dois actores, mas em breve mostrou que na prática não conseguia aceitar as implicações da igualdade, defendidas em teoria, de modo que, para ultrapassar aquilo que hoje designamos de dissonância cognitiva, acabou modificando a teoria.
Numa carta a um amigo, exprime a opinião de que homens de mérito deviam casar com donas de casa, intelectualmente medíocres, mas com um carácter obediente, condições que considera indispensáveis para assegurarem a felicidade no matrimónio; estas advertências parecem revelar que o casamento com Caroline não corria bem e que Comte atribuía tal facto ao carácter forte e determinado da esposa, insubmissa e «controladora».

Comte ainda lamentou e criticou as mulheres independentes que revelavam, em sua opinião, moralidade duvidosa e escassos hábitos domésticos e até mesmo tendências para o ateísmo. Quer dizer o criador do positivismo e defensor da independência de pensamento achava que tais atitudes nas mulheres eram muito inconvenientes e em paralelo promoveu o ideal da mulher como um anjo, submissa, generosa e sempre pronta a sacrificar-se pela família e a suportar o seu «homem», na qual a inteligência e o conhecimento eram qualidades irrelevantes ou até mesmo nocivas.

Paralelamente ao anti-feminismo, Comte reagiu contra o liberalismo na convicção de que esta corrente política implicaria o individualismo e, por uma lógica interna, a própria emancipação das mulheres. Desse modo, enfatizava que a igualdade sexual e o individualismo acabariam por minar a família que considerava ser o fundamento da vida social.

Com estas posições nitidamente conservadoras e apostadas na manutenção do statu quo, Comte foi mais um intelectual de esquerda a defender arranjos sociais que implicavam que a mulher mantivesse o seu ancestral estatuto de apêndice e subsidiária do homem.

*Mary Pickering, Angels and Demons in the Moral Vision of Auguste Comte, in Journal of Women's History. Volume: 8. Issue: 2. 1996, p. 10

domingo, 3 de outubro de 2010

Proudhon - Intelectuais progressistas e misoginia

“A tradição de todas as gerações mortas sobrecarrega como um pesadelo o cérebro dos vivos” (Karl Marx)

Esta observação de Marx vale para intelectuais politicamente progressistas, mas socialmente conservadores, com horizontes tacanhos no que as mulheres diz respeito e aplica-se como uma luva a homens considerados na época tais como Pierre Joseph Proudhon (1809-1875).
Proudhon, o fundador do anarquismo francês, expôs com minúcia e sem qualquer rebuço ideias profundamente reaccionárias em relação as mulheres, mesmo se levarmos em conta as coordenadas da época.
As mulheres, dizia, eram fisicamente inferiores aos homens e sexualmente passivas. Os seus atributos físicos, ancas largas e seios volumosos, predestinavam-nas para a tarefa da procriação que seria definidora da sua identidade e função social. O cérebro menos volumoso demonstraria inferioridade intelectual; por isso, tudo apontava para a necessidade de protecção e, consequentemente, de obediência ao homem: “ O génio “é virilidade” de espírito acompanhada de poder de abstracção, generalização, criatividade e capacidade de formar conceitos; a criança, o eunuco e a mulher são carentes destes dotes em igual medida.”

Segundo Proudhon, o papel da mulher esgota-se na função reprodutiva, ela é o instrumento de que a natureza se serve para preservar a espécie; socialmente a sua responsabilidade é cuidar da saúde e do bem estar das crianças e essa é a razão de ser da sua existência, o homem tem de se sacrificar para a manter e fá-lo apenas para assegurar essa função que ela deve cumprir.

Para qualquer mulher apenas se apresentam duas opções: ou mãe ou prostituta: “Qualquer mulher que sonha com a emancipação perdeu por esse facto a saúde da sua alma, a lucidez do seu intelecto, a virgindade do seu coração.”
Assim Proudhon reconhece ao marido o direito de matar a esposa em determinadas circunstâncias que podiam incluir adultério, impudência, traição, alcoolismo ou devassidão, gastos perdulários, furto e persistente insubordinação.” Como se vê um leque de tal modo amplo que parece dar carta branca ao marido para dispor a seu bel prazer da vida da esposa.
Àqueles que defendiam os direitos das mulheres, Proudhon chamava “eunucos literários” e dizia que: “as consequências inevitáveis (da emancipação das mulheres) são o amor livre, a condenação do casamento e da feminilidade, inveja e ódio secreto aos homens e, para coroar o sistema, inextinguível lascívia: tal é invariavelmente a filosofia da emancipação da mulher.”

Estas observações foram proferidas por alguém que aprendemos a estimar a partir dos bancos da escola como um benfeitor da humanidade, só se esqueceram de nos dizer que nós, mulheres, não estávamos incluídas nessa humanidade!!

domingo, 26 de setembro de 2010

Ruth Whitney Lyman - quem são as anti-sufragistas

Ruth Whitney Lyman escreveu um ensaio sobre o ideal anti-sufragista mas, muito de acordo com os princípios que defende, decidiu apagar-se como pessoa, pois assina como Mrs. Herbert Lyman, autenticamente um apêndice do sr. Herbert Lyman, seu esposo. Vejamos o que nos diz acerca das diferenças entre as sufragistas e as anti-sufragistas:

“A diferença fundamental é esta: as sufragistas (como os socialistas) insistem em considerar o indivíduo como a unidade da sociedade enquanto as anti-sufragistas insistem em que esta é a família. O individualismo é o que é importante para as sufragistas, para as anti-sufragistas é a solidez das relações familiares. O sufragismo está baseado na consciência de sexo do indivíduo e no antagonismo entre os sexos, o que conduz à afirmação de que a mulher pode apenas ser representada por ela própria e que as mulheres neste momento são uma classe não representada. Mas de facto as mulheres não são uma classe, mas um sexo, perfeitamente distribuído pelas várias classes sociais.
O anti-sufragismo está fundado na concepção da cooperação entre os sexos. Homens e mulheres devem ser considerados como sócios, não competidores, e a família a ser preservada como uma unidade, deve ser representada como tendo uma cabeça política. O homem da família deve ser quem representa, porque o governo é primariamente para garantir a protecção da vida e da propriedade e repousa na força política da maioria que deve ser capaz de, em caso de necessidade, forçar as minorias a obedecer à sua vontade. Esta é a única base na qual uma democracia pode perdurar.” (Mrs Herbert Lyman: The Anti-suffrage Ideal, in Ernest Bernbaum; Anti-suffrage Essays, p. 119)

Como se pode constatar a tónica é colocada entre o indivíduo e a família, entre o individualismo e a «solidez das relações familiares. As anti-sufragistas valorizam sempre a família, mesmo quando esta implica o sacrifício do indivíduo mulher, porque o homem, na relação familiar, não é minimamente beliscado enquanto indivíduo.
Para que o homem mantenha, na família, o status de individuo autónomo que sempre tem tido, é preciso que a mulher se anule como pessoa, porque uma pessoa - e aqui estou a seguir Kant - é um fim em si mesmo e não um meio ao serviço de um qualquer outro fim. Só numa união familiar que respeite os indivíduos é que a personalidade ética de mulheres e de homens se encontra assegurada, mesmo que isso represente compromissos e abdicações de parte a parte.

Para as anti-sufragistas as mulheres não são uma classe e por isso não há necessidade de que tenham representação política e desse modo consideram que um regime não deixaria de ser democrático por esse facto; mas temos de ver o que caracteriza uma classe e se entendermos que essa caracterização implica a existência de interesses comuns que têm de ser acautelados, então as mulheres constituem, pelo menos por enquanto, uma classe, embora, dados os condicionalismos da sua existência, uma classe que se encontra fragmentada por outras classes sociais e por isso é que a luta tem sido tão difícil.
As anti-sufragistas acusam as sufragistas de estabelecerem uma relação de hostilidade com os homens, o que em parte é falso e em parte é mistificador. Antes de mais, muitas sufragistas, por exemplo, mantiveram casamentos sólidos e felizes, embora algumas tenham reescrito os votos de casamento para anularem as tradicionais cláusulas da obediência feminina. Por outro, a hostilidade surge sobretudo por parte de alguns homens que entendem não dever abdicar do seu estatuto de superioridade. Portanto há aqui um equívoco, não são as sufragistas que são hostis, são alguns, muitos homens, que são hostis a mulheres que exigem o que eles não reconhecem como direitos.
As anti-sufragistas defendem não apenas a família mas sobretudo a família patriarcal, na qual a figura do chefe de família permite a eliminação do voto para as mulheres pois obviamente se elas votassem apenas iriam duplicar o voto masculino. Entendem que o destino da mulher é casar, a «solteirona» é percebida como uma aberração da natureza. Além de que, se num governo é preciso força para fazer cumprir as leis e se só o homem é forte só ele deve governar, mas isto é esquecer a diferença que há entre força e direito e sem essa diferença nem precisávamos de ter evoluído para as formas modernas de governação, ainda devíamos estar na idade da pedra lascada e recorrer apenas ao cacete para dirimir os conflitos.
Mas se aceitarmos que as mulheres são pessoas, então elas, porque são pessoas diferentes dos homens em alguns aspectos, devem estar igualmente representadas nos órgãos de legislação e de decisão política e, por isso, o voto e a participação em cargos políticos são aspectos essenciais, contrariamente ao que pensam as anti-sufragistas.

Resumindo: (1) as anti-sufragistas não reconhecem que as mulheres são pessoas e consequentemente (2) não consideram necessário que elas tenham voz na governação do país; afirmam ainda (3) que elas não constituem uma classe e, por isso, o facto de não estarem representadas politicamente não retira democraticidade a um regime político.

Se você não se considera uma pessoa, então esteja à vontade, alinhe com as anti-feministas de hoje que são as lídimas representantes das anti-sufragistas de ontem.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

As quatro magníficas

A Suiça atingiu um marco histórico com a eleição de Simonetta Sommaruga para um governo no qual dos setes ministérios quatro são desempenhados por mulheres. Tal aconteceu apenas quarenta anos depois de ter sido concedido o direito de voto às mulheres suiças (1971), o que, comparativamente com outros países, merece ser assinalado. Mas não nos deixemos deslumbrar, no parlamento suíço a representação das mulheres não excede os trinta por cento e o mundo dos negócios continua a ser avassaladoramente dominado por homens.
Uma nota positiva: Simonetta Sommaruga já se pronuciou a favor de medidas que não permitam a discriminação de minorias, sejam religiosas, etnicas, culturais ou quaisquer outras.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Josephine Marshall Dodge - Quem eram as anti-sufragistas

Josephine Marshall Dodge (1855-1928) nasceu numa família ilustre, descendente directa dos primeiros colonizadores – brancos, de ascendência anglo-saxónica e protestantes – o pai era um industrial próspero, proprietário de manufacturas de couros, além de político influente.
Depois de uma infância e adolescência felizes e da frequência de escolas de elite, Josephine casou em 1875 com Arthur Dodge, também pertencente a uma família com pergaminhos, dinheiro e influência política. Estabeleceram residência em Nova Iorque e tiveram seis filhos.
Em 1896, Arthur morreu com apenas 43 anos e Josephine, continuando a tradição filantrópica do marido, fundou uma instituição de caridade que cuidava de crianças de mães trabalhadoras.
Em 1899 testemunhou no Alabama contra uma lei de sufrágio feminino limitado e em 1911 fundou a National Association Opposed to Woman Suffrage e tornou-se a sua primeira presidente. Foi também Editora do Woman´s Protest no qual publicou vários artigos em que justificava a oposição ao sufrágio feminino: considerava que o voto para as mulheres era desnecessário pois já possuíam direitos civis reconhecidos pelos diferentes Estados, já havia leis de protecção ao trabalho infantil e o salário mínimo para as mulheres estava acautelado.
A fundação da National Association Opposed to Woman Suffrage revelou-se muito útil para quem se opunha ao sufrágio feminino pois dava aos legisladores um argumento forte: as mulheres estavam divididas, umas queriam o voto, outras não, logo não havia motivo para ele ser concedido, pois tanto peso teriam as que o reivindicavam como aquelas que se lhe opunham.
Em 1917, Josephine deixou o cargo de Presidente da Associação que passou a ser ocupado pela esposa de um senador ferozmente anti-sufragista e remeteu-se para o lugar, menos visível, de vice-presidente.

domingo, 19 de setembro de 2010

Molly Elliot Seawell - quem eram as anti-sufragistas

Molly Elliot Seawell (1860-1916) nasceu em Gloucester, Virgínia, numa família de ilustre linhagem, descendente dos primeiros colonizadores. O pai, advogado e orador, era primo do Presidente John Tyler, a mãe, nativa de Baltimore, era filha do Major William Jackson que tinha combatido na guerra de 1812. Passou a infância e juventude na mansão da família, na plantação The Shelter, e ela própria relata o estilo de vida aí adoptado como sendo mais parecido com o do século XVIII. O pai, homem culto e erudito, orientou a sua educação, estimulando-a a ler livros de história, enciclopédias, Shakespeare e os poetas românticos.
Com a morte do pai, quando ela mal tinha completado os vinte anos, a família transferiu-se para Washington onde Molly iniciou a sua carreira literária, começou a publicar novelas sob pseudónimos mas também ensaios e artigos. Nunca casou e levou uma vida activa e auto-suficiente.
Embora culta, independente e senhora da sua própria vida desde muito nova, revela uma visão socialmente conservadora, mesmo reaccionária, em relação às mulheres e aos negros. Nas obras de ficção, denuncia racismo mais ou menos aberto, expresso num tom condescendente e paternalista que se revela nas descrições que faz das personagens negras.
A sua atitude em relação ao casamento é convencional, apresentado como uma espécie de destino para a mulher a que todavia ela se conseguiu eximir pois nunca casou nem teve filhos.
Sempre manifestou hostilidade em relação ao feminismo e ao voto para as mulheres, considerando que nelas a faculdade criativa está completamente ausente. Tem mesmo um ensaio a que deu o título "On the Absence of the Creative Faculty in Women"; argumentou contra a concessão de voto para as mulheres em artigos e no livro The Ladies' Battle (1911), defendendo o velho chavão de que as sufragistas odiavam os homens e de que tinham tendências socialistas e até comunistas, como vemos um velho argumento para diabolizar as feministas que ainda hoje colhe.
São dela estas palavras reveladoras do «apreço» em que tinha as mulheres:

“ Tem de reconhecer-se, como uma proposição geral, que nunca nenhuma mulher fez o que quer que seja no mundo do intelecto que tenha revelado o germe da imortalidade. Isto equivale a dizer que o poder criativo está completamente ausente na mulher.” Critic, 292

“É um facto singular que todas as mulheres cuja pretensão ao génio tem sido seriamente considerada gozaram de enorme reputação na sua época – mas é chocantemente verdade que a posteridade em nenhum caso endossou esse veredito dos contemporâneos “ p.293

«Durante milhares de anos, as mulheres cozeram pão, lavaram e costuraram neste planeta – e, mesmo assim, todos os mecanismos para aligeirar o seu trabalho foram postos nas suas mãos pelos homens … as mulheres, deixadas a si mesmas, teriam permanecido na barbárie.” 294

Como vemos, uma lídima antepassada da não menos ilustre Camille Paglia que nos nossos dias, em Sexual Personae, escreveu:” Se a civilização tivesse repousado nas mãos das mulheres, ainda estávamos a viver nas cavernas” p. 38

Mas o livro no qual de forma mais persistente ataca o sufragismo é o The Ladies' Battle utilizando argumentos constitucionais e ataques ad hominem .
Diz ela que votar não é um direito é um privilégio e, enquanto tal, deve ser concedido apenas àqueles que o merecem, no caso vertente, os homens porque são só eles que podem pela força assegurar, se necessário, o cumprimento das decisões que foram objecto de votação.
Acrescenta ainda que com o voto as mulheres perderiam o privilégio de serem sustentadas pelos homens; aqui também estamos perante um argumento que, devidamente reciclado, será retomado por Phillys Schlafly, setenta anos depois, quando empreendeu a luta contra o ERA: se as mulheres tiverem os mesmos direitos, então os homens deixam de se sentir na obrigação de as protegerem.
Os ataques ad hominem às sufragistas carreiam a velha alegação de que elas são ignorantes quanto aos problemas da governação, não percebem nada de política e estão a colocar em risco a santidade do casamento dado que o voto das mulheres pode semear a discórdia na família.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Milread Lewis Rutherford - Quem eram as anti-sufragistas

Milread Lewis Rutherford (1851- 1928) autora de vários livros sobre o Sul dos Estados Unidos, nasceu em Athens numa família patrícia próspera com uma linhagem que remontava aos primeiros colonizadores. O avô materno, um dos homens mais ricos e influentes do seu tempo, era dono de uma extensa plantação que em 1840 contava com 209 escravos, o que o tornava o maior proprietário de escravos da região.
Milread, que em 1914 integrou a Associação contra o Sufrágio Feminino da Geórgia, defendia o ideal de domesticidade que remetia as mulheres para a esfera da família e para os papeis tradicionais, mas pessoalmente desafiou completamente este padrão: nunca casou, escreveu e publicou inúmeros livros, ensinou e palestrou em locais públicos e levou uma vida activa de intervenção na esfera pública que repudiava para o seu sexo.

Em relação à questão racial, a sua atitude paternalista e a sua concepção romântica da escravatura levavam-na a afirmar que, embora os escravos tivessem sido trazidos à força de África, eram felizes nas plantações.
Com as suas ideias anti-feministas e racistas, que divulgou através de livros, panfletos e palestras, ajudou a retardar a conquista do voto para as mulheres e a pavimentar o caminho para o regime de segregação racial que vigorou nos Estados Unidos até 1964. O seu contributo no sentido de preservar as estruturas tradicionais está bem resumido nestas palavras: “Rutherford representou a tentativa do Novo Sul de conjugar modernidade com fidelidade a uma compreensão conservadora das hierarquias de raça e de género.” (Georgia Women: Their lives and Times” by Ann Short Chirhart, Betty Wood, p. 272)

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Abigail Adams - precursora feminista

Não deixa de ser curioso ter de introduzir Abigail Adams em termos dos papeis sociais de esposa e de mãe que ela desempenhou, mas, na época, século XVIII e inícios do século XIX, era virtualmente impossível sair desse padrão. Assim temos que Abigail Adams (1744-1818) foi esposa de John Adams, segundo Presidente dos Estados Unidos, e mãe do sexto presidente do mesmo país. Mas, para alem de esposa e de mãe, Abigail foi uma mulher determinada e enérgica que, com os recursos que tinha à disposição, tentou fazer a diferença e, no seu caso, a diferença consistiu em tentar influenciar o marido no sentido deste aprovar medidas legais que atenuassem a injusta situação em que as mulheres, particularmente as casadas, se encontravam.
Há uma carta dela para o marido que denuncia bem como essas injustiças a preocupavam e como tentava intervir no sentido de lhes por cobro:

“Lembre-se das Senhoras e seja mais generoso e favorável para com elas do que os que o antecederam. Não coloque um poder tão ilimitado nas mãos dos maridos. Lembre-se que todos os homens serão tiranos se puderem. Se não for dada uma atenção e cuidado particulares às senhoras, estamos determinadas a fomentar uma rebelião e não nos sentiremos limitadas por quaisquer leis para a feitura das quais não fomos ouvidas ou representadas.”
Abigail Adams, 1776 ( carta dirigida ao marido John Adams)

Alguns aspectos a salientar: Abigail tem a noção correcta de que todo o poder corrompe e que dar aos maridos tamanha autoridade sobre as esposas era legalizar o abuso. Lembremos que, na época com o casamento, a mulher deixava de ter existência legal e, por exemplo, não tinha sequer direito de propriedade sobre os bens que trazia para o casamento que passavam a pertencer ao marido.
Interessante é também a ideia de que não se pode exigir obediência a uma lei para a qual não se contribui através de representação, havendo nesse caso infracção do contrato social entre governados e governantes.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Motivações da luta contra o sufrágio - Pauline Wells e suas razões

Em 1915, tudo parecia indicar que, numa base Estado-por-Estado, o Texas seria mais um a aprovar o sufrágio feminino; as sufragistas locais estavam a realizar um bom trabalho: promoviam campanhas de rua, escreviam no mais influente jornal e, quando a Câmara Legislativa iniciou a sessão, enviaram cartas e petições aos legisladores. Havia boas expectativas de que as suas reivindicações fossem finalmente atendidas. Mas na arena política surgiu uma oponente do sufrágio que testemunhou perante a Câmara Legislativa de forma veemente e poderosa e conseguiu reverter o resultado inicialmente previsto: não se atingiu os dois terços de votos necessários para que a lei passasse. Essa mulher foi Pauline Kleiber Wells.

Pauline Kleiber Wells casou em 1880 com James B. Wells, um dos poderosos patrões políticos da região do Rio Grande Valley do Texas, uma zona de rancheiros e homens de negócios abastados que contavam com mão-de-obra constituída basicamente por hispânicos cujo voto era facilmente manipulável via paternalismo, ameaça e suborno. Claro que a estes patrões políticos que faziam e desfaziam governos não interessava que o número de votantes aumentasse, tanto mais que no caso das mulheres passaria a implicar uma constituência, aparentemente - pelo menos assim o deviam pensar - mais instável e difícil de controlar.

Pauline Wells, como outras anti-sufragistas, considerava que as mulheres eram inferiores aos homens, deixando-se governar não pela razão mas pelas emoções; portanto, não era conveniente entregar-lhe a alta responsabilidade de votar. Iriam colocar ao abrigo dos seus caprichos coisas tão importantes como decisões militares. Como não podia deixar de ser, acusava as líderes sufragistas de odiarem e invejarem os homens e de desprezarem as mulheres que se dedicavam à vida familiar e ao lar, para as quais o voto, ao invés de ser um direito, seria um fardo.
Era mais uma a assustar as mulheres com o declínio da família que o voto provocaria, semeando discórdia entre marido e esposa e levando as mulheres a terem menos filhos, o que poria em risco a raça do verdadeiro povo americano - branco, de origem anglo-saxónica e predominantemente evangélico – cuja supremacia ficaria ameaçada, um argumento que encontrava receptividade num número significativo de pessoas; não estava fora de questão, dizia-se, que o país viesse a ser dominado pelos negros.

Esta retórica alarmista escondia interesses políticos e económicos inconfessáveis. Os grandes proprietários, os comerciantes de bebidas alcoólicas, os barões da indústria e da finança e os patrões das máquinas políticas, todos viam com preocupação a concessão de voto às mulheres e aqui, independentemente de outras motivações , objectivamente, Pauline limitava-se a defender os interesses da classe a que pertencia. Quando testemunhou perante a Câmara, a sua argumentação resumiu-se à alegação de que o sufrágio feminino levaria ao «feminismo, antagonismo entre os sexos, socialismo, anarquismo e Mormonismo». Foi tão bem sucedida que, em seguida, resolveu fundar a “ Associação do Texas Oposta ao Sufrágio da Mulher (“Texas Association Opposed to Woman Suffrage”) que resistiu até 1920, altura em que a 19ª Emenda Constitucional foi aprovada.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Emily Bissell - activista social e anti-sufragista

Emily Perkins Bissell (186-1948), a segunda de quatro crianças de uma família da alta burguesia teve um pai banqueiro e investidor imobiliário e um avô materno advogado proeminente e senador; ficou conhecida como activista social e anti-sufragista.
Como acontecia frequentemente com as senhoras da elite, dedicou boa parte do seu tempo a actividades filantrópicas e dentro desse mesmo padrão revelou sempre uma mentalidade nitidamente conservadora que a levava a afirmar, entre outras coisas: “a ralé vive miseravelmente precisamente porque é ralé”, numa clara atribuição da pobreza a factores individuais, os pobres seriam pobres porque não se esforçam por sair da pobreza, porque não são empreendedores, etc. etc., descartando as responsabilidades da organização da sociedade na matéria; num outro registo, defendeu a introdução da punição por chicotadas em público, uma espécie de reconstrução dos pelourinhos medievais, só que em pleno século XX.

Enquanto activista social, Bissell envolveu-se em várias campanhas na luta contra a tuberculose que então era um verdadeiro flagelo, e o seu trabalho foi reconhecidamente meritório. Para angariar fundos, inspirada numa campanha dinamarquesa, teve a ideia , que acabou por vingar, de criar um selo que seria vendido nas estações de correio por uma importância ínfima e aposto junto dos outros selos. Foi ainda responsável pela introdução de uma lei que estabelecia o número máximo de horas de trabalho nas fábricas que podia ser exigido às trabalhadoras, uma medida de discriminação positiva que mais tarde haveria de ser invocada na luta contra o ERA (Equal Rights Amendment).

Bissell foi uma das líderes da National Association Opposed to Woman Suffrage; em 1909 esccreveu um panfleto que circulou em vários estados, «A Talk to Women on the Suffrage Question” em que se explica. Nos seus argumentos contra a concessão do voto às mulheres invoca o fardo que tal tarefa representaria bem como a discórdia que poderia provocar no seio da família. As mulheres tinham, dizia, outros meios para intervirem na vida da nação, tais como a persuasão moral, as actividades na comunidade religiosa e obviamente a filantropia - a que ela se dedicava. Um outro argumento insistia no «perigo» do sufrágio feminino que iria duplicar o voto negro e o voto emigrante, o que obviamente a devia preocupar a ela e às elites no poder.
Atenta às descobertas científicas da época muito favoráveis à causa anti-sufragista, Emily não se esqueceu de as utilizar:
“É nos animais superiores que a ciência encontra as maiores distinções entre os sexos. O homem - a mais elevada forma de vida animal - tem as mais amplas diferenças na função. É natural, é cientificamente correcto, que a mulher seja tão feminina quanto possível e o homem masculino. (…) Exigir, como o sufrágio faz, todos os direitos e deveres do homem é absurdamente anti-científico. Implicaria o retrocesso da sociedade moderna para as épocas da barbárie.” (A Talk to Women on the Suffrage Question, New York, National Association Opposed to Woman Suffrage, 1909, 3)
A ideologia presente é a de que os sexos são diferentes, os papéis são diferentes, as esferas de influência são diferentes, logo nada de permitir à mulher intervir em paralelo com o homem na vida política da nação; como a ciência o comprova, isso não será um avanço, mas um retrocesso.
É preciso dizer mais?!

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Mulheres que não têm medo

Amélia Mary Earhart, de que poucas ouvimos falar - não foi considerada personagem apropriada para televisão ou para cinema, (vá-se lá saber porquê!) - foi uma mulher que não teve medo, uma verdadeira heroína. Não teve medo de se afastar dos modelos que a sociedade de supremacia masculina prescreve para as mulheres e que a maioria aceita sem recalcitrar porque considera que só assim encontra segurança e se resguarda da violência masculina, condenando-se a uma vida mesquinha de submissão e subserviência.

Porque foi uma mulher que não teve medo não é apresentada como exemplo às jovens, os exemplos são as cantoras e as modelos que vivem vidas que não entram em conflito com os valores tradicionais - afinal a aparência, a beleza física sempre foram consideradas importantes nas mulheres - até se achava que o «belo sexo» nem se devia preocupar com outras coisas: estudos e carreiras profissionais só podiam masculinizá-las!

Amelia Mary Earhart nasceu em 1897 no Kansas e desapareceu em 1937 quando voava sobre o Oceano Pacífico. Uma vida curta, é certo, mas uma vida que fez a diferença. Foi pioneira da aviação nos Estados Unidos, escreveu livros nos quais relatou as suas experiências, organizou cursos para mulheres que queriam aprender a pilotar e defendeu os direitos das mulheres numa altura em que o voto lhes era negado.

Uma mulher de coragem que devia servir de exemplo a todas as jovens, mas cuja vida até à data tem sido silenciada. Esperemos que a história seja revertida pois tudo leva a crer que Amelia Mary Earhart vai estar brevemente representada na National Statuary Hall - uma sala no Capitólio que expõe as esculturas de americanos/as proeminentes.

domingo, 5 de setembro de 2010

O feminismo põe em risco a segurança das mulheres. Será?

Depois de ler Right Wing Women, de Andrea Dworkin, começo a perceber melhor o movimento anti-feminista e a entender as motivações que levam tantas mulheres a estarem contra os direitos das mulheres.
Dworkin procura desvelar as motivações profundas que se encontram na origem da cumplicidade das mulheres para com a sua própria opressão. Procura explicar por que é que as mulheres se sujeitam à autoridade masculina, por que é que se conformam à submissão. Nos caminhos dessa demanda encontra em primeiro lugar o medo e a necessidade, ancorada no instinto vital, de sobreviverem:

«Da casa do pai para a do marido e desta para o túmulo - que pode ainda não ser dela -, uma mulher aquiesce à autoridade masculina para conseguir alguma protecção da violência masculina. Conforma-se, com vista a obter a segurança possível»

A violência masculina é imprevisível e incontrolável, com ela o mundo surge como um lugar perigoso e caótico; as mulheres - a experiência confirma-o - têm boas razões para recear. Mas não há problema para o qual não se encontre solução e para este a direita conservadora, o que é quase um pleonasmo, fornece uma, fácil e acessível: o casamento tradicional - uma união consagrada pela religião - e um lar seguro, estável e confortável. Em simultâneo, recorre à intoxicação ideológica: os homossexuais e as feministas põem em perigo o casamento tradicional, logo a segurança das verdadeiras mulheres fica em risco; o aborto é «assassínio de crianças»; as carreiras profissionais são um acessório facilmente descartável, o verdadeiro destino da mulher é ser esposa e mãe. E com esta intoxicação ideológica se eliminam as reais possibilidades de independência e autonomia. Dworkin não tem dúvidas:

«Todo e qualquer acto de acomodação das mulheres à dominação masculina, embora aparentemente estúpido, auto-destruidor ou perigoso, encontra-se enraizado na urgente necessidade de sobreviver, por qualquer meio, em termos masculinos.»

Mas como os «termos masculinos» implicam sentimentos de frustração e desalento geradores de ódio, a direita dá às mulheres a possibilidade de descarregarem essa frustração, que inevitavelmente têm de experimentar, sobre grupos marginais específicos que funcionam como bodes expiatórios, de entre estes, as feministas - ressentidas e invejosas - transformam-se nas más da fita.

Assim fica mais fácil entender o anti-feminismo e as anti-feministas. Obrigada, Andrea Dworkin.