sexta-feira, 31 de agosto de 2012

A mulher é complementar do homem! Ouvi bem?

A futura constituição da Tunísia inclui um artigo no qual a posição da mulher é definida como complementar da do homem. Este artigo está gerar controvérsia, fruto de justificados receios.

A teoria da complementaridade entre os sexos, elaborada no século XVIII, não pressupunha o conceito de igualdade mas sim o de diferença e implicava para a mulher um estatuto limitado já que a definia em função dos interesses do núcleo familiar e esquecia “discretamente” a sua individualidade. Nessa altura, mesmo filósofos como o esclarecido Kant aceitavam o princípio estabelecido pelo costume de que as mulheres eram dependentes de pais, maridos ou irmãos, uma espécie de menores perante a lei. Mas isto foi há mais de dois seculos. Querer restabelecer esta teoria em pleno século XXI só pode ter a ver com a tentativa de fazer a história andar para trás, até porque a Tunísia foi um país que esteve na vanguarda do mundo árabe quando em 1956 aboliu a poligamia, permitiu o divórcio e o direito das raparigas à educação e estabeleceu a idade mínima para o casamento.

Associações ligadas aos direitos humanos na Tunísia exigem a eliminação deste artigo da constituição que pelos visto até teve o aval de partidos de esquerda embora tudo leve a crer dever ser o resultado da pressão exercida do partido islamita que ainda recentemente, através da sua fação mais radical exigiu que fosse retirada a nacionalidade tunisina à atleta Habiba Ghribi, medalha de prata em Londres, por ter usado o tipo de vestuário comum a todas as participantes na corrida, considerado indecente por aqueles que exigem um vestuário feminino em conformidade com as regras “do recato e da modéstia”

Estes incidentes, o mais grave dos quais parece ser a tal tentativa de introduzir o princípio da complementaridade, fazem-me mais uma vez suspeitar de que afinal a tão aplaudida primavera árabe ainda vai desembocar em rigorosa invernia.
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quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Sexo e reciprocidade em Kant

Segundo Kant, a atividade sexual humana, como a animal, é de raiz instintiva; encontra-se ao serviço da perpetuação da espécie e, a fim de que esse objetivo seja conseguido, tem de ser gratificante para o indivíduo.

Como qualquer outra atividade instintiva, é de natureza apropriativa: assim como para satisfazermos a fome ou a sede nos apropriamos de alimentos e bebidas (coisas), para satisfazermos a necessidade sexual, apropriamo-nos do sexo de outra pessoa. Mas o sexo não é dissociável da pessoa, por isso, diz Kant, quando nos apropriamos do sexo, tratamos a pessoa como se fosse uma coisa e esse comportamento, não sendo eticamente admissível, transforma a atividade sexual em algo degradante.

Admitido isto, pergunta como podemos minorar os inconvenientes dessa atividade instintiva tão forte e avassaladora e considera que só será possível legitimar a atividade sexual estipulando deveres para aqueles que se lhe entregam; deverão fazê-lo num quadro normativo expresso no contrato de casamento monogâmico: eu posso tratar o outro como um objeto de desejo a partir do momento em que o outro me possa tratar também como um objeto de desejo, isto é, só o consentimento e a reciprocidade legitimam a objetificação.

Kant desenvolveu estas considerações sobre sexo nos finais do século XVIII, ou seja há mais de dois séculos, mas, se tirarmos o invólucro do casamento monogâmico, perfeitamente descartável sem atraiçoar o principio ideológico, restam duas ideias plenas de atualidade, (1) a atividade sexual humana comporta uma dimensão ética porque, quer queiramos quer não, somos animais, mas falantes e racionais, capazes de investir significado no que fazemos e, portanto, (2) percebemos que o sexo, na medida em que implica entrar em relação com o outro, como qualquer outra atividade interpessoal, não pode ignorar os legítimos interesses do outro, isto é os seus direitos, simétricos dos nossos.

Eu acho que esta visão do sexo revela extraordinária lucidez, tão mais surpreendente quanto vem de alguém cuja experiência sexual foi escassíssima, para dizer o mínimo, e que alimentou e expressou sentimentos misóginos; apesar destas limitações óbvias, Kant, personalidade extremamente inteligente e arguta, conseguiu ver mais longe do que muitos outros e, embora nem sempre devidamente reconhecido, ficamos a dever-lhe algo importante.

Poderá dizer-se, como o fez Alan Soble, um expert na matéria, que Kant ignorou a verdadeira natureza humana, que quis preservar para o ser humano uma dignidade e um valor próprios e que quis colocar no sexo aquilo que não lhe convém nem se lhe adapta. Sexo, pretende Soble, nada tem a ver com reciprocidade nem com respeito, nem pelo outro nem sequer por si mesmo, sexo é animal e natural, ponto final, parágrafo, muda de linha. Mas Soble esquece que no ser humano tudo o que é natural é também cultural e, se assim é, não podemos descartar tão facilmente as nossas responsabilidades para com nós próprios e para com os outros.

Parafraseando Linda LeMonchek, que não queria discutir o dualismo cartesiano na cama, ninguém quer discutir reciprocidade na cama, mas não pode sentir, nem de perto nem de longe, que ela está em falta, porque, se isso acontecer, pura e simplesmente não alinha, ou não deve alinhar; ponto final, parágrafo, muda de linha.

P.S. Claro que há considerações de Kant sobre sexo com as quais não concordo, Claro que Kant revelou em vários escritos disposições nitidamente misóginas; mas os aspetos acima referidos constituem, em minha opinião, o núcleo do seu pensamento sobre esta matéria e de certo modo contém as potencialidades positivas que assinalei.

sábado, 25 de agosto de 2012

"Amor confluente" e desigualdades estruturais

Anthony Giddens (1938) é um sociólogo britânico contemporâneo que em The Transformation of Intimacy se debruça sobre o amor e a relação amorosa heterossexual. Conceitos-chave do seu trabalho são os de “amor confluente”, “relação pura” e “plasticidade sexual”.

Segundo Giddens, a erosão das tradições no mundo contemporâneo, visível sobretudo na cultura Ocidental, permitiu aos indivíduos definirem com muito maior liberdade pessoal o que querem para as suas vidas e fazerem escolhas que os definem e que constroem a sua própria identidade. Neste novo contexto, surgiu aquilo a que ele chama “amor confluente” que se carateriza pelo facto de a relação amorosa ser uma “relação pura”, isto é, uma situação em que as pessoas mantêm a relação por ela própria e não por interesses estranhos: filhos, interesses familiares ou económicos; as pessoas apenas se mantém juntas enquanto a relação se revela gratificante, enquanto ambas as partes se sentem satisfeitas e decidem permanecer juntas.

Em sua opinião, este tipo de relação exige igualdade entre as partes, ambas responsáveis pela manutenção da relação; neste tipo de relação, as preocupações com o corpo e com a exploração do prazer sexual são fundamentais. Neste aspeto, as mulheres teriam conseguido uma autêntica revolução na sua autonomia sexual procurando o seu prazer de modo não decidido pelos homens, tornada possível graças à dissociação entre prazer e procriação, e permitiu que a sexualidade fosse definida como um meio de auto realização, como uma forma de expressão e de intimidade – aquilo a que chama “plasticidade sexual”.

Giddens é otimista pois pensa que estas transformações na vivência da intimidade amorosa criam condições de igualdade entre homem e mulher e têm repercussão a nível da vida social. Quer dizer, aquilo a que ele chama amor confluente, plasticidade sexual e relação pura têm em sua opinião potencial para operar transformações a nível da vida social. Uma relação pura bem-sucedida, mesmo supondo alguma tensão entre as partes, cria condições de estabilidade psicológica e de segurança ontológica. Contra quem insiste na natureza opressiva da intimidade, Giddens insiste que esta pode operar transformações no sentido da democratização das relações pessoais, no sentido da igualdade de género.

Todavia, esta visão otimista não é corroborada por algumas feministas, como por exemplo, Christine Delphy muito cética quanto a possibilidade de se operarem modificações a nível do social e das estruturas patriarcais se se começar pela família e pela relação heterossexual. Giddens parece estar bem-intencionado, mas também parece ignorar uma das mais persistentes teses das autoras feministas, a de que a opressão tem na origem e no seu cerne estruturas opressivas e não relações individuais. Mas, se aceitarmos a existência de um movimento dialético, podemos supor que mudanças a nível das relações individuais também podem potenciar mudanças sociais.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

"Caça às bruxas"


Transcrevo, com a devida vénia, o artigo de Rosangela Angelin publicado no blog da Revista Espaço Académico:

http://espacoacademico.wordpress.com/2012/08/04/a-caca-as-bruxas-uma-interpretacao-feminista/

A “caça às bruxas é um elemento histórico da Idade Média. Entre os séculos XV e XVI o “teocentrismo” – Deus como o centro de tudo – decai dando lugar ao “antropocentrismo“, onde o ser humano passa a ocupar o centro. Assim, a arte, a ciência e a filosofia desvincularam-se cada vez mais da teologia cristã, conduzindo, com isso a uma instabilidade e descentralização do poder da Igreja. Como uma forma de reconquistar o centro das atenções e o poder perdido, a Igreja Católica instaurou os “Tribunais da Inquisição”, efetivando-se assim a “caça às bruxas“. Mas quem eram, enfim, estas mulheres que fizeram parte de um capítulo tão horrendo da história da humanidade, e por que o feminismo retoma as bruxas como um dos seus principais símbolos?

1. A “caça às bruxas”
A “caça às bruxas” durou mais de quatro séculos e ocorreu, principalmente, na Europa, iniciando-se, de fato, em1450 e tendo seu fim somente por volta de 1750, com a ascensão do Iluminismo. A “caça às bruxas” admitiu diferentes formas, dependendo das regiões em que ocorreu, porém, não perdeu sua característica principal: uma massiva campanha judicial realizada pela Igreja e pela classe dominante contra as mulheres da população rural (EHRENREICH & ENGLISH, 1984: 10). Essa campanha foi assumida, tanto pela Igreja Católica, como a Protestante e até pelo próprio Estado, tendo um significado religioso, político e sexual. Estima-se que aproximadamente 9 milhões de pessoas foram acusadas, julgadas e mortas neste período, onde mais de 80% eram mulheres, incluindo crianças e moças que haviam “herdado este mal” (MENSCHIK, 1977: 132).

1.1. Quem eram as bruxas
Ao buscarmos uma definição do termo “bruxa” em dicionários, logo pode-se perceber a direta vinculação com uma figura maléfica, feia e perigosa. Neste sentido, também os livros infanto-juvenis costumam descrever histórias onde existe uma fada boa e linda e uma bruxa má e horrível. [1]
Ao analisarmos o contexto histórico da Idade Média, vemos que bruxas eram as parteiras, as enfermeiras e as assistentes. Conheciam e entendiam sobre o emprego de plantas medicinais para curar enfermidades e epidemias nas comunidades em que viviam e, consequentemente, eram portadoras de um elevado poder social. Estas mulheres eram, muitas vezes, a única possibilidade de atendimento médico para mulheres e pessoas pobres. Elas foram por um longo período médicas sem título. Aprendiam o ofício umas com as outras e passavam esse conhecimento para suas filhas, vizinhas e amigas.
Segundo afirmam EHERENREICH & ENGLISH (1984, S. 13), as bruxas não surgiram espontaneamente, mas foram fruto de uma campanha de terror realizada pela classe dominante. Poucas dessas mulheres realmente pertenciam à bruxaria, porém, criou-se uma histeria generalizada na população, de forma que muitas das mulheres acusadas passavam a acreditar que eram mesmo bruxas e que possuíam um “pacto com o demônio”.
O estereótipo das bruxas era caracterizado, principalmente, por mulheres de aparência desagradável ou com alguma deficiência física, idosas, mentalmente perturbadas, mas também por mulheres bonitas que haviam ferido o ego de poderosos ou que despertavam desejos em padres celibatários ou homens casados.

1.2. A “caça às bruxas e o “Tribunal da Inquisição”
Com a ascensão da Igreja Católica, o patriarcado imperou, até mesmo porque Jesus era um homem. Neste contexto, tudo o que a mulher tentava realizar, por conta própria, era visto como uma imoralidade (ALAMBERT, Ano II: 7). Os costumes pagãos que adoravam deuses e deusas passaram a ser considerados uma ameaça. Em 1233, o papa Gregório IX instituiu o Tribunal Católico Romano, conhecido como “Inquisição” ou “Tribunal do Santo Ofício”, que tinha o objetivo de terminar com a heresia e com os que não praticavam o catolicismo. Em 1320 a Igreja declarou oficialmente que a bruxaria e a antiga religião dos pagãos representavam uma ameaça ao cristianismo, iniciando-se assim, lentamente, a perseguição aos hereges.
A “caça às bruxas” coincidiu com grandes mudanças sociais em curso na Europa. A nova conjuntura gerou instabilidade e descentralização no poder da Igreja. Além disso, a Europa foi assolada neste período por muitas guerras, cruzadas, pragas e revoltas camponesas, e se buscava culpados para tudo isso. Sendo assim, não foi difícil para a Igreja encontrar motivos para a perseguição das bruxas.
Para reconquistar o centro das atenções e o poder, a Igreja Católica efetivou a conhecida “caça às bruxas”. Com o apoio do Estado, criou tribunais, os chamados “Tribunais da Inquisição” ou “Tribunais do Santo Ofício”, os quais perseguiam, julgavam e condenavam todas as pessoas que representavam algum tipo de ameaça às doutrinas cristãs. As penas variavam entre a prisão temporária até a morte na fogueira. Em 1484 foi publicado pela Igreja Católica o chamado “Malleus Maleficarum”, mais conhecido como “Martelo das Bruxas”. Este livro continha uma lista de requerimentos e indícios para se condenar uma bruxa. Em uma de suas passagens, afirmava claramente, que as mulheres deveriam ser mais visadas neste processo, pois estas seriam, “naturalmente”, mais propensas às feitiçarias (MENSCHIK, 1977: 132 e EHRENREICH & ENGLISH, 1984: 13).

1. 3. Os “crimes” praticados pelas bruxas
No contexto da “caça às bruxas” havia várias acusações contra as mulheres. As vítimas eram acusadas de praticar crimes sexuais contra os homens, tendo firmado um “pacto como demônio”. Também eram culpadas por se organizarem em grupos – geralmente reuniam-se para trocar conhecimentos acerca de ervas medicinais, conversar sobre problemas comuns ou notícias. Outra acusação levantada contra elas, era de que possuíam “poderes mágicos”, os quais provocavam problemas de saúde na população, problemas espirituais e catástrofes naturais (EHRENREICH & ENGLISH, 1984: 15).
Além disso, o fato dessas mulheres usarem seus conhecimentos para a cura de doenças e epidemias ocorridas em seus povoados, acabou despertando a ira da instituição médica masculina em ascensão, que viu na Inquisição um bom método de eliminar as suas concorrentes econômicas, aliando-se a ela.

1.4. Perseguição e condenação à fogueira
Qualquer pessoa podia ser denunciada ao “Tribunal da Inquisição”. Os suspeitos, em sua grande maioria mulheres, eram presos e considerados culpados até provarem sua inocência. Geralmente, não podiam ser mortos antes de confessarem sua ligação com o demônio. Na busca de provas de culpabilidade ou a confissão do crime, eram utilizados procedimentos de tortura como: raspar os pêlos de todo o corpo em busca de marcas do diabo, que podiam ser verrugas ou sardas; perfuração da língua; imersão em água quente; tortura em rodas; perfuração do corpo da vítima com agulhas, na busca de uma parte indolor do corpo, parte esta que teria sido “tocada pelo diabo”; surras violentas; estupros com objetos cortantes; decapitação dos seios. A intenção era torturar as vítimas até que assinassem confissões preparadas pelos inquisidores. Geralmente, quem sustentava sua inocência, acabava sendo queimada viva. Já as que confessavam, tinham uma morte mais misericordiosa: eram estranguladas antes de serem queimadas. Em alguns países, como Alemanha e França, eram usadas madeiras verdes nas fogueiras para prorrogar o sofrimento das vítimas. E, na Itália e Espanha, as bruxas eram sempre queimadas vivas. Os postos de caçadores de bruxas e informantes eram financeiramente muito rentáveis. Estes, eram pagos pelo Tribunal por condenação ocorrida e os bens dos condenados eram todos confiscados.
O fim da “caça às bruxas” ocorreu somente no século XVIII, sendo que a última fogueira foi acesa em 1782, na Suíça. Porém, a Lei da Igreja Católica que fundou os “Tribunais da Inquisição”, permaneceu em vigor até meados do século XX. A “caça às bruxas” foi, sem dúvida, um processo bem organizado, financiado e realizado conjuntamente pela Igreja e o Estado.

2. O feminismo e o resgate da imagem das bruxas
Diante de tantas mortes de mulheres acusadas por bruxaria durante este período, podemos afirmar que o ocorrido se tratou de um verdadeiro genocídio contra o sexo feminino, com a finalidade de manter o poder da Igreja e punir as mulheres que ousavam manifestar seus conhecimentos médicos, políticos ou religiosos. Existem registros de que, em algumas regiões da Europa a bruxaria era compreendida como uma revolta de camponeses conduzida pelas mulheres (EHRENREICH & ENGLISH, 1984: 12). Nesse contexto político, pode-se citar a camponesa Joana D`arc, que aos 17 anos, em 1429, comandou o exército francês, lutando contra a ocupação inglesa. Esta acabou sendo julgada como feiticeira e herege pela Inquisição e queimada na fogueira antes de completar 20 anos. Diante disso, configurava-se a clara intenção da classe dominante em conter um avanço da atuação destas mulheres e em acabar com seu poder na sociedade, a tal ponto que se utilizava meios de simplesmente exterminá-las.
O feminismo busca resgatar a verdadeira imagem das bruxas em nossa história, analisando não somente os aspetos religiosos, mas também políticos e sociais que envolveram a “caça às bruxas” na Idade Média. No olhar feminista, as bruxas, através de seus conhecimentos medicinais e sua atuação em suas comunidades, exerciam um contrapoder, afrontando o patriarcado e, principalmente, o poder da Igreja. Em verdade, elas nada mais foram do que vítimas do patriarcado (ALAMBERT, Ano II, n° 48: 7). Atualmente, as mulheres ainda continuam sendo discriminadas e duramente criticadas por lutarem pela igualdade de gênero e a divisão do poder social e econômico, que ainda é predominantemente masculino, continuando vítimas do patriarcado. Por isto, as bruxas representam para o movimento feminista não somente resistência, força, coragem, mas também a rebeldia na busca de novos horizontes emancipadores.