terça-feira, 24 de janeiro de 2023

 

Populismo – o segredo do seu sucesso

Muitas pessoas, atrever-me-ia a falar na maioria, mesmo quando têm certo grau de educação académica, carecem de educação política; não estão habituadas a refletir em termos de política e quando se aventuram no campo não conseguem afastar-se do mais básico senso comum.

Claro que quanto mais toscas forem mais vulneráveis serão às mensagens populistas; todavia, é um erro pensar que as pessoas são populistas porque são ignorantes; bem ao contrário, podem ser cultas, ler livros, frequentar espetáculos, etc. tal não constitui vacina ou impedimento. Vemos este fenómeno na televisão, nos jornais, etc. e não é só porque os jornalistas são ‘a voz do dono’, é porque não foram habituados a pensar criticamente em política, desse modo, propendem a uma visão heroica da história, tem dificuldade em pensar em termos de geopolítica e não sinalizam as reais causas dos eventos.  Se isto se passa com os profissionais da comunicação social, imaginemos o que ocorrerá com os auditórios a que se dirigem.

Mais especificamente, julgo que a maior dificuldade para se entenderem os fenómenos políticos reside no facto de a grande maioria das pessoas, mesmo cultas, não dominarem os conceitos de sistema e de estrutura e tão pouco terem uma visão dialética do processo histórico; filosoficamente ainda se encontram, se assim podemos dizer, na fase designada de ‘metafisica’, que conduz a uma perceção da realidade como se esta fosse constituída por partes diferentes, separadas umas das outras; daí a grande dificuldade em perceberem, por exemplo, que as coisas podem correr mal não porque a ou b desejem o mal, mas pura e simplesmente porque a lógica do processo em que a ou b se encontram inseridos leva a que corram mal. Isto acontece porque as pessoas também não percebem que assim como o mundo dos fenómenos naturais é regido pelo determinismo, o mesmo acontece no mundo dos fenómenos sociais e históricos e que postas certas circunstâncias dar-se-ão necessariamente determinados efeitos; para que tal não acontecesse seria requerido intervir a nível da cadeia causal. Assim, enquanto não se entender a noção de sistema e como este funciona a nível da vida social, enquanto não se perceber que o determinismo é a regra do jogo, não se consegue alterar o jogo. Não há boas vontades que resistam, o voluntarismo e as boas intenções não passam disso mesmo, são irrelevantes para modificar o curso dos acontecimentos.

Daqui decorre que a vilã da história, a grande responsável pela adesão às teses populistas, é a falta de literacia política; as pessoas, não percebendo o que se está a passar, não identificando corretamente as causas dos eventos que as perturbam e prejudicam, aceitam as explicações simples e fáceis que o populismo lhes oferece. Podemos citar alguns casos mais flagrantes:

Por exemplo, a partir sobretudo da instauração do neoliberalismo, a pequena burguesia, constituída por proprietários de pequenos negócios e micro empresas, viu-se engolida pelas grandes empresas capitalistas, e então julga que o voto em partidos populistas vai servir para alguma coisa; não percebe que a culpa do seu fracasso não é da democracia liberal, mas do sistema capitalista que tem uma lógica interna potenciadora desse efeito, e, mais, não percebe que o populismo não só não ataca nem vai atacar o sistema como o vai fortalecer porque vai tornar mais difícil qualquer veleidade de resistência, dada a sua feição autoritária e violenta, o seu apreço peça autoridade e pela ordem.

Algo semelhante acontece com a classe trabalhadora que, despojada progressivamente de representação sindical, se percebe vítima da globalização e adere aos nacionalismos e a valores mais paroquiais, sem compreender que as causas da globalização com a deslocalização das empresas decorrem de um fenómeno tipicamente capitalista centrado na procura do maior lucro possível e na acumulação capitalista obtida, no caso, pelo baixo valor do custo do trabalho, não regulado e sujeito à lei da oferta e da procura.

Vejamos agora, para além da iliteracia política, que é uma espécie de pano de fundo, outros fatores mais específicos do sucesso dos movimentos populistas, começando por realçar que não há um fator isolado e único que o explique, mas vários, coadjuvantes, que preparam a ‘tempestade perfeita’.  De entre esses fatores identifico e destaco:

·        O ressentimento das pessoas relativamente às democracias liberais;

·        A dificuldade/incapacidade de se mobilizar uma luta credível contra o projeto democrático liberal capitalista;

·        Os novos media digitais e a sua potencialidade de divulgação e ampliação das mensagens populistas.

·        A conivência do capitalismo para com o populismo.

_ Muitas pessoas não se percebem verdadeiramente representadas pelas democracias liberais e, se pararmos um pouco para pensar, temos de reconhecer que essa perceção é correta dado que o processo eleitoral tal como está estruturado permite o acesso ao poder fundamentalmente aos representantes da burguesia, não do povo, e permite que a classe dominante se perpetue no poder, por isso são os interesses desta, não os do povo, que vão ser acautelados. A democracia promete igualdade politica, liberdade individual e representatividade politica, mas o que se constata é que tanto a igualdade como a liberdade são meramente formais e a representatividade falha o alvo, de onde decorre o entendimento, mais ou menos claro, de que a democracia não cumpriu o que prometera; dai a frustração, o ressentimento e o ódio de estimação aos políticos, sem se perceber que tal acontece porque numa sociedade de classes que tem de conviver com um sistema económico capitalista não há lugar para a democracia de facto, porque afinal a democracia liberal é liberal, mas não é democracia.

_  A defesa liberal do individualismo preparou o terreno para o desmonte que a cultura neoliberal fez das estruturas de resistência, nomeadamente da luta sindical, as pessoas encontram-se politicamente isoladas e impreparadas para contestar o que a cultura dominante lhes ‘vende’, e por isso mostram-se recetivas às mensagens populistas. Por outro lado, essa tarefa é facilitada pelo facto de não se apresentar nenhuma outra alternativa viável no horizonte dos possíveis dado a ideologia politica que se lhe opõe – o socialismo – ter perdido credibilidade com a queda da união soviética , que a esquerda nunca procurou explicar, metendo como que a cabeça na areia; daí poder dizer-se que há falta de comparência à luta por parte da esquerda política o que só pode ajudar na passagem da mensagem neoliberal e, no caso que estamos a apreciar, de propostas populistas . 

_ Um outro fator, de enorme importância, que pode explicar o sucesso dos movimentos populistas reside no facto dos novos media, os media digitais, centrados nas redes sociais, serem o veículo adequado à mensagem da extrema direita e à sua divulgação e mobilização para a ação. Ora, a esquerda não consegue ser competitiva neste campo, por razoes de vária ordem.

A esquerda, grosso modo, e passe a generalização, desprezou inicialmente e durante bom tempo os novos media, o que não deixa de ser intrigante porque, não tendo acesso aos media tradicionais, que também genericamente falando se encontram nas mãos do capital, deveria ter estado atenta às potencialidades democráticas deste novo instrumento de comunicação social. Todavia, fez mesmo gala em mostrar uma espécie de superioridade moral e intelectual afastando-se dele, já que recusa recorrer à violência verbal, à  retórica demagógica, ao insulto puro e duro, à ameaça física, etc., táticas de combate que campeiam nas redes sociais,  Por outro lado, este novo tipo de media ‘impõe’ mensagens curtas e imediatamente recebidas e respondidas que não dão espaço a que se construa uma argumentação e se derrotem verdades do senso comum, o que para a extrema direita é ouro sobre azul, mas, para a esquerda, desastroso. O populismo não argumenta, recorre à retórica como estratégia persuasiva e por isso tem tanto sucesso porque transmite a mensagem sob uma forma pregnante que entra bem no ouvido que se fixa facilmente, e do ponto de vista intelectual evita a complexidade – geradora de perturbação e perplexidade - porque põe tudo a preto e branco: ou é isto ou é aquilo.

Neste contexto, a tecnologia deu e continua a dar uma ajuda de peso à extrema direita e a esquerda não só acordou tarde para o fenómeno como ainda não encontrou estratégias criativas para tirar dele o melhor partido.

 

_   Por último, mas não menos importante, para explicar o sucesso do populismo está o facto de este contar com a cumplicidade tácita dos setores da direita e mesmo do chamado centro esquerda e isto acontece porque afinal o populismo não coloca em risco o sistema capitalista, bem pelo contrário.  O populismo assume a defesa do liberalismo económico, a famosa liberdade dos mercados – trave mestra do capitalismo -, que é a liberdade de a classe dominante decidir da vida económica de um país, base que condiciona outros patamares da vida social. É certo que politicamente, o populismo defende o nacionalismo, o que em certa medida parece entrar em contradição com a liberdade económica; é certo que em matéria de costumes é mesmo reacionário, colocando em risco as tão apregoadas liberdades individuais das democracia liberais capitalistas, mas a casa não vem abaixo por isso e se for preciso fazer sacrifícios para a manter, paciência - vão-se os anéis, fiquem os dedos.

 

Glossário retórico:

Populismo e capitalismo são farinha do mesmo saco.

O problema não é com a democracia; é com o capitalismo, estúpido!

O populismo aposta na iliteracia politica.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2023


 

 

O que é o populismo?

 

Quero começar por salientar que o populismo, tal como o entendo, é um movimento político que se situa no espetro da direita e que defende in extremis valores que a direita sempre defendeu. Rejeito, portanto, designar a extrema esquerda de populista porque o único aspeto que comunga com a direita é o princípio, em minha opinião, verdadeiro, da divisão da sociedade entre elite e povo, havendo no povo camadas intermédias mais ou menos próximas da elite, mas com a ressalva de que quem verdadeiramente decide é a elite, porque o diferencial de poder de que dispõe o permite. Sendo assim, abstenho-me de pronunciamentos morais, isto é, não considero que a elite é má e o povo bom, não embarco nessas categoriais concetuais dicotómicas que remetem para visões maniqueístas que não comungo.

Vamos então à caracterização do populismo (movimento de extrema direita) que apresenta duas nítidas dimensões, uma que o caracteriza enquanto estratégia de poder e outra enquanto projeto político, consubstanciado num conjunto de propostas políticas. Enquanto estratégia de poder visa mobilizar para a ação política um vasto setor das sociedades modernas que, por um ou outro motivo, não se reveem no liberalismo político e valores por este defendidos. Enquanto conjunto de propostas políticas apresenta-se como um movimento conservador e mesmo reacionário, no sentido de retorno a um passado que se julgava já morto e sepultado.

O populismo enquanto estratégia de poder visa a conquista do poder político, contando por um lado com o declínio das democracias liberais e por outro com o desconforto que o neoliberalismo provoca em vastas camadas da sociedade; para conseguir os seus objetivos e aliciar o maior número de pessoas para a causa recorre a práticas diferentes, mas convergentes:

(1) Fornece respostas simples para os problemas, logo respostas aparentemente exequíveis;

(2) Explora os sentimentos e emoções do auditório e não propriamente a sua razoabilidade, conseguindo desse modo mobilizá-lo mais facilmente para a ação;

(3) Apresenta líderes fortes e autoritários dotados de carisma com os quais as pessoas se podem identificar e que vão querer apoiar incondicionalmente.

Estes três aspetos encontram raízes na tendência das pessoas para cultivarem o que se chama de senso comum, para se deixarem dominar mais facilmente pelas paixões do que pela razão, e por preferirem seguir quem sabe mandar que inspira confiança e as exime da difícil tarefa de ‘tomarem o touro pelos cornos’, como soe dizer-se.  Podemos dar alguns exemplos que permitem compreender como funcionam estes ‘fundamentos’ da estratégia populista:

·        Explicar o declínio dos direitos da população nativa de um país atribuindo a culpa aos emigrantes e propondo a proibição da entrada destes no pais é dar uma resposta simples, aparentemente exequível – bastaria decretá-la – compreensível para as pessoas pela sua simplicidade e exequibilidade. O facto de se estar perante um problema muito mais complexo e perante uma pseudossolução, alem do mais desumana, passa ao lado, porque exigiria, para ser equacionada, tempo de desconstrução e conhecimento e compreensão das raízes económicas e sistémicas do problema.

·        Explorar a raiva justa das pessoas contra a corrupção a que os políticos cedem é fácil e apelativo porque a descarga emocional que esta proporciona diminui a pressão e o incómodo. Todavia, não permite compreender o problema encontrando a sua causa real.  Ora, a causa da corrupção reside na existência dos corruptores, e estes são os agentes económicos, por outras palavras, o sistema capitalista de que o sistema político é simples correia de transmissão. Os corruptos são o meio de que os corruptores se servem para atingirem os seus objetivos. Mas já todos reparamos que ninguém fala nos corruptores, todos apontam os dedos aos corruptos fornecendo-se mais uma vez uma explicação imediata e aparentemente verdadeira – os políticos sabem quem são; os agentes económico vivem numa espécie de penumbra da esfera pública.  

·        Por último, mas não menos importante, propor/apresentar líderes fortes, autoritários, dotados de carisma, convida à obediência, à aceitação da submissão, e consequentemente facilita a tarefa do líder político que não tem de se preocupar com os embaraços da democracia porque ele é o demos, identifica-se com o povo porque entre o líder e o povo não há diferença, há identidade e graças a este passe de magica o povo julga que não esta a ser marginalizado. Defende-se assim o autoritarismo depois de se terem rejeitado as autocracias, e de se ter defendido a democracia como regra do jogo político.

Vejamos agora o populismo enquanto projeto político. Neste aspeto o populismo apresenta propostas conservadoras e mesmo reacionárias; estas não agradam a elite liberal, é certo, mas esta pode ver-se obrigada a ‘engolir o sapo’, se não lhe restar outra opção, isto é, se, para manter os seus privilégios económicos, tiver de aceitar um regime político que será hoje uma nova versão do fascismo de meados do seculo passado. Vejamos então por que razão ou razões se justifica dizer que o populismo é conservador e reacionário.

O Populismo pretende restaurar, ou melhor, reconduzir para o campo do político os valores da religião, da nação e da família; “Deus, Pátria e Família” é a fórmula que resume de modo exemplar o conteúdo ideológico do populismo. Em termos retóricos esta fórmula é irrepreensível, apelativa para bom número de pessoas, e aqueles que dela suspeitam têm mais uma vez de se justificar, de ficar na defensiva, numa posição ingrata e incómoda. Mas vamos lá, é preciso desvelar o que ela oculta, o que não diz, mas está subentendido:

·        Em relaçao a Deus, ou seja, à religião, o que não se diz é que se pretende impor a todos aquilo em que alguns acreditam, da maneira como acreditam, com a sua interpretação muito própria e especifica dos mandamentos divinos e as consequências a nível social que daí decorrem. Quer dizer, não se trata de conceder aos indivíduos liberdade de pensamento e expressão no campo religioso porque esta já lhes é reconhecida pelo liberalismo e pelas democracias liberais, trata-se de voltar ao passado, a um passado que se supunha derrotado, que obrigava a uma só fé e que não admitia sequer a ausência de fé, ou seja, o ateísmo. Trata-se de abolir o estado laico e de inscrever a religião no âmago do político, tal como em tempos passado, quando as monarquias e poder eclesiástico se reforçavam e defendiam reciprocamente. Assim, enquanto o liberalismo e a democracia liberal instituíram o estado laico e a tolerância em relaçao aos credos religiosos diferentes de diferentes indivíduos, o populismo revela profunda intolerância em relaçao a outras religiões que não a dominante e pretende que a doutrina e a moral religiosa enformem a estrutura política.

·        Quanto à “Pátria” o reforço do sentimento nacionalista e a exaltação da nação, numa época em que esta, embora ainda conserve algum sentido pelos laços de pertença que fornece, perdeu muita da sua importância, em função da globalização e internacionalização da economia - fenómenos inevitáveis a menos que um cataclismo anule as recentes aquisições tecnológicas - revelam o conservadorismo que habita o projeto populista, não porque haja alguma coisa errada com o sentimento de pertença a uma nação, a um território, mas porque este sentimento, se exacerbado, propende a fazer esquecer a solidariedade que é necessário construir entre as nações a fim de minorar os conflitos bélicos que dele se alimentam e sempre estão à espreita.

·        Também não se diz, nesta fórmula simpática e apelativa, que a família aqui defendida é a família heterossexual e patriarcal com exclusão de outras formas de organização familiar. Ora, como sabemos, a família tradicional tem vindo a sofrer alterações no sentido de suavizar a carga patriarcal que resiste em perdurar e, alem disso, está a ser confrontada com outros modos de organização familiar. Face a estes desenvolvimentos, é reconhecido o desagrado e o ressentimento de muitos setores da sociedade, em primeiro lugar de muitos homens, que sentem perder privilégios ancestrais, mas também de populações com formação religiosa impregnada nas suas mentes, que embora pretendam aceitar as mudanças, no fundo de si mesmas, são ainda presa de crenças e de preconceitos nas quais estas não se encaixam.

Resumindo, existe um campo fértil para a difusão da ideologia populista que prega “Deus Pátria e Família”, mas que esconde:

 (1) a intolerância religiosa contra outros credos e também contra a ausência de credo;

(2) um nacionalismo fundamentado no ódio e na aversão ao que é diferente;

 (3) um apego forte à família patriarcal e à ordem e hierarquia nela implícitas.

Numa palavra, o populismo recentra valores que a contemporaneidade tem vindo progressivamente a desmontar. Por isso se pode dizer que afinal o populismo é um anacronismo; é a recusa da modernidade que inspirou o liberalismo, apenas com uma exceção, mas uma exceção de peso, que pode explicar o seu sucesso: a aceitação do liberalismo económico, indispensável ao funcionamento do capitalismo. Quer dizer o populismo não põe em causa o sistema capitalista e o tipo de liberdade que este exige e pressupõe – este é o segredo do seu sucesso, isto é, da sua aceitação pelos setores sociais privilegiados. Melhor ainda, os seus valores afinal alinham com os valores essenciais do capitalismo: hierarquia em vez de igualdade; dominação de uns e submissão de outros; liberdade dos mercados, isto é, liberdade para aqueles que controlam a economia. 

O populismo aparece assim como a verdadeira face política do capitalismo quando a máscara da democracia liberal não mais se sustenta. Resta saber se as contradições que suscita não se vão continuar a manifestar, agora em outros campos e de sentido diferente, e se o populismo não será de facto e de direito a última fase do capitalismo – a face feia, mas necessária que o capitalismo tem hoje de assumir para se sustentar.

Glossário retórico:

O populismo é a política da pedra lascada;

O populismo é um anacronismo;

O Populismo - é a última tábua de salvação do capitalismo - a face feia do capitalismo.

 


 


sábado, 14 de janeiro de 2023

 

Populismo e corrupção

Uma das bandeiras atuais dos partidos populistas é a da luta contra a corrupção; mas mais uma vez, como é sua caraterística dominante, o populismo dá uma resposta simples a um problema complexo: advoga um estado forte que, de uma penada, elimine os políticos corruptos e com eles, claro, a democracia liberal, instalando um governo autocrático que reponha a ordem e a autoridade. Esta resposta é simples porque não compreende, ou não quer compreender, a complexidade do problema; contudo a maioria das pessoas, precisamente porque é simples, aceita-a sem contestação e sem escrutínio.

O populismo não compreende desde logo que existe contradição entre o sistema político e o sistema económico, isto é, entre a democracia liberal e o capitalismo. De facto, enquanto a democracia propõe igualdade de participação política e de representação, o capitalismo está nos antípodas porque o modo de produção capitalista está longe de ser democrático: quem decide o que produzir e como produzir é o dono do capital não são as pessoas que trabalham para o servir e que não são tidas nem achadas, nem tem qualquer poder decisório. Por exemplo, se ele entender deslocalizar a empresa, os trabalhadores não terão qualquer hipótese de anular tal decisão por mais gravosa que esta seja para as suas vidas.

Todavia, malgrado esta contradição entre democracia e capitalismo, os donos do capital precisam do Estado para este lhes criar as condições mais favoráveis e por isso precisam de alguma maneira de dominar o aparelho politico; de notar que este, em principio, nas democracias liberais,  já lhes é favorável porque afinal os políticos na sua maioria são filhos das burguesias nacionais e defendem os interesses destas, desse modo estão recetivos à adoção de medidas que favoreçam o sistema económico vigente. Quando tal não sucede espontaneamente, entram as luvas, os subornos, os favores, as placas giratórias entre a esfera política e as empresas, etc., numa palavra, entra a corrupção.

No caso que estamos a abordar, o populismo pretende que a resposta/solução do problema da corrupção consiste em punir/eliminar os corruptos, uma resposta circular: há corrupção porque há corruptos, se eliminarmos os corruptos, eliminamos a corrupção. Reparem na falácia, é como dizer: há pobreza porque há pobres, logo a solução da pobreza está encontrada se eliminarmos os pobres.

Esta resposta populista ignora a verdadeira causa do fenómeno e desse modo não se propondo eliminar a causa não vai eliminar o efeito. Ora a causa da corrupção não são os políticos, é o sistema económico e os seus agentes diretos que exigem que as medidas políticas sejam favoráveis aos seus interesses económicos; os corruptos são simplesmente o meio de que os corruptores se servem para atingir os seus objetivos.

Assim, se um partido populista vencer eleições e for governo, o mais certo é que vá subordinar as suas políticas aos interesses do capital; se não o fizer, terá igualmente corruptos no seu interior ou então terá os dias contados. Isto porque, qualquer que seja o sistema político, o capitalismo tem de manipular a governação, seja através da própria representação ou da sua cooptação por meio  do suborno, vulgo corrupção.

 

terça-feira, 10 de janeiro de 2023

 

Porque temos de combater o individualismo e a ideologia liberal que o sustenta?

A conceção liberal de indivíduo - individualismo - defendida pelo liberalismo e preponderante nas democracias liberais contemporâneas não investe numa ideia de sociedade como comunidade, como coletivo, no qual os indivíduos se encontram numa relação de suporte e dependência recíproca; bem pelo contrário, insiste em inculcar a ideia de que cada um é uma entidade autónoma, responsável por si mesmo, pelos seus sucessos e /ou fracassos.

Também ignora que nas sociedades humanas os indivíduos não existem em abstrato e isoladamente, mas surgem integrados em grupos e em extratos sociais diferentes, assim, por exemplo, homens e mulheres, brancos e minorias raciais, ricos e pobres, situam-se em ‘lugares diferentes’ e a distribuição de recursos e de poder entre tais grupos está muito longe de ser sequer aproximada. Tal omissão e mesmo negação leva a que só reconheça direitos aos indivíduos, não aos grupos sociais, e que conceba o papel do Estado como o de garantir a todos os indivíduos o reconhecimento e a proteção de direitos formais, como o direito à vida, à liberdade e à posse de propriedade.

É certo que o objetivo declarado do liberalismo é a construção de uma sociedade democrática; de uma sociedade de iguais, na qual todos tenham igualdade de direitos e de oportunidades. Mas, há uma premissa que deveria desde logo colocar:  se se quer construir uma sociedade de iguais, pelo menos no que respeita a direitos básicos, não se pode ignorar a situação de desvantagem em que, à partida, se encontram alguns grupos sociais relativamente a outros e portanto não se pode ignorar que para alem dos indivíduos existem grupos sociais e estruturas sociais que enquadram esses grupos e que por tal motivo não é suficiente a garantia de igualdade formal de direitos porque sabemos que esta, neste contexto, vai abrir a porta à existência e persistência de desigualdades de facto: nem todas as vidas serão igualmente protegidas; a liberdade será um luxo a que os pobres e os destituídos de poder não terão de facto acesso; a propriedade continuará nas mãos de um reduzido número de pessoas e permitirá que alguns explorem a maioria. Usando uma imagem interessante, poderia dizer-se que de acordo com a conceção liberal tanto o rico como o pobre podem dormir num banco de jardim - não é proibido - mas o primeiro preferirá com certeza a sua mansão, enquanto o segundo pode nem sequer ter dinheiro para comprar uma tenda.

Temos então de perceber que a montante da sociedade democrática, da sociedade de iguais, é preciso lançar as bases sólidas da igualdade – os alicerces. Esta, embora exija a igualdade formal de direitos fundamentais, exige também a criação de condições materiais e outras que permitam a passagem do formal ao factual; para garantir essa passagem é preciso aprender a tratar de forma igual o que é igual e de forma desigual o que é desigual, é preciso aceitar que não existem apenas indivíduos existem também grupos sociais e estruturas sociais e que estas condicionam diferentemente o horizonte dos possíveis de cada individuo.  

Assim, para construir uma sociedade democrática, uma sociedade de iguais, é preciso abandonar a conceção liberal de indivíduo porque existe contradição entre individualismo e democracia. A democracia é o governo do ‘demos’ (povo), é dar atenção a todos, não deixar cada um entregue a si mesmo e a uma espécie de lei da selva em que vence o melhor, típico de animais predadores, mas não de seres civilizados que percebem que viver num palácio quando ao redor só existem latrinas continua a ser viver numa lixeira.

Claro que os que vivem em palácios procuram abstrair-se das latrinas e encontrar justificações reconfortantes para a sua situação de ‘relativo’ privilégio; estas vão desde a negação: a igualdade não é possível logo nem vale a pena fazer um esforço para estabelecer bases igualitárias; não é também desejável porque de facto uns são mais brilhantes do que outros e merecem o pedestal em que se encontram porque a sua contribuição é maior. Procuram ainda, para evitar conflitos e invejas, convencer os outros de que podem vir a ter o que eles têm, se não forem preguiçosos, se aproveitarem as oportunidades, se… se... 

Temos de convir que de tolos não têm nada, só vistas curtas!