sábado, 26 de março de 2011

Porquê insistir nas diferenças entre homens e mulheres?


Realçar e acentuar as diferenças entre mulheres e homens tem sido uma estratégia que responde a um objectivo específico nem sempre declarado: o de definir papéis, lugares e esferas de influência para cada um dos sexos. Distinguir as mulheres dos homens não só em relação a características físicas mas até em relação a características afectivas e intelectuais serve para mostrar que a igualdade não é porventura aquilo que melhor convém às mulheres.
Precisamos dizer que não têm sido poucas as autoridades das mais diversas áreas que se encarniçaram no estabelecimento destas diferenças; todavia, nesse afã de confirmar diferenças houve uma que sempre ignoraram e que continuam a pretender ignorar e é a de que a diferença entre os sexos é também, porventura acima de tudo, uma diferença de poder.
Aqueles que insistem na tecla da diferença também ignoram que se espera que homens e mulheres sejam diferentes e que para confirmar esta expectativa de senso comum, se dá atenção, isto é, se percebem, todas as instâncias que a corroboram e tende-se a não perceber as semelhanças ou, quando elas são apontadas, a percebê-las como excepções. Além disso como Deborah Camerom observou: “Se um estudo encontra uma diferença significativa em questões relacionadas com homem e mulher, tal é considerado uma descoberta ‘positiva’ e tem boas hipóteses de ser publicado. Um estudo que não encontra diferenças significativas tem menos probabilidade de ser publicado”. Por estes motivos, qualquer análise cuidadosa desta questão, que requeira estatuto científico, não deve esquecer estes condicionalismos que a podem enviesar; não pode nem deve esquecer que conseguir que a realidade se ajuste aos nossos preconceitos e os confirme não é assim tão difícil como parece, basta escolher alguns casos conhecidos, insistir neles e deles passar para a generalização e para a justificação do correspondente estereótipo.
Nos dias de hoje continua a insistir-se nestas diferenças e por isso livros como «Os Homens são de Marte, as Mulheres de Vénus», apresentam os dois sexos como se pertencessem a planetas e a mundos estranhos, com a dupla vantagem de mostrar desde logo uma diferença de fundo entre homens e mulheres muito entranhada na psicologia popular, já que Marte e Vénus, para além de nomes de planetas, são nomes de divindades mitológicas, representando uma a Guerra e a outra o Amor. Ao confirmar esta crença popular, este livro rapidamente se transformou num best seller e, com a pretensão de ajudar homens e mulheres a chegarem ao melhor acordo possível, prescreve como uns e outras se devem comportar.
É muito conveniente que este reforço da psicologia popular não venha só de autores literários de créditos discutíveis, é preciso que a ciência apoie, ajudando a convencer públicos mais exigentes. Assim, não admira que recentemente, a biologia tenha pretendido estabelecer que mulheres e homens têm capacidades linguísticas diferentes, embora procurasse dourar a pílula, sugerindo que neste campo a superioridade estaria do lado das mulheres. Claro que a partir daí se poderia também tirar a ilação de que se deveria regressar à segregação nas escolas com base no sexo, o que porventura já não seria assim tão vantajoso para as mulheres.
Ao intervir nesta questão o que se verifica é que a biologia ou pelo menos alguns dos seus investigadores, procuram naturalizar diferenças entre homens e mulheres, dando de barato que elas, a existirem, se possam dever a condicionalismos sociais e culturais. Naturalizar diferenças é explicá-las fazendo intervir mecanismos biológicos e obviamente é dizer que elas são essenciais e imutáveis; não são contingentes, não se devem à influência do meio ambiente e da educação ou ao processo de aculturação, são inatas. Daí decorre que teremos de as aceitar e de aceitar as consequências que delas derivam.
O problema é, todavia, mais complicado do que alguns querem admitir, assim por exemplo, em relação às mencionadas diferenças de linguagem entre homens e mulheres, que seriam inatas e devidas a mecanismos ligados ao funcionamento cerebral, é preciso saber, em primeiro lugar, se elas existem, se correspondem a um facto estabelecido ou se, como defende Deborah Camerom, estamos perante mais um mito cultural - crença falsa amplamente difundida - muito convenientemente aceite para manter o statu quo; vejamos o conteúdo deste «mito»:

As mulheres falam mais do que os Homens. Tem maiores aptidões verbais. Os homens falam com propósito de conseguir que as coisas sejam feitas, as mulheres falam para comunicar com outras pessoas. Os homens falam de factos, as mulheres de sentimentos. Os homens usam a linguagem com fins competitivos, as mulheres visam mais a cooperação e a harmonia. Estas diferenças dificultam a comunicação entre os dois sexos.

Antes de mais, podemos dizer que se está perante um conjunto de generalizações empíricas, de tal modo vagas que tanto se pode encontrar instâncias que as confirmem como outras que as desmintam. Embora correspondam a convicções caras ao senso comum mais trivial, um escrutínio mais apertado revela as suas debilidades.
Comecemos por analisar a afirmação de que as mulheres falam mais do que os homens. Trata-se de uma asserção extremamente vaga que ignora inúmeros contextos em que o discurso pertence quase que em exclusividade aos homens, vide o caso da política, da economia ou da ciência. Mas, num livro publicado em 2006, The Female Brain, afirmava-se peremptoriamente que as mulheres em media, no decurso de um dia, proferiam 20000 palavras enquanto nos homens a média ficava nas 7000; com tão flagrante diferença estatística não só se corroborava como se reforçava a crença de senso comum de que as mulheres são faladoras pois que se «mostrava» que elas até falavam três vezes mais. Como refere Deborah Cameron esta notícia foi amplamente divulgada em todos os jornais do mundo.
Por sorte, um investigador da área da linguística, Mark Liberman, não acreditou na notícia e ao procurar a fonte para esta informação descobriu que ela remetia, em nota de rodapé, para um livro de auto-ajuda e não se baseava em qualquer investigação científica. Continuando a pesquisa, constatou que outros autores apresentavam dados estatísticos diferentes e com enorme variabilidade, o que logo à partida lançava suspeição, e nenhum citava uma pesquisa sobre o assunto que os confirmasse. «Concluiu que nenhum tinha alguma vez feito um estudo para contar o número de palavras produzido por uma amostra de homens e mulheres no decurso de um único dia. As afirmações eram tão variáveis porque eram fruto de pura adivinhação.»
Depois desta denúncia, a autora de Female Brain reconheceu que a afirmação não era suportada por evidência científica e prometeu retirá-la em edições posteriores, mas entretanto o prejuízo já estava feito: a tagarelice das mulheres fora «cientificamente» confirmada.
Esta história ilustra um procedimento dos media que constitui verdadeiramente um padrão: publicam em altas parangonas títulos/informativos de ‘factos’ relacionados com determinadas investigações. Quando mais tarde se vem a saber que não correspondem à verdade e não são de todo factos, ou não são pura e simplesmente desmentidos, ou então os desmentidos têm um lugar irrelevante e dificilmente são percebidos pelo público. E, por isso, as palavras de Deborah Cameron sobre esta história tem toda a razão de ser:
«O muito publicitado soundbite de que as mulheres falam três vezes mais do que os homens permanecerá na memória das pessoas e será reciclado nas suas conversações, enquanto a retratação, escassamente publicitada, não fará tal impressão. É assim que os mitos adquirem estatuto de factos.»
De qualquer modo fica ainda por explicar a origem/motivação deste mito, mas se lembrarmos, com a feminista Dale Spender, que o ideal proposto desde séculos para a mulher é o silêncio, compreendemos que qualquer fala só pode ser percebida como excesso.

4 comentários:

  1. Gracias por la información sobre el fallo en le libro de El cerebro femenino.

    ¡Genial post!

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  2. moça, descobrir seu blog foi algo maravilhoso! já linkei no meu.

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  3. Oi, Sandra
    Obrigada pelo seu gentil comentário.

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  4. Eu trabalho em uma área predominantemente masculina (TI) e posso afirmar com total certeza que os homens falam muito mais que as mulheres. Basta que os reúna e eles começam a falar de futilidades sem parar. Quando atendemos os clientes no call center, os clientes homens falam muito mais do que as clientes, eles querem contar a vida deles para nós (funcionários homens e mulheres), são muito chatos, ao passo que as mulheres só ligam para que seus problemas sejam solucionados. Eu estou no estágio de ódio desses rótulos de gêneros, sou hétero mas não me identifico com os padrões "femininos", não dou a mínima pra andar bonita ou chamar atenção com alguma roupa, fazer compras, maquiagem, consumir conteúdo romântico. Consumo muito mais as coisas tipicamente masculinas, mas não importa, sempre algumx babaca, mesmo sem te conhecer, vai te tachar de gostar de bolsas, de ser sensível, de só pensar no namorado.

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