segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Ética sexual e natureza ou quando se perverte o objetivo da ética


Tomás de Aquino, seculo XIII, elaborou uma ética sexual que ainda hoje constitui doutrina oficial da Igreja católica. O “inefável” doutor foi bem mais comedido do que Agostinho e, munido da parafernália concetual que Aristóteles lhe forneceu, construiu uma autêntica fortaleza ideológica.
A ontologia de que parte é teleológica, isto é, entende que cada ser foi designado para um determinado fim, tem um telos, e a virtude está em cumprir esse fim, esse telos, numa palavra, a sua natureza.
De acordo com a doutrina de Aquino, sexo e prazer são permitidos, porque são naturais e fazem parte do desígnio divino, mas só se o ato sexual estiver aberto à procriação porque esse é o seu fim; masturbação, sexo oral e anal são pecados capitais porque são crimes contra a natureza e, portanto, contra Deus que a ordenou divinamente; incesto e violação são pecados menos graves, apenas veniais pois atentam tão-somente contra a moralidade social e não contra Deus, porque não bloqueiam a conceção (logo observam o telos).

Poderíamos continuar a enumerar outros aspetos desta ética sexual, mas estes são suficientes para a crítica que pretendo fazer-lhe. Uma ética que se limita a legitimar e a justificar o que entende ser a ordem natural das coisas, considerando que esta é boa porque foi a querida por Deus, perverte o objetivo que deve presidir à reflexão ética que é o de contribuir para a construção de uma ordem social melhor, justa e virtuosa, qualitativamente diferente da que existe na natureza.
Entendamo-nos, uma coisa é a ordem natural e outra a ordem social. A ordem natural é o dado, aquilo que à partida se apresenta; a ordem social é o construído; aquilo a que chegamos. O dado, em si mesmo, não é justo nem injusto, é neutro do ponto de vista ético, mas fazer dele a base para o justo e o injusto é pretender justificar desse modo uma ordem social que passa a incorporar na sua estrutura aquilo que devia ser corrigido e contrariado.
Por exemplo, pode acontecer - é natural - que uma mulher em período fértil engravide no decurso de uma relação sexual; isto, em si mesmo, nada tem de justo ou de injusto, porque o justo e o injusto são categorias mentais que emanam da ordem dos arranjos sociais; mas se, por exemplo, for possível evitar uma gravidez indesejada, isso é justo porque atende aos interesses legítimos da pessoa; em contrapartida, obrigar a mulher a suportá-la, só por que se entende que isso é que é natural e, portanto, bom, é injusto.
Por outro lado, a ética de Tomás de Aquino, como outras éticas de matriz religiosa, ao pretender limitar o indivíduo à natureza, está a fazer aquilo que devia evitar a todo o custo, sob pena de entrar em contradição profunda, está a reduzir o ser humano à pura animalidade; por exemplo, ao pretender que uma mulher não controle a sua capacidade reprodutiva, está a equipará-la a qualquer outra fêmea do reino animal, ora o que distinguiu o ser humano foi a capacidade de transcender a natureza e criar cultura.
Transformar a natureza em princípio ético, em critério de moralidade, é transformá-la em lei natural que serve de base à lei social; ora conceder à lei natural o primado sobre a lei social e humana encontra-se nos antípodas do humanismo e dos seus valores mais centrais.
 
E não se julgue que isto é apenas teoria – conversa fiada, como alguns dizem - porque de facto na prática ainda hoje, em muitos países, se tenta limitar o acesso das mulheres à contraceção e ainda recentemente no Brasil, um padre católico com relevo na hierarquia se apressou a condenar o pessoal médico que procedeu à interrupção da gravidez de uma menina, ainda criança, abusada pelo padrasto, não dando especial atenção à gravidade do ato por este praticado. É que os médicos e restante pessoal tinham atentado contra Deus e contra o plano divino que só pode ser bom, mesmo quando em caso concreto é obviamente mau, ao passo que o abusador apenas atentou contra os interesses de uma pobre menina e da moralidade social!!!

Por tudo isto se prova que as teorias, as ideias, as filosofias, têm enorme importância e só os tolos as descartam com o argumento de que não tem utilidade prática.

sábado, 19 de janeiro de 2013

Amor e sexo no século XXI


No século XXI, no Ocidente, o amor romântico continua a ser o ideal, um ideal cuja fragilidade a experiência se encarrega de revelar, mas que, mesmo assim, persiste, através de várias transformações e ajustamentos. Além de ideal, é também uma ideologia que serve os interesses da sociedade tal como ela continua a estar estruturada.

A cultura individualista permanece, favorecida por uma realidade política, social e económica em que as pessoas se encontram atomizadas e até isoladas, mesmo quando integram multidões. Neste contexto, os vínculos amorosos revelam-se quase imprescindíveis para se conseguir suportar um quotidiano desprovido de encanto, de sentido e até mesmo de esperança e, mais do que nunca, coloca-se no amor o que até há bem pouco tempo se colocava na religião e nas suas promessas de bem-aventurança eterna, ou na família alargada, que criava pressão sobre o indivíduo, mas também lhe fornecia uma qualquer forma de proteção. O amor é mais do que nunca garante de estabilidade psicológica e de segurança ontológica

Há ainda um outro fator que complica a situação; hoje o amor romântico é decididamente amor sexual e a componente sexual é considerada não só importante como decisiva para o bem-estar do casal (heterossexual). De facto, o discurso público sobre sexo e sexualidade, visível por exemplo nas revistas femininas, mudou, a ênfase já não é posta de maneira exclusiva no romance e o sexo silenciado como costumava ser. Quando há insatisfação sexual, os parceiros começam a sentir que algo está mal e que merecem mais da relação. Frequentemente partem para outra e dissolvem a anterior união. É este facto que o sociólogo britânico Anthony Giddens (1938) refere quando utiliza a expressão “amor confluente” para designar o que atualmente se espera do amor e da relação amorosa: espera-se que seja uma “relação pura” que não responda a outro compromisso que não o desejo das pessoas permanecerem juntas; filhos, interesses familiares ou económicos são importantes, mas não determinantes para manter uma relação que deve ser de amor e não de conveniência.

Giddens, na sequência de Robert Solomon, defende que este tipo de amor exige igualdade entre as partes, e, portanto esta seria mais uma caraterística diferenciadora do amor confluente; mas podemos bem perguntar se não é porque as partes atualmente têm condições materiais que limitam as assimetrias e desigualdades que ele surge como mais igualitário, quer dizer não é o novo tipo de amor que exige igualdade, são as novas condições materiais de vida dos parceiros que a exigem.

É certo também que hoje as mulheres estão mais conscientes do seu direito ao prazer e à autonomia sexual mas a perceção deste direito decorreu da separação entre sexo e procriação e portanto de uma profunda transformação nas condições materiais de vida das mulheres. A sexualidade passa a ser entendida como uma forma de expressão e de intimidade e não um mero recurso ao serviço da reprodução da espécie.

Por tudo isto, convém não perder o foco e perceber que, se hoje a relação amorosa parece mais simétrica e igualitária e consequentemente mais favorável as mulheres, isso ocorreu não por mudanças a nível das relações íntimas entre homens e mulheres mas é antes o reflexo de modificações de caráter económico, social e até político, e é sobre essas que nos devemos centrar; foram, como sempre, o motor que impulsionou o processo.

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

A retórica dos valores

À volta dos valores existe uma enorme retórica, entendendo-se aqui o termo no seu sentido pejorativo de palavreado, muitas vezes oco e apenas pomposo, para ludibriar as pessoas. Quando ouço falar em valores fico de imediato de sobreaviso, de certeza que vem chumbo grosso sob o manto diáfano das palavras bonitas!

O termo valor, sem especificação, é neutro; o valor é o preferível e o preferível para uns não é necessariamente preferível para outros. Portanto, quando se fala em valores é preciso sempre especificar pois todas as pessoas têm valores, todas as pessoas valoram só que as valorações nem sempre são coincidentes.

Aqueles que falam em valores em abstrato, como se de entidades eternas e imutáveis se tratasse, ligam-nos sempre às suas crenças religiosas e à sua fé, mas o facto de eu por exemplo não acreditar num ser transcendente não significa que não tenha fé, por exemplo, no ser humano e na sua capacidade de se aperfeiçoar. Contudo, ter fé num Deus ou ter fé na Humanidade são coisas diferentes. O Deus é bem mais apelativo, garante-nos o absoluto, enquanto a humanidade nos obriga a relativizar, a não esquecer os contextos em que a vida humana decorre.

A direita, todavia, é especialista no apelo aos valores como se deles tivesse o monopólio, e usa esse apelo para conseguir conquistar audiência; obviamente, todas as pessoas estão interessadas numa sociedade que preserve certos valores, e o truque da direita consiste em fazer o apelo sem especificar, ignorando ostensivamente que é preciso atender ao conteúdo dos valores e ao tipo de valores de que se está a falar.

Toda a gente defende valores, só que umas pessoas valorizam a liberdade e a autonomia, por exemplo, enquanto outras valorizam a obediência e a submissão; atribuir valor à vida humana tem aparentemente adesão universal, mas, por exemplo, no caso das mulheres e do aborto há quem valorize a vida da mulher em detrimento da vida do feto, se as circunstâncias assim o exigirem, enquanto outras dizem-se pomposamente pró-vida, escamoteando com tal proclamação que se estão nas tintas para a vida das mulheres reais de carne e osso que comparam grosseiramente à vida embrionária que poderá ou não vir a dar origem a uma pessoa.

Também o valor família é frequentemente invocado como arma de arremesso para atacar sub-repticiamente as mulheres que se dedicam a atividades profissionais e “descuram” os seus deveres verdadeiros! Todos os males sociais são atribuídos à degradação da vida familiar e com tão oportuno bode expiatório pode nada se fazer e manter arranjos sociais nitidamente desajustados, sobretudo para as mulheres, tanto a nível pessoal como a nível profissional.

Mais do que nunca, o discurso dos valores exige das pessoas atenção critica no sentido de analisarem a sua substância, detetarem contradições entre o que se diz e o modo como se atua. O assunto dos valores é demasiado importante para ficar entregue aos malabaristas das palavras.