sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Exibicionismo sexual ou emancipação sexual?!

  Os pensadores que, por um lado, constroem o discurso na base de metáforas, aforismas, declarações enfáticas e expressões pregnantes e, por outro, descuram a vertente racional/argumentativa exercem normalmente enorme fascínio sobre os leitores. Prestam-se obviamente a interpretações diferentes e até divergentes, pois cada um apropria-se à sua maneira do pensamento do autor e “afeiçoa-o” aos seus objetivos; por isso é que vemos conservadores e progressistas, setores de esquerda e de direita tecerem encómios a pensadores que corporizam esse modelo, como por exemplo Nietzsche, um dos que, em decorrência, defendia que não há verdade, só interpretações. Um fenómeno paralelo ocorreu e ocorre com Sade.

    Sade encontra os maiores defensores em certa intelectualidade de esquerda e, pasme-se, até recolhe alguma benevolência da parte de feministas como Simone de Beauvoir e Ângela Carter que realçam aquilo que pode ter havido de ‘revolucionário’ no pensamento de Sade relativamente à sexualidade, em particular à sexualidade feminina. Ora a este propósito ocorre-nos perguntar como é que o defensor entusiasta de um certo tipo de terrorismo sexual, exercido preferencialmente contra as mulheres, pode ter dado qualquer contributo para qualquer revolução sexual.

    Vejamos o argumento dos admiradores do “divino marquês”. Dizem que dessacralizou o sexo, ao ignorar ostensivamente e mesmo ao desprezar a sua vertente reprodutiva, ao serviço da vida. Bem o argumento parece frágil porque, embora se possa reconhecer que foi positivo, sobretudo para as mulheres, o enfraquecimento do vínculo entre sexo e reprodução, tal não se deveu a qualquer putativa dessacralização, mas a eventos técnicos que dão liberdade de escolha às pessoas e que não implicam qualquer diabolização da reprodução e da maternidade. 

    Dizem ainda que certas heroínas sadianas, como por exemplo a Julieta da novela do mesmo nome, são personagens femininas que se assumem como autênticos símbolos da mulher sexualmente emancipada. Mas quem profere este tipo de afirmações esquece que essas “heroínas” aceitam e procuram alegremente todas as práticas sexuais que os homens apreciam. Ao fim ao cabo lembram as personagens femininas da pornografia mainstream, muito entusiasmadas com práticas que, temos boas razões para supor, não lhes dão qualquer prazer, embora finjam esse mesmo prazer para inglês ver, isto é, para consumo masculino.

    Esta tese  da revolução sexual e das mulheres sexualmente emancipadas parece muito cara a certos homens, mas estes dão pouca atenção ao que seja a emancipação sexual. O objetivo desses homens, embora não declarado, e às vezes não consciente, é o de terem um número cada vez maior de mulheres recetivas às práticas sexuais que eles apreciam. Ora, se as palavras são para terem algum sentido, as mulheres emancipadas são as que manifestam capacidade de se autodeterminarem sexualmente, decidindo o que querem ou não fazer, não são as que dizem sempre sim a tudo, fingindo que é tudo muito gostoso e que estão a ter um grande e fabuloso sexo, para depois contarem às amigas. 

   Quem fala nestes termos em emancipação sexual feminina ainda não percebeu que a sexualidade feminina continua confiscada porque sujeita a um modelo masculino e a um erotismo masculino, construídos e reforçados social e culturalmente. Hoje, mais do que nunca há muito exibicionismo sexual feminino, mas continua a não haver liberdade sexual feminina. É bom que nos entendamos e nos deixemos de mistificações.


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terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Sexualidade e cultura


Quanto mais não seja, por uma questão cultural, a relação heterossexual continua a ser uma relação de domínio/submissão; é assim que é percebida e é assim que é referida através do tipo de linguagem usada para a exprimir que, como bem sabemos, é uma linguagem de violência, de domínio e de humilhação; por isso é que é utilizada quando se quer insultar/agredir alguém. 


Se calhar não é pois por acaso que mulheres solteiras (desacompanhadas e autosuficientes), divorciadas ou viúvas são normalmente muito mais assertivas, livres e autónomas, o que pode estar relacionado com o facto de não terem um macho/guardião que as coloca na sombra. Penso que um homem, a partir do momento em que tem relações sexuais com uma mulher, sobretudo se não forem apenas casuais, começa lenta e paulatinamente a sentir que pode/deve controlá-la e a controlá-la efetivamente, não só nos seus passos, mas até no seu pensamento e então lá se vai a reciprocidade e o respeito que devia caraterizar a relação. Este percurso é quase inevitável e poucos conseguem resistir a esse apelo em que as fronteiras entre o natural e o cultural se encontram esbatidas. Portanto parece haver ligação entre a secundarização e inferiorização das mulheres e o modelo de sexualidade prevalecente.

(A utilização da linguagem sexual para insultar pessoas é tão óbvio que deveria merecer a atenção dos estudiosos da linguagem, mas de facto não conheço nenhum estudo sobre o assunto.)