Os pensadores que, por um lado, constroem
o discurso na base de metáforas, aforismas, declarações enfáticas e expressões
pregnantes e, por outro, descuram a vertente racional/argumentativa exercem
normalmente enorme fascínio sobre os leitores. Prestam-se obviamente a
interpretações diferentes e até divergentes, pois cada um apropria-se à sua
maneira do pensamento do autor e “afeiçoa-o” aos seus objetivos; por isso é que
vemos conservadores e progressistas, setores de esquerda e de direita tecerem
encómios a pensadores que corporizam esse modelo, como por exemplo Nietzsche, um
dos que, em decorrência, defendia que não há verdade, só interpretações. Um
fenómeno paralelo ocorreu e ocorre com Sade.
Sade encontra os maiores defensores em certa intelectualidade de
esquerda e, pasme-se, até recolhe alguma benevolência da parte de feministas
como Simone de Beauvoir e Ângela Carter que realçam aquilo que pode ter havido
de ‘revolucionário’ no pensamento de Sade relativamente à sexualidade, em
particular à sexualidade feminina. Ora a este propósito ocorre-nos perguntar como
é que o defensor entusiasta de um certo tipo de terrorismo sexual, exercido
preferencialmente contra as mulheres, pode ter dado qualquer contributo para qualquer
revolução sexual.
Vejamos o argumento dos admiradores
do “divino marquês”. Dizem que dessacralizou o sexo, ao ignorar ostensivamente
e mesmo ao desprezar a sua vertente reprodutiva, ao serviço da vida. Bem o
argumento parece frágil porque, embora se possa reconhecer que foi positivo, sobretudo
para as mulheres, o enfraquecimento do vínculo entre sexo e reprodução, tal não
se deveu a qualquer putativa dessacralização, mas a eventos técnicos que dão liberdade
de escolha às pessoas e que não implicam qualquer diabolização da reprodução e
da maternidade.
Dizem ainda que certas heroínas sadianas, como
por exemplo a Julieta da novela do mesmo nome, são personagens femininas que se
assumem como autênticos símbolos da mulher sexualmente emancipada. Mas quem
profere este tipo de afirmações esquece que essas “heroínas” aceitam e procuram
alegremente todas as práticas sexuais que os homens apreciam. Ao fim ao cabo
lembram as personagens femininas da pornografia mainstream, muito entusiasmadas
com práticas que, temos boas razões para supor, não lhes dão qualquer prazer,
embora finjam esse mesmo prazer para inglês ver, isto é, para consumo
masculino.
Esta tese da revolução sexual e das mulheres sexualmente emancipadas parece muito cara a
certos homens, mas estes dão pouca
atenção ao que seja a emancipação sexual. O objetivo desses homens,
embora não declarado, e às vezes não consciente, é o de terem um número cada vez
maior de mulheres recetivas às práticas sexuais que eles apreciam. Ora, se as
palavras são para terem algum sentido, as mulheres emancipadas são as que manifestam
capacidade de se autodeterminarem sexualmente, decidindo o que querem ou não
fazer, não são as que dizem sempre sim a tudo, fingindo que é tudo muito
gostoso e que estão a ter um grande e fabuloso sexo, para depois contarem às
amigas.
Quem fala nestes termos em emancipação sexual feminina ainda não
percebeu que a sexualidade feminina continua confiscada porque sujeita a um modelo
masculino e a um erotismo masculino, construídos e reforçados social e culturalmente.
Hoje, mais do que nunca há muito exibicionismo sexual feminino, mas continua a não
haver liberdade sexual feminina. É bom que nos entendamos e nos deixemos de
mistificações.
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