Capitalismo das plataformas ou tecno feudalismo?!
Assistimos hoje, sob o signo do neoliberalismo, a um novo modelo de capitalismo, o capitalismo das plataformas, que alguns batizaram de tecno feudalismo. Para percebermos este novo modelo, suas implicações e seu retrocesso, ou não, a aspetos determinantes da economia feudal, convém recordarmos alguns pontos básicos.
No feudalismo (Idade Média) a expropriação dos excedentes produzidos era conseguida por meios políticos: havia por um lado os senhores feudais, proprietários da terra que não trabalhavam (politicamente garantidos e reconhecidos) e os servos que nela viviam, obrigados a trabalhar e a entregar ao senhor parte do que produziam. Neste período histórico o Estado era fraco e coexistia com uma enorme fragmentação do poder político.
No capitalismo (capitalismo industrial Idade Moderna) a expropriação passa a decorrer simplesmente na esfera económica, sem interferência política: o assalariado (ganha um salário, é trabalhador livre, aceita, consente no contrato) produz e é o capitalista, dono dos meios de produção e dos recursos produtivos que ao vender os produtos do trabalho - a mercadoria - obtém a mais valia, o lucro.
Esta distinção entre feudalismo e capitalismo (industrial)
é relevante, embora possa não o parecer, porque no capitalismo, a exploração do
trabalho é mais sofisticada e permite maior mistificação: (1)o trabalhador é
livre, não se encontra diretamente vinculado a um regime de servidão e assim
dá-se como que a legitimação da exploração através do contrato de trabalho; (2)desse
modo, é possível separar a esfera política da esfera económica, o que permite
ignorar as ligações entre ambas e tudo é percebido como se uma coisa nada
tivesse a ver com a outra. Claro que se está perante uma aparência, mas as
aparências são sempre importantes e não são descuradas por quem percebe o
processo e a relevância da mistificação.
Tanto num caso como no outro os trabalhadores
encontram-se privados dos meios de produção o que obviamente os leva a ter de
aceitar o sistema para sobreviverem. Mas na aparência, sob o capitalismo, podem
(formalmente) não o fazer porque em termos jurídicos houve uma alteração: já
não são servos, são livres.
Hoje, mundo contemporâneo, era digital, fase neoliberal, o capitalismo vai sofrendo alterações significativa e uma dessas alterações é protagonizada pelo chamado capitalismo das plataformas (digitais). Alguns apodam este tipo de capitalismo de tecno feudalismo, querendo com isso sinalizar uma espécie de retorno ao feudalismo, embora na era da tecnologia digital, sendo os donos das plataformas os novos senhores feudais e os trabalhadores os novos servos, literalmente servidores de serviços – tendo, como se vê, tudo a mesma raiz etimológica.
Neste tipo de capitalismo,
capitalismo das plataformas, vide por exemplo, o caso paradigmático da Huber,
os meios de produção pertencem ao trabalhador e toda a despesa é suportada por
este para produzir o serviço, o papel do capitalista consiste em permitir-lhe
aceder ao mercado (clientes) a troco de uma percentagem que paga à plataforma.
Como sabemos, a Uber é uma empresa
que através de um aplicativo disponibiliza clientes para prestadores de serviço
de transporte mediante o pagamento de uma percentagem/taxa. Os motoristas, em
vez de serem considerados trabalhadores são considerados empresários em nome
individual, e a empresa capitalista, a Huber, estabelece a ligação entre quem
precisa do serviço e quem se propõe fornecê-lo, com ganhos, alega, para todos, nomeadamente
para o utilizador em relaçao ao mercado clássico de transportes (este aspeto é
obviamente muito sedutor).
Os motoristas
podem sentir que não tem patrão que são o seu próprio patrão, mas esquecem que se
isso é verdade, no plano formal, também é verdade que a liberdade que ganharam
foi a de não ter trabalho certo, nem direito a reforma, ferias pagas e outras
garantias tao penosamente conquistadas pela classe trabalhadora. Neste modelo é
o trabalhador/empresário individual que é dono dos meios de produção e que tem
encargos com esta, mas na mesma o capitalista apropria-se do excedente da
produção.
Há duas consequências perversas neste modelo de capitalismo:
(1) Por um lado, o trabalhador, quem produz, neste
caso quem produz um serviço, não tem direitos laborais porque não lhe é
reconhecido esse estatuto.
(2) Por outro, esta estrutura de exploração entra
em colisão com a forma clássica de capitalismo presente, por exemplo, nas
empresas de transportes, vulgo táxis, e prejudica esses trabalhadores a quem os
patrões podem com pretexto convincente reduzir os direitos, desde logo o salário,
dada a concorrência que o modelo alternativo introduziu.
Este novo modelo de capitalismo põe assim
em causa as relações laborais do modelo clássico, podendo levar à degradação acelerada
dos direitos dos trabalhadores, conquistados à custa de longas e penosas lutas.
Os empregadores capitalistas clássicos, confrontados com um competidor que se
fortaleceu porque ignorou as regras do jogo que eles, todavia, tiveram de
observar, sentir-se-ão pressionados a diminuir salários e regalias.
Acontece ainda que ao isolar os trabalhadores, ao impor vínculos precários e frágeis com a empresa, pelo regime de precariato que instala, não cria condições para as suas justas reivindicações.
Postas as coisas nestes termos, vejamos agora se de
facto é justificável estabelecer uma analogia consistente entre este modelo de
capitalismo e o regime económico feudal. Vou apresentar a síntese a que cheguei
e cabe a quem lê decidir:
(1) O senhor feudal tinha domínio sobre a terra
enquanto meio de produção, agora o empresário capitalista não é detentor dos
meios de produção, mas tem o domínio sobre um algoritmo que lhe permite controlar
o mercado, e, como sabemos, se não houver mercado não há produção.
(2) Neste novo tipo de capitalismo a mediação entre o
explorador e o explorado é feita pelo mercado, que o explorador domina e
controla. Há uma forma impessoal de dominação que a esconde, coisa que não ocorria
no modelo feudal – a relaçao era pessoal e direta.
(3) No modelo do capitalismo das plataformas, tal como
no modelo feudal, o dono, agora não da terra, mas do algoritmo não paga salário,
todavia também expropria o trabalhador de uma parte do rendimento do seu
trabalho.
(4) Como no feudalismo, os trabalhadores não têm
direito a reforma, a segurança social, a proteção na doença, não tem horário,
etc. e ainda tem de financiar as suas próprias ferramentas de trabalho e custos
inerentes ao trabalho.
(5) A empresa capitalista pode em qualquer altura
prescindir dos seus serviços (Precariato) enquanto o servo feudal estava
adstrito à terra, não a podia abandonar, mas também não podia dela ser expulso.
(6) Assim como no feudalismo o estado era fraco, quase
só nominal, também agora se defende e persegue o ideal de um estado fraco que não
intervenha nos negócios, que não crie problema, que não regulamente e que
sobretudo não vigie se a regulamentação é cumprida. Um estado fraco é mais fácil
de cooptar pelos agentes económicos poderosos.
Aguardo os vossos comentários.