sexta-feira, 12 de agosto de 2022

 

Capitalismo das plataformas ou tecno feudalismo?!

Assistimos hoje, sob o signo do neoliberalismo, a um novo modelo de capitalismo, o capitalismo das plataformas, que alguns batizaram de tecno feudalismo. Para percebermos este novo modelo, suas implicações e seu retrocesso, ou não, a aspetos determinantes da economia feudal, convém recordarmos alguns pontos básicos.  

No feudalismo (Idade Média) a expropriação dos excedentes produzidos era conseguida por meios políticos: havia por um lado os senhores feudais, proprietários da terra que não trabalhavam (politicamente garantidos e reconhecidos) e os servos que nela viviam, obrigados a trabalhar e a entregar ao senhor parte do que produziam. Neste período histórico o Estado era fraco e coexistia com uma enorme fragmentação do poder político.

No capitalismo (capitalismo industrial Idade Moderna) a expropriação passa a decorrer simplesmente na esfera económica, sem interferência política: o assalariado (ganha um salário, é trabalhador livre, aceita, consente no contrato) produz e é o capitalista, dono dos meios de produção e dos recursos produtivos que ao vender os produtos do trabalho - a mercadoria - obtém a mais valia, o lucro.

Esta distinção entre feudalismo e capitalismo (industrial) é relevante, embora possa não o parecer, porque no capitalismo, a exploração do trabalho é mais sofisticada e permite maior mistificação: (1)o trabalhador é livre, não se encontra diretamente vinculado a um regime de servidão e assim dá-se como que a legitimação da exploração através do contrato de trabalho; (2)desse modo, é possível separar a esfera política da esfera económica, o que permite ignorar as ligações entre ambas e tudo é percebido como se uma coisa nada tivesse a ver com a outra. Claro que se está perante uma aparência, mas as aparências são sempre importantes e não são descuradas por quem percebe o processo e a relevância da mistificação.

Tanto num caso como no outro os trabalhadores encontram-se privados dos meios de produção o que obviamente os leva a ter de aceitar o sistema para sobreviverem. Mas na aparência, sob o capitalismo, podem (formalmente) não o fazer porque em termos jurídicos houve uma alteração: já não são servos, são livres.

Hoje, mundo contemporâneo, era digital, fase neoliberal, o capitalismo vai sofrendo alterações significativa e uma dessas alterações é protagonizada pelo chamado capitalismo das plataformas (digitais). Alguns apodam este tipo de capitalismo de tecno feudalismo, querendo com isso sinalizar uma espécie de retorno ao feudalismo, embora na era da tecnologia digital, sendo os donos das plataformas os novos senhores feudais e os trabalhadores os novos servos, literalmente servidores de serviços – tendo, como se vê, tudo a mesma raiz etimológica.

Neste tipo de capitalismo, capitalismo das plataformas, vide por exemplo, o caso paradigmático da Huber, os meios de produção pertencem ao trabalhador e toda a despesa é suportada por este para produzir o serviço, o papel do capitalista consiste em permitir-lhe aceder ao mercado (clientes) a troco de uma percentagem que paga à plataforma.

Como sabemos, a Uber é uma empresa que através de um aplicativo disponibiliza clientes para prestadores de serviço de transporte mediante o pagamento de uma percentagem/taxa. Os motoristas, em vez de serem considerados trabalhadores são considerados empresários em nome individual, e a empresa capitalista, a Huber, estabelece a ligação entre quem precisa do serviço e quem se propõe fornecê-lo, com ganhos, alega, para todos, nomeadamente para o utilizador em relaçao ao mercado clássico de transportes (este aspeto é obviamente muito sedutor).

Os motoristas podem sentir que não tem patrão que são o seu próprio patrão, mas esquecem que se isso é verdade, no plano formal, também é verdade que a liberdade que ganharam foi a de não ter trabalho certo, nem direito a reforma, ferias pagas e outras garantias tao penosamente conquistadas pela classe trabalhadora. Neste modelo é o trabalhador/empresário individual que é dono dos meios de produção e que tem encargos com esta, mas na mesma o capitalista apropria-se do excedente da produção.

Há duas consequências perversas neste modelo de capitalismo: 

(1) Por um lado, o trabalhador, quem produz, neste caso quem produz um serviço, não tem direitos laborais porque não lhe é reconhecido esse estatuto. 

(2) Por outro, esta estrutura de exploração entra em colisão com a forma clássica de capitalismo presente, por exemplo, nas empresas de transportes, vulgo táxis, e prejudica esses trabalhadores a quem os patrões podem com pretexto convincente reduzir os direitos, desde logo o salário, dada a concorrência que o modelo alternativo introduziu.

Este novo modelo de capitalismo põe assim em causa as relações laborais do modelo clássico, podendo levar à degradação acelerada dos direitos dos trabalhadores, conquistados à custa de longas e penosas lutas. Os empregadores capitalistas clássicos, confrontados com um competidor que se fortaleceu porque ignorou as regras do jogo que eles, todavia, tiveram de observar, sentir-se-ão pressionados a diminuir salários e regalias.

Acontece ainda que ao isolar os trabalhadores, ao impor vínculos precários e frágeis com a empresa, pelo regime de precariato que instala, não cria condições para as suas justas reivindicações.

Postas as coisas nestes termos, vejamos agora se de facto é justificável estabelecer uma analogia consistente entre este modelo de capitalismo e o regime económico feudal. Vou apresentar a síntese a que cheguei e cabe a quem lê decidir:

(1) O senhor feudal tinha domínio sobre a terra enquanto meio de produção, agora o empresário capitalista não é detentor dos meios de produção, mas tem o domínio sobre um algoritmo que lhe permite controlar o mercado, e, como sabemos, se não houver mercado não há produção.

(2) Neste novo tipo de capitalismo a mediação entre o explorador e o explorado é feita pelo mercado, que o explorador domina e controla. Há uma forma impessoal de dominação que a esconde, coisa que não ocorria no modelo feudal – a relaçao era pessoal e direta.

(3) No modelo do capitalismo das plataformas, tal como no modelo feudal, o dono, agora não da terra, mas do algoritmo não paga salário, todavia também expropria o trabalhador de uma parte do rendimento do seu trabalho.

(4) Como no feudalismo, os trabalhadores não têm direito a reforma, a segurança social, a proteção na doença, não tem horário, etc. e ainda tem de financiar as suas próprias ferramentas de trabalho e custos inerentes ao trabalho.

(5) A empresa capitalista pode em qualquer altura prescindir dos seus serviços (Precariato) enquanto o servo feudal estava adstrito à terra, não a podia abandonar, mas também não podia dela ser expulso.

(6) Assim como no feudalismo o estado era fraco, quase só nominal, também agora se defende e persegue o ideal de um estado fraco que não intervenha nos negócios, que não crie problema, que não regulamente e que sobretudo não vigie se a regulamentação é cumprida. Um estado fraco é mais fácil de cooptar pelos agentes económicos poderosos.

Aguardo os vossos comentários.

7 comentários:

  1. É um texto brilhante e muito sério. A regressão a formas de produção descomprometida, por parte dos "senhores", com os contornos feudais que descreveu, contraria a visão marxista sobre a evolução da História. Se a luta de classes se extingue, deixaremos de fazer história e de caminhar para novas formas de produção e de organização do trabalho. Aquilo que enfrentamos é o empobrecimento dos trabalhadores, legitimada pela tecnologia, ao serviço da exploração em massa. Onde nos leva este novo paradigma social? À quebra total dos vínculos laborais sob a falsa visão americana do empreendedorismo inerente ao self-made man?

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  2. Bom dia. Uma pequena correção: é a Uber e não Huber. Muito sintomático e de certo modo algo que me interessa dada a minha área de formação académica, é o uso que os novos senhores feudais fazem da linguagem, recorrendo às suas ferramentas prediletas, os média, aquilo a que, possivelmente, Marx chamaria os meios de produção de ideologia. Assim, e por exemplo, o trabalhador deixou de o ser e passou a ser colaborador: ele ou ela não trabalha, "colabora". Só por si tal é um programa ideológico destinado a proteger o capital e a precarizar e desinvestir no trabalho. Esta guerra capital/trabalho tem vindo a agudizar-se nas últimas décadas, após a queda dos regimes comunistas e, lamento, parece estar a levar-nos ao desastre em áreas múltiplas. Gostei do texto, continue.

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  3. Obrigada Ana pelo seu comentário e pelo desafio intelectual que propõe.
    De facto, parece que se está perante um retrocesso a um estádio que é mais retrogrado do que aquele que se criou com o capitalismo industrial produtivo. Mas a história é feita de avanços e recuos, e se calhar este ‘recuo’ corresponde a uma etapa necessária que poderá, pelas contradições que gera, permitir a superação definitiva do capitalismo e criar condições para algo diferente que ainda não conseguimos perceber como se vai processar e onde conduzirá.
    Fazendo um exercício mental: em certo sentido, o absolutismo monárquico representou um retrocesso em relaçao ao feudalismo, mas foi no decurso e vigência do absolutismo que surgiram condições para se fazerem as revoluções liberais que conduziram às democracias liberais.
    Além disso os antagonismos de classe podem ser mistificados, mas, pelo menos ainda neste contexto, nem por isso deixam de estar presentes.
    Para terminar ocorre-me parafrasear José Régio, no seu belíssimo poema, e grita: “não sei para onde vou, só sei que não vou por aqui.”

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  4. Obrigada pelo comentário, Lúcio.
    Sim, esse aspeto novilíngua do neoliberalismo é notável, tiro-lhe o chapéu. Pena as esquerdas, críticas como se deve ser da retórica, tenham tido a infeliz ideia de deitar fora o bebé com a água do banho. Li algures que mais importante do que vencer é convencer, ate por que vence quem convence e não o contrário, como durante muito tempo pensamos, ao afirmarmos que a história é sempre escrita pelo vencedor.
    Só um pormenor, é que o ‘colaborador’ é aquele que labora em companhia, isto é, trabalha junto, neste caso, do capitalista; com este eufemismo, sub-repticiamente, aproxima-se o trabalhador do empregador, e assim ‘anula-se‘ o antagonismo. Portanto o colaborador trabalha, mas o patrão também trabalha, trabalham juntos, com o mesmo objetivo, com a mesma solidariedade, perseguindo os mesmos interesses. Jogada de mestre, temos de reconhecer.

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  5. Considero muito interessante a análise e o paralelismo que estabeleceste entre o sistema económico feudal e o neoliberalismo atual, dando como exemplo o sistema das plataformas digitais, caso concreto da Uber e de como este sistema acaba por ser mais preverso e enganoso do que o sistema feudal e. que os servos deste sistema , no fundo, acabavam por ter mais proteção do que os atuais " empresários individuais" que não têm direito a reforma e outros benefícios, acabando por pagar caro de mais a suposta liberdade que têm. Sempre tive a noção da preversidade do sistema capitalista, todavia, dada a catastrófica experiència do comunismo realizada na União Soviética, tenho muito ceticismo em relação à construção de um sistema mais justo que leve a uma liberdade autèntica, não enganosa e sofisticada. Obrigada pelo teu contributo que apreciei Maria Helena..

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  6. Maria Helena, obrigada pelo comentário.
    De facto, penso que com o neoliberalismo estamos a trilhar um caminho muito perigoso que nos pode conduzir a uma nova barbárie pois estamos a achar natural o desrespeito mais completo pelas pessoas e pela natureza. As pessoas são divididas em ganhadoras e perdedoras e quem perder, paciência, é porque não merece outro destino, não se empenhou o suficiente! Quanto à natureza, só não vê o que esta a acontecer quem não quiser ver.
    A experiência socialista fracassou, é certo, mas é preciso perceber porquê. Infelizmente a esquerda não tem sido pedagógica, e continua acantonada em ideias feitas, não percebendo que tem de estudar e aprender para entender o que se passou e divulgar a compressão desse facto histórico.
    De qualquer modo julgo que há algum consenso quanto às virtualidades do modelo socialista que é um modelo humanista; e se há alguma coisa em que vale a pena apostar é no ser humano e na sua capacidade para se superar a si mesmo; se não acreditarmos nisso, cumprir-se-á o efeito Pigmalião.

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  7. Obrigada com a tua ressonância ao meu comentário, com a qual me identifico. Manda mais.

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