sexta-feira, 8 de abril de 2011

Transformar sexo em trabalho


O tema que vou abordar foi-me sugerido por um programa de televisão a que assisti ontem que tratava da prostituição e falava eufemisticamente em trabalhadoras de sexo e por um anúncio televisivo que procurava promover o uso de preservativos pelos utentes das ‘trabalhadoras’ de sexo. Dada a naturalidade com que o assunto era encarado, pareceu-me que os dois itens televisivos tentavam mais uma vez normalizar a prostituição, o que me parece profundamente errado.

A preocupação em normalizar a prostituição é antiga, médicos, sociólogos e sexólogos tem retomado a questão em diferentes épocas, por exemplo, ainda em meados do século XX, eminentes sexólogos como Benjamin e Masters (1965) consideraram a prostituição como um serviço destinado a satisfazer as necessidades sexuais dos homens.

Os liberais dos nossos dias, cooptando conceitos subversivos como consciência, consentimento e liberdade, defendem que a não legalização da prostituição é um atentado aos direitos humanos, nomeadamente o direito à livre escolha, e rotulam de moralistas todas as pessoas que não concordam com eles neste particular domínio. Mas a hipocrisia desta posição fica bem patente quando lembramos que de uma maneira geral a prostituição decorre, por um lado, da vulnerabilidade de jovens e de mulheres e por outro da superioridade de poder dos homens. As pessoas pobres são particularmente vulneráveis à exploração e dificilmente se pode falar em escolha quando não há reais opções de sobrevivência e quando, ainda por cima, se pretende conferir uma aura de «dignidade» a uma ‘escolha’ intrinsecamente indigna. O mito da escolha exerce função idêntica à de outros mitos culturais que escondem o que se encontra por detrás da realidade, que mistificam a realidade para a tornar aceitável.

O liberalismo clássico, com a teoria do contrato, constitui o suporte filosófico do movimento que defende a legalização da prostituição; mas é bom não esquecer que o liberalismo clássico também, in illo tempore, tentou preservar a submissão das mulheres ao poder masculino, argumentando que pelo contrato de casamento a mulher abdicava voluntariamente do direito a dispor dos seus bens ou a escolher os seus representantes no poder político, pois transferia livremente e por consentimento esses direitos para o marido. Entender a prostituição como contrato entre a prostituta e o cliente incorre exactamente no mesmo vício de raciocinio: a mulher transfere para o homem, a troco de dinheiro, o direito de dispor livremente da sua pessoa na atividade sexual; desse modo é institucionalizada a redução das mulheres a objectos sexuais.

Em minha opinião, legalizar a prostituição é dizer que está certo tratar as mulheres como objectos, como mercadorias que podem ser adquiridas mediante quantias previamente estipuladas. Entender a prostituição como um contrato entre pessoas é despolitizar a prostituição e escamotear que ela é antes de mais e acima de tudo uma questão de poder e uma questão de exploração dos mais fracos pelos mais fortes.

Argumenta-se ainda que a prostituta não se vende como pessoa, vende apenas o seu corpo; mas no Contrato Sexual (1988) a cientista política Carole Pateman, chamou a atenção para o fato de que o sexo do indivíduo não pode ser separado da sua personalidade; isto para dizer que o corpo não é um objecto neutral que se pode separar do «eu» porque o «eu» é sempre um corpo de pensa, sente, deseja; quando a prostituta vende o corpo ela vende algo que é intrínseco à sua identidade e ao seu eu.

Alguns ainda tem o desplante de argumentar que as prostitutas são mulheres que apreciam o sexo e não têm quaisquer preconceitos em relação à atividade sexual; outros vão mesmo ao cúmulo de apresentar a prostituição como paradigma da libertação sexual das mulheres. Mas então porque é que não vemos mulheres ricas, cultas e instruídas dedicarem-se a uma atividade tão libertadora e enriquecedora?

Eu não ataco a prostituição por considerar que as prostitutas ameaçam a família, enquanto valor social, nem penso que as prostitutas devam ser criminalizadas e punidas; bem pelo contrário, concordo com a legislação sueca que criminaliza e considera ofensor o homem que prostitui a mulher. Entendo a prostituição como uma forma extrema de violência e de exploração sexual que se quer mascarar a troco do dinheiro recebido pela prostituta e com o argumento de que ela é adulta e dá o seu consentimento. Entendo que legalizar a prostituição é proteger os direitos sexuais dos homens à custa dos direitos das mulheres, nomeadamente do direito à autonomia sexual e constitui um severo atentado à saúde das mulheres e ao seu bem-estar enquanto pessoas.

Em vez de se lutar pela legalização da prostituição com o argumento de que as prostitutas sairiam beneficiadas, seria desejável que se começasse a refletir sobre a natureza deste ‘trabalho’ e a pensar a sério em eliminar as condições que levam as mulheres a ‘escolhê-lo». Legalizar a prostituição é legalizar a violência sexual, é aceitar a escravatura sexual e a seguir ficar de consciência limpa e de mãos amarradas. É manter invisíveis os danos que a prática da prostituição provoca nas mulheres.

No livro Making Sex Work, Janice Raymond, resume bem a situação: É a troca por dinheiro que permite transformar aquilo que de fato a prostituição é: assédio sexual, abuso sexual e violência sexual , num ‘trabalho’ conhecido como ‘trabalho do sexo comercial’. Um ‘trabalho’ realizado basicamente por mulheres racial e economicamente desfavorecidas e por um enorme número de mulheres e de crianças que foram vítimas na infância de abuso sexual.”

Àqueles que são a favor da legalização da prostituição, que consideram as prostitutas ‘trabalhadoras’ do sexo, que não veem nada de mais nesse tipo de trabalho - um como qualquer outro – pergunto porque é que não extraem as consequências lógicas desse ponto de vista e não estimulam as suas filhas, irmãs, mães ou até mesmo esposas, a seguirem a carreira?

8 comentários:

  1. p.s. Como se diz qui no Brasil: "Pimenta no olho dos outros é refresco".

    ResponderEliminar
  2. Bem Nicole, aqui nós dizemos: pimenta no cú dos outros é refresco. De qualquer modo ilustra a verdade de que o melhor é uma pessoa colocar-se no lugar do outro para depois ver como se sente.
    abraço, adília

    ResponderEliminar
  3. Até acredito que existam muitas "belas da Tarde" lembrando Deneuve, por esse mundo, e que algumas mulheres sem necessidade alguma, a não ser satisfazer uma fantasia, desejem exercer a prostituição.
    Isso pra mim é questão de foro intimo de cada mulher.
    Mas realmente tudo o que vc expos sobre as motivações da prostituição são validas, legalizar essa pratica pode causar muito mais prejuízo do que algum beneficio para as mulheres.

    ResponderEliminar