sexta-feira, 30 de setembro de 2011

O feminismo e a esquerda

Passa-se com o feminismo e com as feministas algo de paradoxal. É óbvio que as ideias feministas se desenvolveram no contexto de ideologias de esquerda pois estas ideologias, ao afirmarem ideais de igualdade e de liberdade para os seres humanos em geral, independentemente da origem de classe, implicam contradição se não estenderem essa mesma igualdade e liberdade às mulheres. Se recuarmos às origens do movimento encontramos os ideais da Revolução Francesa dos fins do século XVIII, o movimento pela abolição da escravatura nos Estados Unidos em meados do século XIX, as lutas do movimento operário dos fins do século XIX e inícios do século XX e ainda a contestação radical dos anos sessenta. Em todos estes momentos, as mulheres reivindicaram para si em concreto aquilo que era exigido para todos em abstrato. Mas curiosamente, os homens de esquerda, com demasiada frequência para se poder considerar aleatório, mostraram-se francamente hostis à emancipação das mulheres. Basta lembrarmos alguns exemplos sugestivos, o caso de Rousseau, paladino dos ideais democráticos da época, e de Proudhon, defensor das classes trabalhadoras – ambos declaradamente misóginos -, os lideres da luta pela abolição da escravatura e a sua insistência em considerarem inoportuna a reivindicação do sufrágio feminino ou na década de sessenta a recusa dos jovens intelectuais progressistas em inscreverem a questão das mulheres na sua agenda politica centrada na contestação à guerra do Vietnam. A esquerda sempre considerou que a luta das mulheres não era prioritária, revelando enorme miopia politica pois não percebeu quão revolucionário seria esse movimento; muitos sectores da esquerda, politicamente progressistas mostraram-se socialmente reacionários. E não se julgue que são apenas politicos de esquerda a mostrarem tal insensibilidade, encontramos a mesma tendência em cineastas, autores literários consagrados, homens das artes plásticas, etc, etc, o que parece provar que de facto o feminismo se for bem sucedido vai minar o privilégio masculino e este é universal, isto é, dele aproveitam todos os homens de todos os quadrantes politicos, ignorantes ou cultos, ricos ou pobres.

Em contrapartida, vemos que a direita política não tem hesitado em apoiar mulheres para ocuparem cargos politicos importantes; percebendo que a ascensão das mulheres é uma questão de tempo, decide apoiar aquelas que não vão colocar em causa os interesses da direita e com isso só mostra que percebe muito mais de estratégia. Hoje por exemplo, há um certo numero de mulheres que ocupam cargos importantes na cena politica, mas a maioria são mulheres de direita, caso por exemplo de Cristine Lagarde ou de Angela Merkel. Com este lance a direita aproveita a energia de mulheres carismáticas para consolidar os seus objectivos e “lima os dentes” das autênticas feministas.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Mulheres e criação artística

Para Camille Paglia, antifeminista contemporânea norte-americana, a produção cultural e a criação artística são prerrogativa masculina, são o símbolo de uma sexualidade agressiva e isso explica por que razão o número de mulheres que se tem destacado nestes domínios é irrisório com a consequente assunção de que essas mesmas mulheres seriam de alguma maneira pouco femininas porque a natureza feminina teria implicações completamente diferentes.

A tese de Camille Paglia repousa num determinismo biológico incompatível com um programa feminista progressista que vise o progresso no sentido de uma maior igualdade de oportunidades entre os sexos e se as coisas se passassem naturalmente dessa maneira, então o melhor seria desistir. Todavia, o que esta e outras explicações essencialistas têm em comum é que os factos que elas explicam podem ser explicados de maneira completamente diferente, isto é, há explicações concorrentes, porventura bem mais plausíveis. O que é facto é que as mulheres foram marginalizadas do domínio da criação artística como o foram de outras esferas de poder e tal marginalização não teve a ver com motivos de natureza biológica mas tão somente com a preocupação de as afastar de qualquer esfera da ação humana que lhes garantisse independência e desenvolvimento. Os exemplos são tantos e tão variados que dificilmente se pode negar esta afirmação; mesmo recentemente conhecemos casos de mulheres praticamente impedidas de desenvolverem os seus talentos por razões de imposição social e cultural e remetidas para a esfera doméstica de serviço à família, maridos e filhos incluídos.

Em reforço desta explicação há o facto de pelo menos a partir de certa altura, séculos XVIII e XIX, terem começado a surgir grandes escritoras (embora muitas usassem pseudónimos masculinos) enquanto as mulheres continuavam ausentes nos domínios da pintura, escultura, música ou arquitetura. Como explicar esta diferença a não ser pelo facto da escrita se poder processar no remanso do lar, na esfera da vida privada onde as mulheres encontravam obstáculos superáveis, enquanto os outros domínios artísticos implicavam incursão na esfera pública que lhes estava vedada?

Como poderia a sociedade encarar uma pintora que, como era frequente com os pintores, utilizasse modelos nus e frequentasse as academias e o convívio com os colegas masculinos? Ou como poderia uma mulher aprender a arte da arquitetura, dirigir os operários de uma obra, negociar com os proprietários, etc. etc?

A divisão social do trabalho sempre tem desfavorecido as mulheres no sentido destas poderem dar vazão à sua criatividade. Resta ainda dizer que os modelos que ainda hoje são propostos às meninas e mulheres continuam a procurar distraí-las de outro tipo de realizações que não sejam as ligadas aos tradicionais papéis femininos. Portanto, não surpreende que haja tão poucas mulheres nos campos da criação artística, o que surpreende é que ainda apareçam algumas.

domingo, 4 de setembro de 2011

Marx e a questão das mulheres

Embora haja entre marxismo e feminismo uma certa tensão, não podemos deixar de reconhecer que Marx foi uma voz sensível à injustiça com que as mulheres eram (e em muitos aspectos continuam a ser) tratadas. O marxismo é acima de tudo um humanismo - o ser humano está no centro do pensamento marxista. Marx aposta na criatividade do ser humano e na sua capacidade de moldar o mundo exterior e, apesar de reconhecer que os seres humanos estão sempre condicionados pela sociedade em que vivem e pela classe social a que pertencem, acredita que têm potencial para se libertarem.
Marx rejeitou a discriminação contra as mulheres e denunciou a legislação que as proibia de disporem dos seus próprios bens sem a intervenção e o consentimento dos maridos. Acreditava que eram possíveis novas relações entre homens e mulheres desde que se verificassem transformações profundas nas relações de produção e na forma de organização do trabalho. Em várias ocasiões teve oportunidade de mostrar a sua solidariedade para com as mulheres.
Quando, em 1853, a conhecida novelista Lady Bulwer-Lytton tentou publicar as suas ideias políticas - que não coincidiam com as do seu ilustre marido - não só não o conseguiu como foi internada num asilo para alienados mentais; nessa altura Marx publicou um artigo em que a defendia e condenava o sexismo.
Quando escrevia sobre problemas dos trabalhadores não se limitava a referir a situação dos operários; com frequência reportava a situação de mulheres e mesmo de meninas injustamente tratadas, como aconteceu, por exemplo, com o caso de uma menina de nove anos que, tendo caída exausta no chão da fábrica, foi em seguida acordada e obrigada a retomar o trabalho.
Diferentemente de muitos intelectuais de esquerda - caso flagrante do misógino Proudhon - Marx entendia que a verdadeira revolução social só seria conseguida se pudesse contar com a emancipação das mulheres. Esta atitude de Marx é tanto mais de admirar se pensarmos que, mesmo no século XX, o chauvinismo masculino foi uma constante nos movimentos revolucionários liderados pelas elites de esquerda.
Por último, mas não menos importante, Marx criticou a família patriarcal, mostrando como esta reproduzia, ao nível da unidade familiar, as relações de opressão existentes na sociedade mais vasta: a mulher era a escrava e o marido o senhor, o marido era o burguês e a mulher o proletário.

sábado, 3 de setembro de 2011

Artemisa Gentilesch – uma mulher num universo masculino

Ainda hoje há quem defenda, como a anti-feminista Camila Paglia, que a Arte e a criação artística são prerrogativa masculina, de modo que será bom começarmos a dar atenção às mulheres que, contra todas as probabilidades, se conseguiram afirmar num universo cultural definido à partida como masculino. Tal foi o caso de Artemisa Gentileschi (1593-1652), pintora italiana da primeira fase do barroco.
Gentileschi foi a primeira mulher a integrar a Academia da Arte do Desenho de Florença; focou-se em heroínas bíblicas que retratou de um ponto de vista feminino. Assim, por exemplo, influenciada por Caravaggio pintou como ele a cena de Judith com a cabeça de Holofernes. Holofernes era um general assírio apostado em destruir o lar de Judith, uma bela viúva que ele desejava sexualmente. Esta, aproveitando o acesso fácil que tinha à tenda do general, acabou por decapitá-lo. A cena inspirou inúmeros pintores em várias épocas; mas a representação da figura feminina por Artemisa Gentileschi revela uma força e uma determinação que parecem faltar na pintura do mestre e que também não encontramos em outros pintores que trataram o mesmo tema.