Segundo Kant, a atividade sexual humana, como a animal, é de raiz instintiva; encontra-se ao serviço da perpetuação da espécie e, a fim de que esse objetivo seja conseguido, tem de ser gratificante para o indivíduo.
Como qualquer outra atividade instintiva, é de natureza apropriativa: assim como para satisfazermos a fome ou a sede nos apropriamos de alimentos e bebidas (coisas), para satisfazermos a necessidade sexual, apropriamo-nos do sexo de outra pessoa. Mas o sexo não é dissociável da pessoa, por isso, diz Kant, quando nos apropriamos do sexo, tratamos a pessoa como se fosse uma coisa e esse comportamento, não sendo eticamente admissível, transforma a atividade sexual em algo degradante.
Admitido isto, pergunta como podemos minorar os inconvenientes dessa atividade instintiva tão forte e avassaladora e considera que só será possível legitimar a atividade sexual estipulando deveres para aqueles que se lhe entregam; deverão fazê-lo num quadro normativo expresso no contrato de casamento monogâmico: eu posso tratar o outro como um objeto de desejo a partir do momento em que o outro me possa tratar também como um objeto de desejo, isto é, só o consentimento e a reciprocidade legitimam a objetificação.
Kant desenvolveu estas considerações sobre sexo nos finais do século XVIII, ou seja há mais de dois séculos, mas, se tirarmos o invólucro do casamento monogâmico, perfeitamente descartável sem atraiçoar o principio ideológico, restam duas ideias plenas de atualidade, (1) a atividade sexual humana comporta uma dimensão ética porque, quer queiramos quer não, somos animais, mas falantes e racionais, capazes de investir significado no que fazemos e, portanto, (2) percebemos que o sexo, na medida em que implica entrar em relação com o outro, como qualquer outra atividade interpessoal, não pode ignorar os legítimos interesses do outro, isto é os seus direitos, simétricos dos nossos.
Eu acho que esta visão do sexo revela extraordinária lucidez, tão mais surpreendente quanto vem de alguém cuja experiência sexual foi escassíssima, para dizer o mínimo, e que alimentou e expressou sentimentos misóginos; apesar destas limitações óbvias, Kant, personalidade extremamente inteligente e arguta, conseguiu ver mais longe do que muitos outros e, embora nem sempre devidamente reconhecido, ficamos a dever-lhe algo importante.
Poderá dizer-se, como o fez Alan Soble, um expert na matéria, que Kant ignorou a verdadeira natureza humana, que quis preservar para o ser humano uma dignidade e um valor próprios e que quis colocar no sexo aquilo que não lhe convém nem se lhe adapta. Sexo, pretende Soble, nada tem a ver com reciprocidade nem com respeito, nem pelo outro nem sequer por si mesmo, sexo é animal e natural, ponto final, parágrafo, muda de linha. Mas Soble esquece que no ser humano tudo o que é natural é também cultural e, se assim é, não podemos descartar tão facilmente as nossas responsabilidades para com nós próprios e para com os outros.
Parafraseando Linda LeMonchek, que não queria discutir o dualismo cartesiano na cama, ninguém quer discutir reciprocidade na cama, mas não pode sentir, nem de perto nem de longe, que ela está em falta, porque, se isso acontecer, pura e simplesmente não alinha, ou não deve alinhar; ponto final, parágrafo, muda de linha.
P.S. Claro que há considerações de Kant sobre sexo com as quais não concordo, Claro que Kant revelou em vários escritos disposições nitidamente misóginas; mas os aspetos acima referidos constituem, em minha opinião, o núcleo do seu pensamento sobre esta matéria e de certo modo contém as potencialidades positivas que assinalei.
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