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domingo, 9 de setembro de 2012

Sexo, Amor e Romance nos Mass Media

Mary-LouGalician, autora de Sex, Love and Romance in the Mass Media, considerou que os mass media têm inculcado nas pessoas uma série de ideias feitas acerca do amor, autênticos mitos românticos. O problema mais grave com estes mitos é que, embora muitas pessoas os reconheçam enquanto tal, numa estrutura mais profunda do seu psiquismo “acreditam” neles e, assim, quando as expectativas irrealistas que eles veiculam chocam com a dura realidade preferem desistir dessa realidade a desistirem deles.
Apresento a seguir essas crenças que, embora tão caras e confortáveis, deveríamos escrutinar criticamente:

1. O amor à primeira vista existe realmente.

2. Quem ama adivinha aquilo que a pessoa amada pensa ou sente, mesmo que ela não verbalize.

3. Se houver amor, o sexo não vai constituir qualquer problema, será sempre maravilhoso.

4. O homem não deve ter estatura, idade, riqueza inteligência ou saber inferior a companheira.

5. Se uma mulher amar verdadeiramente um homem pode mudar o caráter deste para melhor, pode transformar um “bruto” num “príncipe”.

6. Um homem não espera que a mulher pareça um “ícone sexual”.

7. O que é preciso é haver amor, as diferenças de valores e de opiniões não importam.

8. O verdadeiro companheiro completa a amada, satisfazendo as suas necessidades e permitindo que os seus sonhos se tornem realidade.

9. Na vida real os atores são muitas vezes parecidos com os carateres românticos que personificam.

10. Dado que os retratos de romance dos mass media não são reais eles não nos afetam.

Se você espera isto do amor e subscreve algumas ou todas estas crenças, está na altura de parar para pensar!

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Sexo e reciprocidade em Kant

Segundo Kant, a atividade sexual humana, como a animal, é de raiz instintiva; encontra-se ao serviço da perpetuação da espécie e, a fim de que esse objetivo seja conseguido, tem de ser gratificante para o indivíduo.

Como qualquer outra atividade instintiva, é de natureza apropriativa: assim como para satisfazermos a fome ou a sede nos apropriamos de alimentos e bebidas (coisas), para satisfazermos a necessidade sexual, apropriamo-nos do sexo de outra pessoa. Mas o sexo não é dissociável da pessoa, por isso, diz Kant, quando nos apropriamos do sexo, tratamos a pessoa como se fosse uma coisa e esse comportamento, não sendo eticamente admissível, transforma a atividade sexual em algo degradante.

Admitido isto, pergunta como podemos minorar os inconvenientes dessa atividade instintiva tão forte e avassaladora e considera que só será possível legitimar a atividade sexual estipulando deveres para aqueles que se lhe entregam; deverão fazê-lo num quadro normativo expresso no contrato de casamento monogâmico: eu posso tratar o outro como um objeto de desejo a partir do momento em que o outro me possa tratar também como um objeto de desejo, isto é, só o consentimento e a reciprocidade legitimam a objetificação.

Kant desenvolveu estas considerações sobre sexo nos finais do século XVIII, ou seja há mais de dois séculos, mas, se tirarmos o invólucro do casamento monogâmico, perfeitamente descartável sem atraiçoar o principio ideológico, restam duas ideias plenas de atualidade, (1) a atividade sexual humana comporta uma dimensão ética porque, quer queiramos quer não, somos animais, mas falantes e racionais, capazes de investir significado no que fazemos e, portanto, (2) percebemos que o sexo, na medida em que implica entrar em relação com o outro, como qualquer outra atividade interpessoal, não pode ignorar os legítimos interesses do outro, isto é os seus direitos, simétricos dos nossos.

Eu acho que esta visão do sexo revela extraordinária lucidez, tão mais surpreendente quanto vem de alguém cuja experiência sexual foi escassíssima, para dizer o mínimo, e que alimentou e expressou sentimentos misóginos; apesar destas limitações óbvias, Kant, personalidade extremamente inteligente e arguta, conseguiu ver mais longe do que muitos outros e, embora nem sempre devidamente reconhecido, ficamos a dever-lhe algo importante.

Poderá dizer-se, como o fez Alan Soble, um expert na matéria, que Kant ignorou a verdadeira natureza humana, que quis preservar para o ser humano uma dignidade e um valor próprios e que quis colocar no sexo aquilo que não lhe convém nem se lhe adapta. Sexo, pretende Soble, nada tem a ver com reciprocidade nem com respeito, nem pelo outro nem sequer por si mesmo, sexo é animal e natural, ponto final, parágrafo, muda de linha. Mas Soble esquece que no ser humano tudo o que é natural é também cultural e, se assim é, não podemos descartar tão facilmente as nossas responsabilidades para com nós próprios e para com os outros.

Parafraseando Linda LeMonchek, que não queria discutir o dualismo cartesiano na cama, ninguém quer discutir reciprocidade na cama, mas não pode sentir, nem de perto nem de longe, que ela está em falta, porque, se isso acontecer, pura e simplesmente não alinha, ou não deve alinhar; ponto final, parágrafo, muda de linha.

P.S. Claro que há considerações de Kant sobre sexo com as quais não concordo, Claro que Kant revelou em vários escritos disposições nitidamente misóginas; mas os aspetos acima referidos constituem, em minha opinião, o núcleo do seu pensamento sobre esta matéria e de certo modo contém as potencialidades positivas que assinalei.

sábado, 25 de agosto de 2012

"Amor confluente" e desigualdades estruturais

Anthony Giddens (1938) é um sociólogo britânico contemporâneo que em The Transformation of Intimacy se debruça sobre o amor e a relação amorosa heterossexual. Conceitos-chave do seu trabalho são os de “amor confluente”, “relação pura” e “plasticidade sexual”.

Segundo Giddens, a erosão das tradições no mundo contemporâneo, visível sobretudo na cultura Ocidental, permitiu aos indivíduos definirem com muito maior liberdade pessoal o que querem para as suas vidas e fazerem escolhas que os definem e que constroem a sua própria identidade. Neste novo contexto, surgiu aquilo a que ele chama “amor confluente” que se carateriza pelo facto de a relação amorosa ser uma “relação pura”, isto é, uma situação em que as pessoas mantêm a relação por ela própria e não por interesses estranhos: filhos, interesses familiares ou económicos; as pessoas apenas se mantém juntas enquanto a relação se revela gratificante, enquanto ambas as partes se sentem satisfeitas e decidem permanecer juntas.

Em sua opinião, este tipo de relação exige igualdade entre as partes, ambas responsáveis pela manutenção da relação; neste tipo de relação, as preocupações com o corpo e com a exploração do prazer sexual são fundamentais. Neste aspeto, as mulheres teriam conseguido uma autêntica revolução na sua autonomia sexual procurando o seu prazer de modo não decidido pelos homens, tornada possível graças à dissociação entre prazer e procriação, e permitiu que a sexualidade fosse definida como um meio de auto realização, como uma forma de expressão e de intimidade – aquilo a que chama “plasticidade sexual”.

Giddens é otimista pois pensa que estas transformações na vivência da intimidade amorosa criam condições de igualdade entre homem e mulher e têm repercussão a nível da vida social. Quer dizer, aquilo a que ele chama amor confluente, plasticidade sexual e relação pura têm em sua opinião potencial para operar transformações a nível da vida social. Uma relação pura bem-sucedida, mesmo supondo alguma tensão entre as partes, cria condições de estabilidade psicológica e de segurança ontológica. Contra quem insiste na natureza opressiva da intimidade, Giddens insiste que esta pode operar transformações no sentido da democratização das relações pessoais, no sentido da igualdade de género.

Todavia, esta visão otimista não é corroborada por algumas feministas, como por exemplo, Christine Delphy muito cética quanto a possibilidade de se operarem modificações a nível do social e das estruturas patriarcais se se começar pela família e pela relação heterossexual. Giddens parece estar bem-intencionado, mas também parece ignorar uma das mais persistentes teses das autoras feministas, a de que a opressão tem na origem e no seu cerne estruturas opressivas e não relações individuais. Mas, se aceitarmos a existência de um movimento dialético, podemos supor que mudanças a nível das relações individuais também podem potenciar mudanças sociais.

terça-feira, 10 de julho de 2012

Para uma teoria da alienação feminina

Ficamos a dever a Karl Marx a exploração do conceito de alienação; mas a teoria da alienação, tal como Marx a formulou, não é aplicável à condição das mulheres enquanto mulheres.
Segundo Marx, o trabalhador é alienado por dois motivos básicos: (1) primeiro porque é despojado do produto do seu trabalho – não tem controlo sobre aquilo que produz – (2)segundo, porque é impedido de realizar as suas potencialidades como ser humano, dado que não participa na organização do trabalho, não controla a sua atividade produtiva e é encarado como mais uma ferramenta que está ali para produzir um produto. A alienação do trabalhador é-lhe imposta de fora e ele sente-a negativamente; implica a fragmentação da pessoa humana e o impedimento de exercer funções especificamente humanas.
Para o trabalhador alienado, o trabalho em vez de ser fonte de humanização é uma função à qual ele quer escapar o mais depressa possível, apenas um fardo que tem de carregar para subsistir, como o animal de carga, alimentado pelo dono enquanto desempenhar a tarefa.

Mas a alienação sofrida pela mulher enquanto mulher – e não apenas enquanto trabalhadora - é diferente da alienação dos trabalhadores e Marx não forneceu instrumentos concetuais para lidarmos com ela. Assim, torna-se necessário construir uma teoria da alienação que a explique.

(1) Em primeiro lugar, a mulher sofre alienação cultural porque é obrigada a assimilar uma cultura para a qual não contribuiu, da produção da qual foi metódica e sistematicamente afastada, cujo objetivo básico é dominá-la; para o percebermos, basta lembrar a linguagem e a carga sexista implícita, a literatura enquanto veículo de misoginia, a ciência e a filosofia, igualmente eivadas de preconceitos sexistas, veiculando uniformemente uma imagem desvalorizada da mulher.

(2)Em segundo lugar, outra fonte de alienação é a objetificação sexual das mulheres, alienadas da sua própria sexualidade, convidadas a verem-se como objetos passivos do desejo de outrem, estimuladas a assumirem um modelo masculino de sexualidade, apresentado como universal. A objetificação sexual significa ser identificada com o corpo, reduzida ao corpo, que como sabemos até tem sido alvo de depreciação pelas religiões, culturas em geral e mesmo pelo senso comum: o ser humano tem corpo, mas a sua dignidade, o seu valor, entende-se, reside na sua mente e personalidade. A objetificação sexual das mulheres é uma forma de empobrecer o seu ser e de o fragmentar.

(3) Por último, mas não menos importante, as mulheres são alienadas do seu próprio corpo que, ao invés de entenderem como um instrumento para conquistarem o mundo e transcenderem a sua condição animal, lhes é apresentado como algo passivo que se destina apenas a ser visto e, em certas condições, a ser apreciado: uma mulher verdadeiramente feminina não corre, não salta, não se arrisca, não é uma «Maria rapaz»; é sossegada, bonita, decorativa.

Todos estes aspetos distinguem a alienação sofrida pelos trabalhadores da sofrida pelas mulheres; (4) mas há um outro, porventura ainda mais preocupante e a requerer explicação pela perplexidade que suscita: enquanto os trabalhadores experimentam a alienação como algo negativo e reagem com a percepção mais ou menos clara de que ela representa uma ameaça à sua identidade como seres humanos plenos, as mulheres, muitas mulheres, são cúmplices da sua própria alienação, não a percebem negativamente e até tiram prazer dela e em muitos casos ainda procuram melhorar a sua «performance», procurando tornar-se mulheres melhores, mais femininas, no que a feminilidade implica de alienação.
Este último aspeto é extremamente importante e uma teoria da alienação das mulheres precisa de explicar. Ora, a chave para a compreensão deste fenómeno parece residir no narcisismo feminino que ao mesmo tempo que resulta da objetificação a reforça e a torna prazerosa já que a mulher tira satisfação erótica do seu corpo enquanto objeto belo.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Sexualidade feminina - alguns equívocos

Todas as pessoas têm necessidade de amor e de calor humano; quando essa necessidade é canalizada para o sexo genital, como se este fosse o único objeto capaz de a satisfazer, falamos em erotismo. Ora, há uma diferença de fundo entre o modo como os homens exprimem o erotismo e o modo como as mulheres o vivem. Os homens desejam as mulheres e nesse sentido comportam-se como sujeitos eróticos; as mulheres desejam ser desejadas pelos homens e nesse sentido percebem-se a elas próprias como objetos eróticos. Assim, enquanto os homens vivem ativamente a sua sexualidade, para uma mulher a sexualidade consiste em ser sexy, em ser sexualmente atraente.

Nas mulheres, e falamos na generalidade dos casos, a sexualidade não exprime um desejo autónomo dirigido para um “objeto” exterior; as mulheres não se assumem como sujeitos dotados de sexualidade e esta atitude é ao mesmo tempo o sintoma de uma situação objetiva de dependência e de subordinação em relação aos homens e o reforço dessa mesma subordinação.

Se, nas mulheres, a sexualidade é a expressão da sua dependência e subordinação percebe-se por que é que usam o sexo para tentar reverter a situação, enquanto arma para “prender” o homem. O curioso ainda é que, uma vez atingido esse objetivo, é frequente desinteressarem-se do sexo.
Este paradoxo é resolvido se percebermos que não se entregam ao sexo pelo prazer que este lhes possa dar, mas como meio para atingir outra coisa, e, nesse processo, estão mais interessadas em agradar ao homem do que em que este lhes agrade. Uma vez atingido o objetivo, uma vez “laçado” o homem, o sexo é descartado como mercadoria sem valor e surgem as tão badaladas, quase anedóticas, dores de cabeça, ou as desculpas com as crianças que absorvem, diz-se, toda a sua energia pela atenção e cuidados que requerem.

Estes são alguns equívocos da vivência da sexualidade pelas mulheres e enquanto não forem encarados com realismo, não se afigura que sejam possíveis grandes progressos na sua emancipação sexual.

domingo, 24 de junho de 2012

O 'Eu' e o 'Outro' - transcendência e imanência

As categorias de imanência e de transcendência desempenham um papel fundamental na ontologia existencialista e, particularmente em Simone de Beauvoir, explicam o curso de vida diferente de homens e de mulheres.

A transcendência é o processo através do qual um ser humano ultrapassa – transcende - a condição dada à partida e cria a sua própria vida, fazendo escolhas e tomando decisões. Do ponto de vista metafísico, o sujeito orienta-se para o mundo dos possíveis e não se limita a aceitar o mundo dado como um destino a que passivamente se submete.

Como de Beauvoir refere, os meninos são socializados desde a mais tenra infância no sentido de se tornarem independentes dos adultos, de correrem riscos, fazendo-lhes sentir que se é mais exigente para com eles porque de alguma maneira são superiores: um menino não chora, não se queixa dos outros, não é mariquinhas, etc. etc. São encorajados a serem independentes e punidos se desistirem facilmente do empreendimento. É sempre a sua subjetividade que é estimulada, sob a forma de auto assertividade e autonomia.

Em flagrante contraste, o conceito de imanência tem implicações completamente diferentes. Viver na imanência é permitir que os constrangimentos e as contingências limitem a liberdade do indivíduo, que as assume ao invés de as procurar ultrapassar. O confinamento físico da vida das mulheres é o símbolo do seu confinamento psicológico, se o mundo exterior lhes é vedado, ou significativamente limitado, deixa de existir o mundo dos possíveis e apenas lhes resta a 'opção’ de se submeterem ao que se espera delas, ao mundo dado, percebido como uma necessidade e uma inevitabilidade.
Ora, as mulheres, na medida em que vivem num mundo social que as define como o ‘Outro’ e não essencial, que deixa o protagonismo aos homens, esses sim, definidos como essenciais, ficam condenadas à imanência e a sua subjetividade, embora dificilmente eliminável, já que é definidora de qualquer ser humano, independentemente do sexo, fica extremamente frágil e enfraquecida, condenada na melhor das hipóteses a afirmar-se por vias ínvias e por processos manipuladores.

domingo, 18 de dezembro de 2011

Shulamith Firestone e o materialismo dialético

Partindo de uma formação filosófica de raiz marxista, Firestone desenvolveu uma análise da opressão das mulheres que pressupõe uma base material. Para essa análise, Marx e Engels forneceram-lhe o método dialético e a concepção materialista dialética da história. Segundo esta concepção, a história não é uma realidade estática de coisas e acontecimentos separados e independentes, mas um processo em que há constantes ações e reações de opostos que se interpenetram e que têm na base condições económicas.

F. estabelece um paralelismo entre a revolução feminista, que em sua opinião as mulheres têm de empreender, e a revolução económica, que se encontrava no horizonte da explanação de Marx e de Engels; considera mesmo que a teorização feminista precisa de ir mais longe porque o fenómeno que intenta explicar tem raízes mais remotas, entroncando no próprio reino animal.

Em Marx e Engels aprecia o facto de não procurarem debitar discursos edificantes acerca da injustiça das desigualdades sociais, como os socialistas utópicos faziam “preconizando um mundo ideal onde privilégio de classe e exploração não existiriam. Também as primeiras feministas tinham postulado um mundo onde o privilégio masculino e a exploração não deviam existir – por mera virtude da boa vontade”. Marx e Engels permitiram-lhe perceber que a situação de opressão em que as mulheres se encontram não muda por pura boa vontade, por mais inspiradora que essa vontade seja. É preciso ir às raízes da opressão, só assim se encontra a resposta para o problema.

A convergência com Marx e Engels fica no entanto por aqui. Porque, para F., não é a situação económica, mas a diferença sexual de natureza biológica que se encontra primariamente na origem da opressão das mulheres. Quer dizer, ao invés de partir da economia parte da biologia. Defende que a opressão sexual é a primitiva, mais antiga que a de classe social, e forneceu o modelo para todas as formas de opressão que se vieram a instalar nas sociedades humanas. Pretende assim que, para alem do nível económico, se encontra o nível sexual e é deste que convém partir.

Na visão que expõe em The Dialectic of Sex coloca na origem do processo histórico a diferença de sexo - não os antagonismos de classe. Por outro lado, considera prioritária a luta pela libertação das mulheres. Consciente da desigualdade económica e racial, não assumiu a tese, cara à intelectualidade de esquerda da época, de que era prioritária a luta de classes, na suposição de que com a abolição das classes se eliminaria a opressão das mulheres. A sua experiência pessoal, bem como a experiência histórica vivida pela União Soviética, não lhe permitiam alimentar muitas ilusões quanto à bondade dessa tese. De facto, ela própria tivera oportunidade de apreciar como os colegas (de esquerda) reagiam às propostas que apresentava, não as considerando oportunas e como presumiam que o papel das participantes femininas nas reuniões políticas deveria ser o de se limitarem a coadjuvar os homens, afinal o papel que desde sempre a sociedade lhes atribuíra. Também na União Soviética se persistia na diferenciação de papéis com uma participação mínima das mulheres na esfera pública, dificuldades em relação ao aborto e contracepção, etc. etc.

Neste contexto, F. defende que, assim como os trabalhadores precisam de controlar os meios de produção, também as mulheres têm de controlar os meios de reprodução, num caso e no outro tem sido essa falta de controlo que tem criado condições favoráveis à opressão.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Erotismo de um só sentido

Ao analisar o erotismo enquanto exploração dos sentimentos e emoções despertadas pelo sexo, Shulamith Firestone chegou a conclusões interessantes, autênticas descobertas para a época, se lembrarmos que publicou o livro no início da década de setenta do século passado. Com extraordinária perspicácia, conseguiu verbalizar e objectivar aquilo que muitas mulheres sentiam e sentem mas não conseguem exprimir e desse modo fica resguardado numa espécie de limbo. Atrevo-me a dizer que, ainda hoje, a maior parte das mulheres e homens teriam muito a ganhar no sentido de viverem vidas mais felizes e realizadas, se lhe dessem alguma atenção.

Firestone mostrou que o erotismo, tal como é expresso na literatura, cinema, publicidade, pornografia e muitas outras formas difusas de transmitir e comunicar mensagens, é diretamente dirigido aos homens – eles são o público-alvo. O erotismo estimula constantemente a sua sexualidade e leva-os a perceberem as mulheres como objetos de “amor”, conseguindo, em simultâneo que as mulheres se identifiquem com essa percepção. É pois sempre um erotismo de um só sentido, nunca visa estimular diretamente as mulheres; implicitamente, o prazer delas é sempre entendido como um prazer vicariante: elas têm prazer não em desejarem os homens mas em sentirem que são desejadas por eles.

De facto, basta darmos atenção á publicidade e pornografia main stream para constatarmos que o erotismo é diretamente dirigido aos homens, não às mulheres: são sempre as mulheres que são objetificadas, nunca os homens. Com tal saturação de imagens e de narrativas, também facilmente se percebe como as mulheres acabam por interiorizar essa objetificação.

Que é o prazer do homem que está em questão talvez pareça mais problemático; mas se percebermos que o suposto prazer que as mulheres parecem experimentar decorre de atos que esses sim indubitavelmente dão prazer ao homem, talvez comecemos a entender como as coisas funcionam e como se está perante uma mistificação: o que importa é o prazer do homem, mas convém parecer que o prazer da mulher é coincidente com o dele. No limite o que se desejaria é que a mulher tivesse autêntico e real prazer com tudo o que dá prazer ao homem; mas se as coisas não se passarem exatamente dessa maneira, desde que se salvem as aparências, também não é assim tão relevante. Afinal elas nem reclamam!

Curiosamente, acontece com o sexo o que acontece com o amor, assim como o homem idealiza a mulher que ama, de tal modo que se pode dizer que não ama a mulher mas antes uma projeção ideal dele próprio, também em termos sexuais constrói o seu prazer com base numa ficção sobre aquilo que dá prazer à mulher que de facto é aquilo que lhe dá prazer a ele.

Deste modo, o erotismo tal como se expressa funciona como instrumento de reforço daquilo a que Firestone chamou sistema de classes sexuais, mais comummente conhecido como sistema de supremacia masculina.

sábado, 1 de outubro de 2011

Feminismo - Igualdade ou liberdade?!

Face à recente disposição do Estado australiano que remove restrições à aceitação de mulheres não só no exército mas especificamente na frente de combate, Clive Hamilton, professor de ética da Universidade Charles Sturt, considera que o feminismo com a sua ênfase na igualdade e não na liberdade continua a equivocar-se.

Clive Hamilton insiste nas diferenças entre os sexos e em como elas deviam ser valorizadas ao invés de tudo se fazer para as diminuir; mas parece esquecer que foi com base nas diferenças que a inferiorização das mulheres foi construída, e que, por isso, as feministas, pelo menos muitas, continuam a olhar com justificada suspeição para o discurso da diferença.

O argumento de Hamilton é o de que serem admitidas nas fileiras de um exército e participarem em combate devia ser rejeitado pelas mulheres pois corresponde a assimilar valores masculinos de violência e conflito. Quer dizer as mulheres reivindicam acesso a postos de combate só para serem iguais aos homens, mas ele pergunta-se se não seria melhor manter as diferenças e valorizá-las e chama à colação a feminista Carol Gilligan que enfatiza as diferenças entre homens e mulheres no domínio da moralidade: as mulheres preocupam-se mais com o cuidado a ter com o outro do que com um dever abstrato, enfatizam mais a responsabilidade do que os direitos, são mais dialogantes e negociadoras, sempre prontas a colocarem-se nos sapatos dos outros.

Quando diz que a valorização da guerra como meio de dirimir conflitos é a vitória de um modo masculino de pensar e que as mulheres estão literalmente a entrar em campo minado, eu acho que em certo sentido ele tem razão. Mas o problema que eu coloco e que ele ilude é o de saber se é possível a libertação das mulheres sem a igualdade de direitos em relação aos homens. Penso que aqui, infelizmente, não é possível queimar etapas, se não se lutar pela igualdade não vai ser possível atingir a liberdade. A história fornece argumentos factuais que corroboram esta tese. Em todos os momentos históricos em que humanidade procurou libertar-se de grilhões o que se constatou foi que essa humanidade se entendia como masculina e em relação às mulheres pretendia deixar tudo na mesma.

A argumentação de Clive lembra vagamente a argumentação dos partidos de inspiração marxista da primeira metade do século XX que consideravam burguesas as reivindicações das feministas e que defendiam que o importante era mulheres e homens lutarem pelos direitos dos trabalhadores e pela mudança social de fundo. Eram partidos politicamente de vanguarda mas socialmente reaccionários e se lhes tivéssemos dado ouvidos não só não se tinha operado a mudança social que preconizavam como as mulheres continuariam no lugar que muitos consideravam natural e desejável.

Quando Hamilton diz que se é para fazerem a política que os homens fazem então para quê pôr mulheres em cargos públicos, o argumento colhe, mas só até certo ponto, pois na mesma ordem de ideias e linha de coerência também deveríamos perguntar por que é que se acabou com o colonialismo se os novos governantes continuam a levar a cabo a exploração das populações; mas não passa pela cabeça de Hamilton e ainda bem, pôr em causa a justiça da luta de libertação dos povos oprimidos pelas potências coloniais.

Penso que a perpetuação do sistema capitalista é compatível com a realização do ideal feminista da igualdade, isto é, o sistema não vai cair pelo facto de reconhecer a igualdade das mulheres, como durante tanto tempo se temeu. A submissão das mulheres aos homens, embora tenha sido reforçada e potenciada pelo sistema capitalista, pressupõe outras raízes e essas tiveram a ver com a diferenciação acentuada de papéis: a produção social para os homens e a reprodução para as mulheres. Assim, em minha opinião só quando for alcançado um patamar estável e consistente de igualdade é que se pode partir para a luta pela liberdade, pelo menos para as mulheres.

Eu não sou cartesiana mas há um aspecto no método preconizado por Descartes que me parece importante: dividir um problema nos seus componentes e procurar resolvê-lo por partes: resolvamos o problema da inferiorização das mulheres, partamos depois para o da sua libertação que terá de ser o da libertação da humanidade no seu todo, homens e mulheres incluídos. Tentar as duas coisas em simultâneo não parece praticável, fazer uma com a desculpa que a outra vem por acréscimo não é realista.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Das desvantagens do modelo sexual de domínio/submissão


Continuar a insistir num modelo sexual de domínio/submissão, com homens ativos/dominadores e mulheres passivas/submissas, não é de modo nenhum irrelevante para a manutenção da ordem social existente, uma ordem que ainda é, sem sombra de dúvida, de supremacia masculina. Não perceber as implicações sociais deste modelo sexual é muito comum e acontece com as próprias mulheres, as primeiras a não entenderem como os seus desejos foram moldados pela cultura dominante em que cresceram e foram educadas.
A prostituição, a pornografia, mas também a violência doméstica, a violação e até mesmo o assédio sexual, cada um destes 'instrumentos’ cumpre à sua maneira uma função: a de mostrar as mulheres como objetos passivos manipulados pelos homens, destinados a satisfazer os seus interesses e necessidades. Neste contexto torna-se muito mais difícil a afirmação social e o sucesso das mulheres em campos como a economia, a cultura ou a política; desse modo, a desigualdade mantém-se e replica-se, sem ser necessário fazer intervir outras medidas, porventura, hoje, politicamente incorretas, e atribuindo-se a situação a constrangimentos naturais.
Senão vejamos, se as mulheres gostam de ser sexualmente dominadas, como o modelo pretende e nos quer fazer crer, então não se encontra uma justificação forte para punir a violência doméstica pois esta será mera expressão da agressividade e dominância masculina que as próprias mulheres aceitam e desejam no campo sexual. O mesmo se passa com a violação e com a presunção de que no fundo qualquer mulher gosta de ser dominada logo gosta de ser violada que é apenas uma outra forma de dominação. De resto, o que é que a pornografia main stream faz que não seja erotizar constantemente a dominação masculina e a submissão feminina! Por outro lado, não é a prostituição a prova provada de que as mulheres estão disponíveis para satisfazerem os homens a troco de dinheiro, para serem usadas e abusadas como objetos?
Tudo isto permite que se contem histórias incríveis mas infelizmente verídicas como a de um magnate brasileiro, rei já não sei de quê, que nos seus oitenta gosta de se mostrar acompanhado por mulheres jovens e bonitas. Instado se esperava que elas gostassem dele respondeu: sabe, eu gosto muito de camarões, mas, quando vou ao restaurante e encomendo, não pergunto aos camarões se gostam de mim, limito-me a comer e a pagar.
Muito instrutivo, não?! Mas voltemos a aspetos mais teóricos. Postular essências metafísicas, neste caso de homens dominadores e de mulheres submissas, é um exercício filosófico, mas não é, como erroneamente se supõe, um exercício inócuo, os filósofos, contrariamente a uma opinião muito divulgada, não dão ponto sem nó. É que se aceitarmos essas essências, temos de aceitar as consequências que delas decorrem e que procurei evidenciar atrás, é uma questão de lógica que nos ensina a extrair consequências a partir de premissas, se não desejamos aceitar a conclusão como verdadeira temos de denunciar a falsidade da premissa de que partiu, mas, se aceitarmos a premissa como verdadeira então a conclusão (lógica) também será verdadeira.

Por tudo isto eu gostaria que uma mulher pensasse duas vezes antes de dizer que para ela o homem tem de ser dominador e que é assim que se sente sexualmente estimulada; ou melhor, ela até pode sentir isso, pois ninguém manda nos seus desejos, mas pode perceber que não é responsável por eles e se eles a colocam numa situação de vulnerabilidade é melhor começar a pensar em substitui-los por outros, é uma tarefa tremendamente difícil, mas se calhar não impossível. Nenhuma pessoa gosta de ser dominada; nem mesmo os animais, experimente prender os movimentos ao seu cão ou gato e aguarde… Você pode é gostar da ideia de que é dominada porque lhe inculcaram essa ideia na sua cabeça, a convenceram de que gosta, de que é assim que deve ser e foi condicionada a associar o prazer sexual a essa ideia. O fisiologista russo Pavlov, a propósito de cães, explicou muito bem como é que estes mecanismos funcionam. Nós não somos cães, mas somos animais, às vezes, para meu gosto, demasiado amestrados.
Está na hora de parar para pensar e dar um pontapé em ideias feitas para nos tramar.

sábado, 23 de julho de 2011

Porque é tão difícil resistir à objetificação


Vem este post a propósito daqueles que insistem em considerar que o facto de os homens objetificarem as mulheres é algo natural, normal e desejável tanto para os homens como para as mulheres. A reflexão que se segue procura lançar alguma luz sobre tão momentoso tema e é inspirada na leitura de Simone de Beauvoir.

Dada a ambiguidade da existência humana, Beauvoir faz-nos perceber que ser um ser humano, independentemente do sexo, é sempre correr o risco de auto-objetificação; esse risco é particularmente exacerbado para as mulheres, porque em relação a elas, diferentemente do que acontece com os homens, tudo na sociedade e na cultura as convida a desistirem de se afirmarem como indivíduos dotados de autonomia e de capacidade para transcenderem a experiência imediata, numa palavra, tudo as convida a desistirem de viver uma vida genuinamente humana.
Cada ser humano é simultaneamente um sujeito dotado de consciência, capaz de transcender o dado, e um objeto corpóreo que pode ser, e é, alvo dos juízos dos outros. A separação sujeito/objeto, referida por Beauvoir e também por Sartre, embora desprovida de uma base ontológica - tal como Descartes a tinha entendido - subsiste porque o eu consciente expressa-se através do corpo e o corpo é o que os outros vêem. Beauvoir não aceita o bi-substancialismo nem o dualismo antropológico; para ela, como para Sartre, no ser humano, mente e corpo são indissociáveis, mas o que ocorre é que do ponto de vista fenomenológico - do que aparece - eu experiencio-me como um sujeito, mas os outros experienciam-me como um objeto, isto é, a nossa experiência é uma experiência de dualismo. Ou, se quisermos reciclar a terminologia, é uma experiência de uma certa tensão entre imanência e transcendência, a primeira prende-nos ao dado, a segunda impele-nos a ir mais além.
Negar-se a encarar esta realidade, afirmando uma subjetividade pura ou negando-a totalmente - aquilo que Sartre designa de má fé – foi, segundo Beauvoir o que ocorreu ao longo do processo histórico com o homem a perceber-se como sujeito e a procurar, por contraponto, perceber a mulher como objeto. Para as mulheres, como os homens tendem a objetificá-las, a primeira reação é anteciparem-se ao lance e objetificarem-se a elas mesmas, mas com isso só simplificam a tarefa, desistindo de assumir uma existência autêntica, independentemente do risco e da angústia que possa comportar.
Posto isto, malgrado todas as dificuldades, para que as mulheres se realizem como seres humanos é necessário não apenas que os homens parem de as objetificar como elas próprias têm de resistir à tentação de se objetificarem a si mesmas e têm de procurar assumir-se como sujeitos responsáveis pela sua vida, com uma palavra a dizer àcerca de si mesmas e do mundo que as rodeia.

sábado, 25 de junho de 2011

“É Preciso Queimar Sade?”


Faut-il Bruler Sade? é o título de uma obra publicada por Simone de Beauvoir em 1951. Sendo Beauvoir uma feminista e Sade um homem que procurou ‘humilhar’ as mulheres através de práticas sexuais de dominação e que deixou testemunho escrito dessas práticas, ficamos um pouco surpreendidas já que a resposta dada à pergunta é decididamente negativa. Se soubermos ainda que o próprio filho do escritor, numa manifestação de repúdio, queimou uma obra do pai e que Albert Camus, contemporâneo de Beauvoir, rejeitou Sade considerando que nele se encontra o fermento do fascismo, ao fazer em pleno século XVIII a apologia de uma sociedade totalitária, a perplexidade aumenta; mas o propósito de Beauvoir é aceitar o desafio de refletir sobre o que se encontra implicado na obra e vida de Sade, na pressuposição de que o que ele escreve é reflexo de experiências vividas. Assim, 'não queimar Sade' não é aceitar as suas ideias nem é isso que Beauvoir vai fazer, é procurar aprender alguma coisa com elas, sobretudo se atendermos a quão perturbadoras são.
Sade tratou mulheres com crueldade extrema, infligindo-lhes dor física escrupulosamente premeditada; nunca considerou qualquer hipótese de reciprocidade na relação sexual e levou a uma forma extrema o modelo sexual do domínio/submissão, através de atos explícitos de violência masculina e de submissão feminina. Nele, aquilo que viria a ser conhecido pela expressão sado-masoquismo encontrou um lídimo representante. Não sendo de modo nenhum um modelo a seguir, refletir sobre Sade, em certo sentido, é refletir sobre a sexualidade humana; é perguntar-se, como Jen-Paul Sartre virá dois séculos depois a fazer, se é possível um indivíduo afirmar-se, através do sexo e do domínio sobre o corpo, como soberano absoluto perante o Outro.