domingo, 25 de novembro de 2012

O capitalismo cultural do século XXI


A sexualidade tem estado submetido ao controlo das autoridades políticas e religiosas desde tempos imemoriais, isto é, tanto quanto a memória alcança. Uma explicação plausível para este facto insiste na centralidade do sexo para a reprodução biológica, socialmente enquadrada, com a necessidade de garantir a transferência da propriedade à descendência legítima do progenitor e de manter a estabilidade necessária à coesão social que, de outro modo, seria ameaçada pela premência e natural indisciplina do desejo sexual. Regular a sexualidade e policiar o desejo tem sido pois uma constante através do processo histórico variando apenas o grau de regulação e de policiamento. A proibição de determinadas práticas sexuais, a determinação da idade legal de consentimento, as leis do casamento, o controlo dos nascimentos, integraram códigos sexuais nas mais diversas partes do mundo, visando manter uma ordem social que tinha sobretudo em vista os interesses dos homens,

Mas o poder qualquer poder estabelecido, malgrado a sua rigidez e severidade, encontra sempre, mais tarde ou mais cedo, normalmente mais tarde, quem o desafie. Foi o que aconteceu primeiro com as mulheres - que lutaram pelo reconhecimento dos seus direitos enquanto pessoas - e, em seguida com a comunidade homossexual e transexual que insistiram no reconhecimento dos seus direitos e estilos de vida, desviantes em relação à norma heterossexual.

Na linha do feminismo das décadas de sessenta/setenta, entendeu-se que o pessoal é político e assim a sexualidade não é considerada apenas uma questão do foro intimo mas é o terreno no qual se travam lutas políticas de natureza emancipatória. São lutas que se decidem no espaço público, como por exemplo, a questão do aborto e da contraceção ou do casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Ao sucesso desta luta emancipatória não foi alheio o facto de grupos sexualmente oprimidos terem acesso ao mercado e terem-se tornado consumidores que o mercado pretende cativar. Isso aconteceu com as mulheres a partir da década de cinquenta, aconteceu algo semelhante com a comunidade gay que veio a revelar, sobretudo a partir de fins do século passado, uma capacidade de consumo não negligenciável. Mas, acabou por ocorrer o que se poderia ter previsto, as mesmas forças que forneceram condições económicas para a emancipação, acabaram por reduzir os efeitos desta canalizando-a em seu benefício.

Nos nossos dias, como sempre, o sexo é acerca de dinheiro, mas é-o a um nível nunca antes atingido, não só porque vende os produtos mais afastados de qualquer conotação sexual, como se vende ele próprio ou o seu simulacro, seja através da pornografia seja através da prostituição, e gera lucros astronómicos para os seus promotores. Claro que sempre que há dinheiro metido no negócio, quem tem a mão na massa gosta e precisa de reconhecimento e de respeitabilidade e assim não surpreendem tentativas, algumas já realizadas em alguns Estados, de legalização da prostituição e de normalização da prática, e de aceitação da indústria pornográfica.

Hollywood, que para além de fábrica de sonhos é fábrica de fazer dinheiro, também se rendeu à indústria do sexo e oferece-nos de bandeja, bem condimentadas comédias românticas onde a prostituição é estetizada, caso flagrante do sucesso comercial que foi, por exemplo, Preety Woman. É que parece não ser suficiente legalizar e normalizar é também necessário embelezar. E assim o capitalismo cultural do século XXI reduz-se a uma cultura do sexo onde o sexo é vendido como uma outra qualquer mercadoria e em simultâneo vende qualquer outra mercadoria.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Sexo e publicidade

A publicidade comercial, à medida que o século XX foi avançando, ao invés de se centrar nas qualidades dos produtos, procurou outra abordagem e tem vindo a adotar progressivamente a estratégia de associar os produtos a desejos e emoções humanas fortes.

Sendo o desejo sexual um desses desejos, o sexo e o prazer sexual passaram a ser constantemente utilizados para vender os mais diversos produtos. Mas, dado o contexto em que vivemos, são as mulheres que são mostradas a darem prazer aos homens: são mostradas como se estivessem sempre desejosas e prontas a saciarem os apetites sexuais destes. Portanto, um primeiro ponto: quando falamos em publicidade e prazer sexual, é do prazer sexual masculino que estamos a falar, como se este fosse o único que importa considerar.

Nessa conformidade,  a postura feminina é quase sempre a passiva, as mulheres são mostradas em poses langorosas e expectantes sem que se vislumbre qualquer indício de participação ativa no sexo que se sugere; as poses e características femininas contrastam abertamente com a atitude masculina: no primeiro caso, um rosto “ingénuo” com um dedo na boca; um olhar tímido ou até intimidado - sem qualquer remota relação com uma situação de poder - ou mesmo apenas partes do corpo da mulher: pernas, seios, como se se tratasse de um objeto e não de uma pessoa; no segundo, homens firmes, com os pés bem assentes no chão, fazendo qualquer coisa, em posturas que sugerem movimento, ação e poder.

Com esta estratégia de atuação, a publicidade continua a dar um contributo importante para manter a imagem das mulheres como seres passivos, vulneráveis, sem vida própria, ajudando pela estetização destes atributos a que muitas, sobretudo jovens, se revejam nesta imagem. Para além dos produtos vende assim valores e ideias, e além disso é normativa: impõe normas: se só são mostradas mulheres de seios grandes, seios grandes vão ser o normal e aí teremos inúmeras outras a recorrerem a cirúrgia estética para fazerem implantes a qualquer custo; se só são mostradas mulheres esbeltas de pernas compridas, a anorexia espreita as demais.

A publicidade cria o ideal da mulher perfeita que quer impingir a qualquer uma de nós; um ideal inatingível, mas nem por isso menos danoso.

sábado, 10 de novembro de 2012

O amor romântico tem uma história

Está na hora de nos perguntarmos sobre o futuro do amor romântico: será que ele vai subsistir ou estará condenado a desaparecer?

 A cultura popular dominante nas sociedades do Ocidente continua a desenvolver-se como se nada estivesse para mudar: canções, filmes, novelas televisivas continuam a apostar no ideal romântico e a comover audiências, nomeadamente audiências femininas. Os apaixonados alimentam ainda a secreta esperança de um amor para sempre, malgrado todas as aparências, visíveis no enorme aumento de divórcios. Mas as pessoas mais avisadas sabem que o amor romântico teve um começo no tempo e no espaço e nada impede que tenha um termo; esteve ligado na sua emergência a determinadas condições sócio económicas e nada permite supor que se mantenha, se as condições que lhe deram origem se modificarem substancialmente.

 Historiadores, sociólogos e filósofos lembram-nos que o ideal romântico começou a ser difundido quando, nas primeiras décadas do século XIX, na sequência da revolução industrial, se verificaram alterações profundas na unidade familiar que se simplificou, restringindo os laços de afinidade a um número reduzido de pessoas – pais e filhos – e substituiu a família alargada dos séculos precedentes que exercia um controlo muito mais constringente sobre todos os membros família, sobretudo os mais jovens.

Na ausência desse cimento aglutinador, começou a desenvolver-se a ideia de que os matrimónios se deviam basear no amor romântico, caraterizado por uma série de clichés, ainda hoje bem presentes; um deles era o da necessidade de existir paixão entre os elementos do casal, coisa que no passado, contrariamente, era vista como elemento perturbador da estabilidade e dos interesses da família alargada, o que facilmente se compreende, se recordarmos que a maioria dos casamentos era de conveniência. Também então o desejo erótico – dos homens, claro - era canalizado para fora do matrimónio e tornado possível pela existência de instituições várias, nomeadamente a prostituição. Agora, a atração erótica passa a ser canalizada para o ideal romântico da pessoa amada e é ligada ao casamento.

No século XIX, sobretudo para a burguesia, que por sua vez se há-de tornar num modelo para as classes inferiores, dois conceitos ganham foros de cidadania, o de individualidade e o de intimidade. Porque o mundo lá fora é frequentemente um ambiente agressivo e hostil onde a pessoa não é reconhecida na sua identidade individual, torna-se mais importante a esfera privada onde ela pode ser valorizada e apreciada. Por sua vez, a afirmação do indivíduo e do individualismo tornam mais premente a escolha pessoal que vai passar a ocupar um lugar importante no ritual do casamento de onde tinha estado desde sempre ausente. Se no passado o casamento era um “negócio” da família, agora passa a ser uma questão de escolha e desse modo dependente da atração sexual recíproca, sublimada e disfarçada através do ideal romântico.

Os sociólogos dão uma ajuda e explicam que casamento de amor foi a “instituição” que permitiu a integração dos indivíduos num mundo novo, completamente diferente do dos séculos precedentes, onde a nota dominante passa a ser o isolamento dos indivíduos e a fragmentação social.

Nesse tipo de sociedade, fragmentada e individualista, as pressões externas para manter a união do casal começam a enfraquecer, mas em certa medida continua a ser necessário manter a estabilidade das uniões para efeitos quando mais não seja da criação das novas gerações; assim torna-se necessário substituir o dever e os constrangimentos familiares por um novo tipo de pressão, e é neste contexto que surge o ideal romântico de amor; por outro lado, num meio onde as coisas mudam com demasiada rapidez, a paixão romântica permite ao casal construir uma ligação que considera preciosa porque o amado e só o amado dá ao amante o sentimento de que é uma pessoa única e insubstituível e lhe fornece um porto de abrigo para a impiedade de um mundo onde, se não a hostilidade, pelo menos a indiferença o esperam. É através do amor que a vida parece ganhar sentido.
Antony Giddens, um filósofo contemporâneo que se debruçou sobre o tema, reconhece que o amor romântico exerceu uma função importante no quadro da emergência da sociedade capitalista, conferindo sentido à vida das pessoas; mas considera que esse papel não mais é necessário e que o surgimento de novas condições contribuirá necessariamente para o declínio do ideal romântico que será substituído por aquilo a que chama amor confluente.

Giddens aponta mesmo o fracasso do amor romântico e o seu potencial destrutivo, pois, em seu entender, contribuiu para alimentar falsas espectativas e acabou criando mais infelicidade do que seria desejável. Por outro lado, a mística romântica, criando sentimentos de culpa nas pessoas, não permitiu que explorassem a sua liberdade a vários níveis, nomeadamente ao nível da liberdade sexual.

Hoje segundo Giddens, já não há lugar para o amor romântico, porque para as pessoas, mercê de vários e convergentes movimentos de libertação, a atração erótica passou a gozar de uma legitimidade que nunca conheceu antes e o controlo da reprodução tornou-se acessível. Desse modo, estabeleceu-se um novo tipo de relação amorosa - o  “amor confluente”; característico do amor confluente é a “relação pura”, uma relação que apenas se mantem enquanto for gratificante para o casal e corresponder ao que dela esperam em termos de satisfação sexual recíproca; é pois uma relação contingente; não há nenhum compromisso indestrutível nem nenhum tipo de obrigação moral, estão juntos enquanto se sentirem bem juntos.

Este tipo de relação amorosa foi possível porque há maior liberdade dos homens e sobretudo das mulheres, passando a existir aquilo que Giddens designa de plasticidade sexual que é o contrário da rigidez sexual anteriormente existente, quando o número de parceiros e de práticas sexuais era bem mais limitado. Hoje as pessoas sentem-se muito mais independentes e também já perceberam que o ideal de "fusão de almas" do amor romântico é uma ratoeira que aprisiona homens e sobretudo mulheres, incapazes de exprimirem verdadeiramente a sua liberdade e autonomia.