domingo, 17 de abril de 2011

Masoquismo feminino ou como fazer da necessidade virtude


Aparentemente as mulheres são masoquistas. Na vida quotidiana, parecem sempre prontas a renunciar aos seus próprios desejos; gostam de se sacrificar pelos outros; aceitam sem contestar a submissão e a subalternidade. Também a sua sexualidade, pelo menos na relação heterossexual, parece ser inerentemente masoquista: aceitam e mostram tirar prazer da relação padrão heterossexual de domínio/submissão. Perante estas aparências, a questão reside em saber se o masoquismo feminino é um traço inato ou se foi adquirido através do processo de socialização. No primeiro caso, estaremos perante um dado essencial que não valerá a pena querer alterar, no segundo, perante algo que foi adquirido e como tal poderá, se as circunstâncias forem diferentes, ser modificado ou eliminado. A hipótese de que parto é a de que o masoquismo feminino foi uma característica adquirida/construída no decurso do processo de socialização.

O masoquismo implica não só submissão, mas também que essa situação seja aceite de bom grado e com naturalidade por quem sofre a sujeição; implica renúncia ao poder. Se o masoquismo for inato também a renúncia ao poder - o desamor pelo poder - deverá ser inato. Mas a possibilidade de o desamor em relação ao poder ser inato não só é contra-intuitiva, como não goza de qualquer evidência empírica e, portanto, o ónus da prova deverá cair sobre quem defende essa hipótese.

O que observamos é que qualquer pessoa se sente atraída pelo poder e obviamente essa atração nada tem de masoquista, bem pelo contrário, é simples expressão da vontade de viver, de se expandir, de ser livre, de controlar a própria vida; atrever-me-ia a dizer que é uma espécie de força vital, presente no mundo humano, mas também no mundo puramente animal, e pretender retirar a uma parte da população, de qualquer desses dois mundos, essa capacidade de atracão é puramente arbitrário, infundamentado, e a requerer inquirição sobre o que tal pretensão esconde.

As pessoas exercem o poder diretamente, quando as circunstâncias o permitem, ou de modo vicariante, indireto, quando apenas têm oportunidade de se aproximarem de quem o detém, para assim exercerem uma qualquer influência. Neste segundo caso, encontra-se a generalidade das mulheres.

Por circunstâncias de natureza vária, os homens, desde tempos imemoriais - o que não significa necessariamente desde sempre - puderam exercer diretamente o poder; as mulheres foram afastadas da partilha desse bem, não renunciaram voluntaria e gostosamente, como se pretende fazer passar com a história do masoquismo.

Da força física, que inicialmente deve ter sido usada para estabelecer uma supremacia, resultou, para a metade masculina da espécie, uma possibilidade de aprendizagem e de desenvolvimento intelectual e obviamente de maior riqueza material, possibilidade esta que foi sistemática e cuidadosamente negadas às mulheres. Só lhes restou o exercício vicariante do poder e por isso não surpreende que se tenham sentido atraídas por homens fortes ou intelectualmente brilhantes ou ricos, sendo que força física, inteligência e dinheiro são três meios de se conseguir ser poderoso. Mas ao aliarem-se com a «casta superior» perceberam que esse poder a que se aliavam tanto podia protegê-las como submetê-las, ou melhor, perceberam, mais ou menos difusamente, que não o podiam desafiar nem provocar, que tinham de se lhe submeter, o que fariam tanto melhor se «amassem a submissão», isto é, se desenvolvessem traços masoquistas de personalidade. Não seguir este caminho e procurar construir uma existência autónoma, na maioria dos casos não foi sequer viável e, mesmo se viável, exigiria uma coragem de que poucos seres humanos costumam ser capazes. De modo que ainda hoje tudo jogo a favor da manutenção deste tipo de relações e tudo favorece a persistência do masoquismo feminino porque, se as sociedades mantiverem esta assimetria, não é expectável qualquer alteração.

Homens fortes, inteligentes ou ricos têm assim os instrumentos necessários para manter as mulheres numa situação de subordinação, mas não só estes, todos os homens – membros da confraria masculina - gozam sempre, por inerência, de uma vantagem estrutural sobre as mulheres, o fato de serem homens confere-lhes um estatuto social que é considerado superior e consequentemente invejável.

Resumindo, os homens tiveram poder superior ao das mulheres, (1) estamos a falar de força física; (2) a partir desse poder desenvolveram-se intelectualmente, acumularam riqueza e (3) conseguiram impedir as mulheres de o fazerem, transformando-as em suas servas. Não contentes com o resultado, ou melhor, a fim de garantirem o resultado e evitarem a insubordinação, ainda (4) convenceram as mulheres de que o seu estado era exemplar e deviam amá-lo pela elevação que lhes conferia – masoquismo.

Apesar do resultado conseguido, como o poder, por inerência se sente sempre ameaçado, a casta superior viu-se na necessidade de o reforçar constantemente para o que utilizou diferentes mecanismos culturais que vão desde as religiões até formas mais sofisticadas de conhecimento e de ação. Neste particular domínio, a erotização da dominação cumpriu exemplarmente esse papel de reforço, ao conferir uma carga erótica - sexualmente desejável - à dominação masculina, apresentada como bela e sexy; por isso é que publicidade, novelas e romances e, como não podia deixar de ser, a pornografia, se aprimoram na transmissão dessa mesma mensagem cujo receptor é em primeiro e principal plano o público feminino.

Em traços gerais esta foi a história universal da pulhice humana no que às mulheres diz respeito. Hoje já toda a gente percebeu que a superioridade masculina é um mito, mas também se percebe que o poder masculino não o é! Por isso é que as coisas avançam tão devagar.

sábado, 16 de abril de 2011

Mulheres jovens preferem homens velhos?!

David Buss, um conhecido psicólogo evolucionista, defende que as mulheres são atraídas por homens mais velhos, que dão segurança financeira, porque esse comportamento foi no decurso da evolução humana um comportamento adaptativo já que as mulheres precisavam de homens provedores para as suas necessidades e as das suas proles; teria havido assim como que uma pressão da evolução para se adotar esse tipo de comportamento. A preferência das mulheres por homens mais velhos teria ficado inscrita no código genético feminino.

Mas o que sabemos das sociedades paleolíticas de recoletores/ caçadores não aponta neste sentido; por um lado as mulheres colhiam frutos e contribuíam largamente para a alimentação do grupo, por outro, os caçadores tendiam a dividir entre eles os produtos da caça antes de regressarem ao «lar». Assim, parece, seria indiferente com quem acasalar.

A psicologia evolucionista baseia-se em explicações funcionalistas do comportamento que estão profundamente embebidas em especulação; ora a especulação é necessária mas comporta riscos e por isso qualquer especulação deve manter esse estatuto até ser controlada e comprovada. A natureza especulativa da psicologia evolucionista reside no fato de que ela não consegue formular hipóteses suscetíveis de serem confirmadas ou infirmadas, o que a integra no grupo das pseudo-ciências.

O enquadramento teórico da psicologia evolucionista é o funcionalismo e basicamente este procura explicar um determinado comportamento pela função que desempenha, o que equivale a dizer que o comportamento existe porque desempenha uma função, e, portanto, revela utilidade. Mas não se pergunta para quem é que o referido comportamento afinal é útil, às vezes até pode nem ser útil para a pessoa que o adoptou - forçada a adoptá-lo na ausência de outras alternativas.

A psicologia evolucionista limita-se assim a fornecer uma base pretensamente científica a crenças do senso comum que reforçam a ideologia dominante, por isso, é mais uma vez preciso estar de sobreaviso e denunciar as suas interpretações/especulações.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Controlar o corpo da mulher para manter a dominação


“À medida que as sociedades industriais mudam e que as próprias mulheres oferecem resistência ao sistema patriarcal, as velhas formas de dominação entram em erosão. Mas outras surgem, expandem-se e consolidam-se. Não mais se exige que as mulheres sejam castas ou modestas, que restrinjam a sua esfera de actividade ao lar, ou mesmo que realizem o seu destino apropriadamente feminino na maternidade: A feminilidade normativa cada vez se centra mais no corpo da mulher – não nos seus deveres ou obrigações ou mesmo na sua capacidade para gerar crianças, mas na sua sexualidade, mais precisamente na sua presumida heterossexualidade e na sua aparência.

De fato não há nada de novo na preocupação das mulheres com a juventude e beleza. O que é novo é o crescente poder da imagem numa sociedade também crescentemente orientada para o meio visual. Imagens de feminilidade normativa, pode alvitrar-se, substituíram os tratados religiosamente orientados do passado. Novo também é a expansão desta disciplina a todas as classes de mulheres e o seu envolvimento em todos os ciclos da vida. O que antes era característico da aristocrata ou da cortesã agora é rotina obrigatória para qualquer mulher, seja uma avó ou uma adolescente púbere.

Submeter-se a este novo poder disciplinar é ser «moderna» estar na moda, como argumentei, apresentado normalmente sob disfarce. Este poder é perfeitamente compatível com a corrente necessidade de trabalho pago para as mulheres, o culto da juventude e da elegância e as necessidades do capitalismo avançado de manter altos níveis de consumo. Além disso implica economia na imposição: já que são as próprias mulheres que praticam esta disciplina nos seus corpos e contra os seus corpos, os homens ficam de fora.

A mulher que retoca o make up meia dúzia de vezes ao dia para ver se a base empastou ou se a máscara desapareceu, que se preocupa que o vento e a chuva possam estragar o penteado, que verifica frequentemente se as meias estão bem esticadas, ou que, sentindo-se gorda, vigia constantemente o que come, tornou-se tal como o encarcerado do Panopticon, no seu próprio polícia, comprometido com a sua auto-vigilância. Esta auto-vigilância é uma forma de obediência à ordem patriarcal. É também o reflexo na consciência da mulher do fato de que ela está sob vigilância em aspectos em que ele não está; que independentemente do que quer que ela se torne, ela é fundamentalmente um corpo designado para agradar ou excitar.

Assim, foi induzido em muitas mulheres, nas palavras de Foucauld, «um estado de consciência e de permanente visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder». Já que os padrões de aceitabilidade do corpo feminino são impossíveis de realizar completamente, requerendo como requerem a virtual transcendência da natureza, uma mulher tem de viver grande parte da sua vida com um sentimento permanente de deficiência corporal. Desse modo, um controlo apertado do corpo ganhou uma nova forma de domínio sobre a mente.”

Sandra Lee Bartky, “Foucault, Femininity and the Modernization of Patriarchal Power,” in Katie Conboy e outras, Writing on the Body: female embodiment and feminist theory, p. 148,149.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Transformar sexo em trabalho


O tema que vou abordar foi-me sugerido por um programa de televisão a que assisti ontem que tratava da prostituição e falava eufemisticamente em trabalhadoras de sexo e por um anúncio televisivo que procurava promover o uso de preservativos pelos utentes das ‘trabalhadoras’ de sexo. Dada a naturalidade com que o assunto era encarado, pareceu-me que os dois itens televisivos tentavam mais uma vez normalizar a prostituição, o que me parece profundamente errado.

A preocupação em normalizar a prostituição é antiga, médicos, sociólogos e sexólogos tem retomado a questão em diferentes épocas, por exemplo, ainda em meados do século XX, eminentes sexólogos como Benjamin e Masters (1965) consideraram a prostituição como um serviço destinado a satisfazer as necessidades sexuais dos homens.

Os liberais dos nossos dias, cooptando conceitos subversivos como consciência, consentimento e liberdade, defendem que a não legalização da prostituição é um atentado aos direitos humanos, nomeadamente o direito à livre escolha, e rotulam de moralistas todas as pessoas que não concordam com eles neste particular domínio. Mas a hipocrisia desta posição fica bem patente quando lembramos que de uma maneira geral a prostituição decorre, por um lado, da vulnerabilidade de jovens e de mulheres e por outro da superioridade de poder dos homens. As pessoas pobres são particularmente vulneráveis à exploração e dificilmente se pode falar em escolha quando não há reais opções de sobrevivência e quando, ainda por cima, se pretende conferir uma aura de «dignidade» a uma ‘escolha’ intrinsecamente indigna. O mito da escolha exerce função idêntica à de outros mitos culturais que escondem o que se encontra por detrás da realidade, que mistificam a realidade para a tornar aceitável.

O liberalismo clássico, com a teoria do contrato, constitui o suporte filosófico do movimento que defende a legalização da prostituição; mas é bom não esquecer que o liberalismo clássico também, in illo tempore, tentou preservar a submissão das mulheres ao poder masculino, argumentando que pelo contrato de casamento a mulher abdicava voluntariamente do direito a dispor dos seus bens ou a escolher os seus representantes no poder político, pois transferia livremente e por consentimento esses direitos para o marido. Entender a prostituição como contrato entre a prostituta e o cliente incorre exactamente no mesmo vício de raciocinio: a mulher transfere para o homem, a troco de dinheiro, o direito de dispor livremente da sua pessoa na atividade sexual; desse modo é institucionalizada a redução das mulheres a objectos sexuais.

Em minha opinião, legalizar a prostituição é dizer que está certo tratar as mulheres como objectos, como mercadorias que podem ser adquiridas mediante quantias previamente estipuladas. Entender a prostituição como um contrato entre pessoas é despolitizar a prostituição e escamotear que ela é antes de mais e acima de tudo uma questão de poder e uma questão de exploração dos mais fracos pelos mais fortes.

Argumenta-se ainda que a prostituta não se vende como pessoa, vende apenas o seu corpo; mas no Contrato Sexual (1988) a cientista política Carole Pateman, chamou a atenção para o fato de que o sexo do indivíduo não pode ser separado da sua personalidade; isto para dizer que o corpo não é um objecto neutral que se pode separar do «eu» porque o «eu» é sempre um corpo de pensa, sente, deseja; quando a prostituta vende o corpo ela vende algo que é intrínseco à sua identidade e ao seu eu.

Alguns ainda tem o desplante de argumentar que as prostitutas são mulheres que apreciam o sexo e não têm quaisquer preconceitos em relação à atividade sexual; outros vão mesmo ao cúmulo de apresentar a prostituição como paradigma da libertação sexual das mulheres. Mas então porque é que não vemos mulheres ricas, cultas e instruídas dedicarem-se a uma atividade tão libertadora e enriquecedora?

Eu não ataco a prostituição por considerar que as prostitutas ameaçam a família, enquanto valor social, nem penso que as prostitutas devam ser criminalizadas e punidas; bem pelo contrário, concordo com a legislação sueca que criminaliza e considera ofensor o homem que prostitui a mulher. Entendo a prostituição como uma forma extrema de violência e de exploração sexual que se quer mascarar a troco do dinheiro recebido pela prostituta e com o argumento de que ela é adulta e dá o seu consentimento. Entendo que legalizar a prostituição é proteger os direitos sexuais dos homens à custa dos direitos das mulheres, nomeadamente do direito à autonomia sexual e constitui um severo atentado à saúde das mulheres e ao seu bem-estar enquanto pessoas.

Em vez de se lutar pela legalização da prostituição com o argumento de que as prostitutas sairiam beneficiadas, seria desejável que se começasse a refletir sobre a natureza deste ‘trabalho’ e a pensar a sério em eliminar as condições que levam as mulheres a ‘escolhê-lo». Legalizar a prostituição é legalizar a violência sexual, é aceitar a escravatura sexual e a seguir ficar de consciência limpa e de mãos amarradas. É manter invisíveis os danos que a prática da prostituição provoca nas mulheres.

No livro Making Sex Work, Janice Raymond, resume bem a situação: É a troca por dinheiro que permite transformar aquilo que de fato a prostituição é: assédio sexual, abuso sexual e violência sexual , num ‘trabalho’ conhecido como ‘trabalho do sexo comercial’. Um ‘trabalho’ realizado basicamente por mulheres racial e economicamente desfavorecidas e por um enorme número de mulheres e de crianças que foram vítimas na infância de abuso sexual.”

Àqueles que são a favor da legalização da prostituição, que consideram as prostitutas ‘trabalhadoras’ do sexo, que não veem nada de mais nesse tipo de trabalho - um como qualquer outro – pergunto porque é que não extraem as consequências lógicas desse ponto de vista e não estimulam as suas filhas, irmãs, mães ou até mesmo esposas, a seguirem a carreira?