Sandra Lee Bartky em Femininty and Domination dedica um capítulo à análise de uma consensual maior «vocação» das mulheres para suportarem afetivamente os seus companheiros, maridos, namorados ou amantes, sem esperarem reciprocidade da parte deles, como se este comportamento, estando inscrito na essencia da feminilidade, fosse natural e espectável. Tal desequilíbrio – uma troca afetiva profundamente assimétrica - parece provocar alguma frustração em muitas mulheres e assim impõe-se perguntar se não estaremos mais uma vez perante um condicionamento psicológico que em última análise as prejudica e revela o parasitismo masculino decorrente de uma posição hierárquica de supremacia.
Um homem espera da sua companheira apoio emocional; espera que ela esqueça os seus interesses ou, na melhor hipótese, os identifique com os dele próprio, e a mulher sente que é seu dever corresponder a essa expectativa, se quiser ser considerada uma boa mulher. Manter a auto-estima do companheiro, «massajar-lhe» o ego; apoiá-lo incondicionalmente quando se vê confrontado com reveses profissionais ou outros, aligeirar-lhe o fardo da existência, reconfirmá-lo no seu valor e importância, é isso que dela se espera.
Neste sentido, pessoas conservadoras, nomeadamente as anti-feministas assumidas, vêem o casamento como uma relação em que o homem fornece sustento – marido provedor – e a mulher em troca corresponde com atenção e cuidado ao bem-estar físico e psicológico do esposo e da família. Ora em que medida é que este contrato, livremente aceite, pode ser um prejuízo para a mulher e resultar numa relação de exploração? Como pano de fundo pode reconhecer-se que esta relação, ao invés de empoderar a mulher, lhe retira poder porque, ao dar trabalho doméstico e apoio emocional nestes termos, coloca-se completamente na dependência económica do marido e já toda a gente percebeu que isto, a menos que ela consiga impor um contrato de casamento leonino, pode vir a revelar-se um péssimo negócio. Quem depende economicamente de outra pessoa encontra-se sempre numa posição de fraqueza que obriga ou pelo menos cria condições para atitudes de subserviência.
Não é preciso dar exemplos de comportamentos de apoio emocional porque praticamente todas as mulheres, mais ou menos emancipadas, estão com eles familiarizadas. Ser demasiado crítica é entendido como ser agressiva e os homens queixam-se amargamente das mulheres que se atrevem a assumir este comportamento. Vejamos agora possíveis consequências negativas para as próprias mulheres ao assumirem a sua missão feminina de alimentarem o ego do companheiro e de repararem as suas feridas através de suporte emocional.Na relação heterossexual, o apoio sem condições da mulher ao companheiro comporta riscos em três vertentes importantes, identificadas por Sandra Lee Bartky: (1) desempoderamento epistémico, (2) desempoderamento ético e (3) mistificação da sua real situação.
(1)Para dar um suporte convincente ao companheiro, a mulher precisa de ver as coisas do ponto de vista dele, abdicando de uma perspetiva crítica no conhecimento do mundo e das relações sociais; abdicando do que poderíamos designar de autonomia cognitiva. Isto é tão verdade que praticamente todas as mulheres conhecem as ameaças à estabilidade da relação quando ousam confrontar a mundividência masculina, confronto esse que é interpretado como deslealdade: a última coisa que um homem quer é uma esposa ou amante que ponha em causa a sua perceção do real e os seus valores. Ora isto só pode reforçar a falta de autoridade epistémica reconhecida nas mulheres e que resulta de vários fatores, entre outros do facto do saber sobre o mundo ter sido até ao presente construído quase em exclusividade pelos homens e de as mulheres terem sido «obrigadas» a assimilarem acriticamente uma maneira masculina de ver o mundo que lhes é apresentada nas escolas, nas igrejas, nos media como neutra e universal.
(2) Ao desempoderamento epistémico acresce o desempoderamento ético. Desde sempre os filósofos tenderam a desvalorizar a capacidade ética das mulheres - a capacidade de se regerem por princípios abstratos de natureza racional - ora esta crítica, profundamente descontextualizada, pode receber reforço se percebermos que o suporte emocional que é suposto a mulher prestar ao companheiro pode precisamente obscurecer o seu sentido ético, o seu sentido do dever, pode levá-la a ser cúmplice do homem em atos que contrariam princípios éticos de reconhecido valor; e assim ser boa esposa - um dever social que se lhe exige – pode revelar-se incompatível com ser uma pessoa boa – um dever ético que obriga todo e qualquer ser humano. Na resolução deste conflito a mulher corre o risco de desempoderamento ético.
(3) Mas há uma outra consequência negativa que o dever de suporte emocional da mulher em relação ao homem comporta. É que a percepção do risco de desempoderamento, atrás identificado, pode ser completamente obscurecida pela percepção que muitas mulheres têm de que as coisas se passam exatamente ao contrário. Muitas mulheres, perante a vulnerabilidade e até fraqueza revelada em determinadas situações pelos seus companheiros e perante a sua própria capacidade de os conseguirem fortalecer, imaginam-se poderosas. E não podemos esquecer que esta ficção de poder feminino é «oportunamente» sustentada pelos elogios que recebem e pelo pedestal em que os homens as colocam. Vários filósofos e autores literários, através dos tempos, têm feito o elogio e a apologia da mulher como anjo do lar, capaz dos maiores sacrifícios para manter a estabilidade da família, esquecendo os seus interesses que deve identificar com os interesses do marido, dotada de um poder muito especial, o poder do amor, apresentado como um substituto e equivalente de outros tipos de poder. Cair nesta ratoeira é assim bastante compreensível, pois torna-se difícil reconhecer que se trata de facto de uma ratoeira. A mulher não percebe que não está a ser respeitada enquanto pessoa e torna-se cúmplice do desrespeito que sofre. O poder do amor é apenas um simulacro de poder porque está muito afastado do poder real de intervenção no mundo e só funciona enquanto a mulher concordar em renunciar a este último e real poder. Apoiar o companheiro pode ser emocionalmente gratificante para a mulher na medida em que descobre a vulnerabilidade deste e como pode contribuir para lhe retemperar as forças e restaurar a coragem, mas é sempre uma forma vicariante de poder que, pela sua capacidade de sedução, impede as mulheres de reconhecerem a situação real em que se encontram e como esta as desfavorece injustamente.
A apologia desta tradicional capacidade das mulheres em prestarem um cuidado muito especial aos seus companheiros e de uma maneira geral a todos os membros da família em que se integram – o anjo no lar de que falam filósofos e novelistas – foi recentemente retomada por um conjunto de autoras feministas, conhecidas pela defesa da «ética do cuidado, que aceitando esta caraterística feminina pretendem valorizar o estatuto social das mulheres. Independentemente das boas intenções que as suportam e de quão tentadora possa ser a sua pretensão, temos, como faz Sandra Lee Bartky, de evidenciar como a insistência neste conceito de feminilidade pode ser pernicioso para as mulheres e como pode ser limitativo da sua capacidade de autonomia e de realização enquanto pessoas.
Adilia, não se esqueça de adicionar o meu blogue na sua lista de blogues. Tem alguns poemas novos que não ficaram mal. Aqui está o link:
ResponderEliminarhttp://promenadedufeu.blogspot.com/
Voce manda, mas já agora podia ter feito um comentario ao meu texto.
ResponderEliminarAbraço, adilia
O que o texto defende não tem necessariamente a ver com mulheres. Existem vários casais em que se poderia substituir mulher por homem e a descrição seria semelhante. O Cerne da questão não é tanto o fato de um parceiro ter uma posição assimétrica e uma vida digamos menos preenchida. O Cerne da questão é que na esmagadora maioria dos casos, essa pessoa é uma mulher. Quero dizer, não é errado em si uma pessoa apoiar o "bread winner" emocionalmente etc. Errado é uma sociedade que modo geral não proporciona cuidado infantil (infantário, creche etc) grátis e como tal torna inviável os dois pais trabalharem. Se somarmos a isso que de um modo geral as mulheres ganham menos do que os homems (e menos do que custa por 2 crianças numa creche privada)o triste resultado é que são as mulheres que abdicam de uma vida na força de trabalho e como tal perdem um importante papel na sociedade.
ResponderEliminarCasei-me com esta noção de que mulher deve apoiar o marido em tudo e vivia feliz assim. Até que as coisas se inverteram em quem precisou do tal apoio fui eu. No entanto, ao contrário do que eu esperava, ao invés de receber apoio, só recebi críticas, berros, brigas, acusações. Desde então continuamos casados, mas tenho meus próprios objetivos de vida e não páro minha vida para esperar por ele. Sinto-me bem melhor agora.
ResponderEliminarPromenade du Feu
ResponderEliminarNão é necessariamente ... mas, como bem diz, é habitualmente a mulher a penalizada e o grave é que as mulheres interiorizaram o papel e sentem-se duplamente mal quando não o realizam.
Quanto à anónima so lhe digo que cada vez mais coloco em causa o casamento tradicional e subscrevo a afirmação de uma feminista dos anos setenta que dizia que para destruir uma mulher não era preciso agredi-la ou de alguma maneira violentá-la, bastava casar com ela. O casamento tende a estabelecer uma relação profundamente assimétrica e a culpa não é necessariamente dos maridos é da estrutura social.
Durante muito tempo pensei que pudesse passar ao largo de ter de discutir mais a fundo as questões relativas ao sexismo dominante – a não ser quando me sentia pessoalmente prejudicada. Talvez por cansaço ou mesmo por achar que a minha prática era suficiente. Assim, nunca dedicava meu tempo de estudo a questões específicas, como se a própria dedicação contestadora (e, obviamente, sendo mulher e vivendo no mundo em que vivemos, eu sentia na pele, mais que percebia, que não poderia ser de outro modo, se não pela contrariedade) fosse dar mais e mais alimento aos discursos dominadores.
ResponderEliminarO tempo contudo foi amigo – um amigo provocador – e tive filhos gêmeos (um homem e uma mulher). Assim, as experiências que antes eu conseguia diluir com facilidade, agora se condensaram num “laboratório” o tempo todo presente, e com o qual tenho a mais profunda responsabilidade. Por isso dedico parte da minha escrita (fundada na observação cotidiana do comportamento de ambos) à descrição de como as questões de gênero se apresentam já na mais tenra infância, alimentadas pelo contexto social em que estão inseridas as crianças.
O resultado bioficcional está no meu blog www.aboiodefantasmas.blogspot.com
Um abraço.
Andreia, interessante o que dizes sobre ter filhos e como queremos que cresçam com integridade e respeito pelo outro género. Nesse contexto dizia a uma amiga minha outro dia que ter duas filhas me despertou bastante para os problemas de sexismo que existem na sociedade e como quero que elas cresçam como controle sobre os seus futuros etc. Ao que a minha amiga me falava das suas preocupações simétricas já que tem dois meninos os quais não quer que cresçam se tornando machistas. Nunca tinha pensado nesses termos antes mas ela tem razão quer tenhamos filhas, filhos ou ambos, os desafios para derrotar o sexismo existem do mesmo modo.
ResponderEliminarAndrea
ResponderEliminarTentei deixar o comentário abaixo no seu blog mas não consegui, por isso resolvi postá-lo aqui.
«Muito interessante e elucidativo o seu texto. O processo de socialização é uma das chaves do problema e nesse caso tem muito a ver com o fato de meninos e meninas serem socializados por mulheres na fase primeira e fundamental da sua vida, se os pais e não apenas as mães interviessem com alguma simetria nesse processo talvez as coisas se modificassem. Por outro lado a sociedade está toda programada para perpetuar o sexismo. Muito dificil mudar, mas não nos podemos demitir nem podemos perder a esperamça.
abraço
adília