Sendo o enquadramento social de mulheres e de homens muito diferente, os seus modos de conhecer também têm de ser diferentes. Por isso, as feministas defendem, com boa razão, que o abstrato sujeito cognoscente de que os filósofos gostam de falar - o sujeito epistémico, neutro do ponto de vista de género - foi sempre um sujeito masculino, convenientemente disfarçado de sujeito universal. Mas também no que aos sentimentos e sua expressão diz respeito, as diferenças entre mulheres e homens são significativas e por isso, como escreve bartky «assim como o conhecimento não pode ser descrito em termos neutrais, do mesmo modo não o pode ser o sentimento.»
Importa ainda dizer que na medida em que a diferença social tende a inferiorizar as mulheres e serve para manter a opressão que sofrem, não só o conhecimento produzido e apresentado como universal tende, grosso modo, a justificar a opressão como, um pouco paradoxalmente, alguns dos sentimentos que as mulheres experimentam caminham no sentido de a reforçarem.
Importa ainda dizer que na medida em que a diferença social tende a inferiorizar as mulheres e serve para manter a opressão que sofrem, não só o conhecimento produzido e apresentado como universal tende, grosso modo, a justificar a opressão como, um pouco paradoxalmente, alguns dos sentimentos que as mulheres experimentam caminham no sentido de a reforçarem.
Em relação aos sentimentos encontramos um padrão que distingue as mulheres dos homens: as mulheres sentem-se mais vulneráveis, são mais envergonhadas, tímidas, vaidosas e dominadas pela aparência, e também mais propensas a submergirem a sua identidade na identidade do homem (marido, amante). Deste padrão vamos destacar o sentimento de vergonha que aparece com caraterísticas peculiares nas mulheres e que, como procuraremos mostrar adiante, seguindo a tese defendida por Sandra Lee Bartky em Femininity and Domination, serve para reforçar a opressão das mulheres e «pode ser uma marca ou sinal de carência de poder».
Em primeiro lugar observa-se que as mulheres tendem a passar por muitas mais experiências de vergonha do que os homens. Se percebermos que a vergonha resulta do sentimento de que se é, de alguma maneira, inadequado e se lembrarmos que as normas de conformidade e de ajustamento são muito mais impositivas e restritivas para as mulheres do que para os homens, perceberemos porque é que isso acontece. Vejamos então as caraterísticas que este sentimento/emoção reveste:
(1) A vergonha tem, como Sartre tão bem evidenciou, uma estrutura intersubjetiva, isto é requer um sujeito que é visto por um outro e que se percebe como sendo objeto do olhar do outro; pode acontecer, e acontece, que o sujeito que experimenta vergonha introjeta o sujeito perante o qual se envergonha, mas ainda neste caso esse sujeito está lá, embora interiorizado, e a estrutura intersubjectiva do fenómenos não foi beliscada.
(2) A vergonha é sempre acompanhada por uma tonalidade afetiva desagradável e portanto negativa, aparece como uma perturbação psíquica que resulta de o eu se apreender como inadequado e diminuído em termos de valor, como, de algum modo, inferior.
(3) A vergonha implica a necessidade de ocultar e de esconder: revelar as minhas falhas ou o que eu percebo como falhas pode ser extremamente doloroso, pois se o fizer corro o risco de ser desvalorizado pelo outro; daí a ocultação, mas em simultâneo também vou sentir vergonha por esconder. Ora a necessidade de ocultar e de esconder empobrece a pessoa porque lhe corta a possibilidade de ser autêntica, de se afirmar como realmente é, tira-lhe poder, tira-lhe capacidade de auto-afirmação.
(4) Com a experiência da vergonha é a minha autoconfiança que é minada e por isso o sentimento de vergonha tem relação com o sentido da identidade, com o que eu sou; ao experimentar vergonha eu apercebo-me penosamente de aspectos da minha personalidade que até então ignorava e que me podem diminuir ainda mais se forem revelados aos outros - a minha auto-estima é afetada, o meu auto-conceito é empobrecido, vejo-me como um ser de menor valor.
(2) A vergonha é sempre acompanhada por uma tonalidade afetiva desagradável e portanto negativa, aparece como uma perturbação psíquica que resulta de o eu se apreender como inadequado e diminuído em termos de valor, como, de algum modo, inferior.
(3) A vergonha implica a necessidade de ocultar e de esconder: revelar as minhas falhas ou o que eu percebo como falhas pode ser extremamente doloroso, pois se o fizer corro o risco de ser desvalorizado pelo outro; daí a ocultação, mas em simultâneo também vou sentir vergonha por esconder. Ora a necessidade de ocultar e de esconder empobrece a pessoa porque lhe corta a possibilidade de ser autêntica, de se afirmar como realmente é, tira-lhe poder, tira-lhe capacidade de auto-afirmação.
(4) Com a experiência da vergonha é a minha autoconfiança que é minada e por isso o sentimento de vergonha tem relação com o sentido da identidade, com o que eu sou; ao experimentar vergonha eu apercebo-me penosamente de aspectos da minha personalidade que até então ignorava e que me podem diminuir ainda mais se forem revelados aos outros - a minha auto-estima é afetada, o meu auto-conceito é empobrecido, vejo-me como um ser de menor valor.
Há casos em que a vergonha pode ser instrumentalmente positiva, como acontece quando nos envergonhamos de não ter estado à altura do que uma dada situação requeria de nós e aí pode dar motivo ao nosso aperfeiçoamento como pessoas. Quando a pessoa se envergonha de não ter respeitado uma regra a que a própria reconhece valor, esse reconhecimento pode ajudá-la a tornar-se uma pessoa melhor. Mas, falando em termos gerais, a vergonha que as mulheres especificamente experimentam não é deste tipo e não dá lugar a qualquer aperfeiçoamento moral.
Nas mulheres, a vergonha corresponde ao sentimento de não se sentirem adequadas, de não estarem em conformidade com as normas que se espera que elas respeitem. O próprio estatuto social de inferioridade que lhes é atribuído ocasiona esse sentimento difuso mas persistente que não só não dá lugar a que se aperfeiçoem como seres humanos como as leva a perceberem-se como mais fracas e menos confiantes. O estatuto que lhes é conferido, ao provocar sentimentos de inferioridade e de desajustamento, legitima a ordem social que o confere. Se eu me percebo como inferior acho normal e natural que me tratem como inferior.
Resumindo, a vergonha é um sentimento negativo que apenas em certas e específicas condições pode ter um valor instrumental positivo. Se uma determinada ordem social quer manter uma classe de pessoas numa posição de subordinação, nada melhor do que conseguir que essas pessoas se sintam inferiores e experimentem vergonha, no sentido de se perceberem como mais fracas e menos dotadas, minando assim a sua auto-confiança e legitimando a posição de subordinação. Se as mulheres, muito mais do que os homens, passam pela experiência de vergonha, então a ordem social consegue que elas se aquietem no estatuto que lhes atribuiu, pois este sentimento auto-avaliativo vai integrar a subjetividade das mulheres e ao mesmo tempo vai «perpetuar a sua sujeição».
Adoro seu blog, suas ponderações e consideraçõs sobre feminino, gênero...
ResponderEliminarEstou mais que intersessada nesse livro da Sanda Lee, porém não estou conseguindo encontrá-lo em nenhuma livraria, pode me indicar o nome da editora, para entrar em contato, ou uma versão em pdf?
beijo
Uma vez li num debate no Orkut, que "os homens tem honra e as mulheres vergonha". O seu texto distingue bem isso.
ResponderEliminarUm pesquisa apontou que muitas mulheres deixam de fazer programas para se divertirem por vergonha de expor os defeitos que ela acha que seu corpo possui. O mito da beleza que produz a ditadura da beleza, ataca diretamente a auto-estima feminina, aumentando sua vergonha e consequentemente isolando a mulher ainda mais de si mesma e dos outros. Quanta energia mental as mulheres gastam se sentindo envergonhadas e por isso, inferiores.
A vergonha é realmente um excelente meio de controle do patriarcado sobre as mulheres.
Mayara
ResponderEliminarObrigada pelo seu comentário.
Quanto ao livro não o consegui encontrar na internet e tive de o encomendar pela Amazon, pagando com cartao de crédito e esperando alguns dias pela sua entrega.
Se fizer a encomenda aconselho a encomendar um livro usado que normalmente está em bom estado, o preço maior que se paga é sempre o do envio, mas mesmo assim poupa-se. As vezes encontram-se livros muito bons sobre feminismo no Gigapedia, e pode-se fazer download gratuito, mas deste nem cheiro.
Abraço, Adília
Arttemia
ResponderEliminarHoje, mais do que nunca, convém à ordem social existente, condicionar de modo mais subtil a existência das mulheres. Por isso a reflexão sobre estes temas é importante e neste campo Sandra Lee Bartky, filósofa feminista de grande qualidade, tem uma obra notável.
Abraço, Adília