quarta-feira, 29 de junho de 2011

Para uma interpretação de Sade


Simone de Beauvoir em Faut-il Brûler Sade, publicado em 1951, fornece uma interpretação da vida e obra de Sade que merece alguma reflexão.

Na vida sexual de Sade encontramos o desejo de dominar e violentar mulheres e de procurar exercer sobre elas diversas formas de tortura e de humilhação. No sentido de procurar compreender este tipo de comportamento, aquilo que Simone de Beauvoir pergunta é qual é o objetivo de Sade? O que é que ele pretende alcançar, onde quer chegar?
Segundo Beauvoir, em Sade, a sexualidade não é a chave para se compreender o seu comportamento pois esta precisa de ser explicada e é já algo secundário. Beauvoir vai interpretar a vida de Sade, considerando o que ele fez dela, na assunção de que tal reflexão projeta luz sobre a condição humana.
De acordo com Beauvoir, embora pareça problemático, porque estamos habituados a pensar em sexo em termos de força instintiva, para além do nosso controlo, a sexualidade é uma expressão de liberdade; isto não quer dizer que podemos decidir ou escolher a nossa sexualidade, mas que, ao vivê-la, exprimimos a nossa liberdade, nos afirmamos como sujeitos que tentam escapar à contingência e à faticidade. Através do sexo, Sade afirma-se contra a lei, recorrendo a uma justificação ética cuidadosamente elaborada, numa palavra, realiza-se; luta contra uma ordem social e política que considera injusta e hipócrita, através de um comportamento de rebelião individual que lhe permita restaurar a sua autenticidade.
Beauvoir explica. Sade pertence a uma aristocracia decadente que perdeu real poder; na época, o privilégio de classe de que a aristocracia gozava deixa de ser possível e Sade ressente-se com essa perda; no mundo burguês em que é obrigado a viver nada o distingue dos demais cidadãos, nada permite garantir-lhe um destino singular; mas na sua vida sexual e no imaginário que constrói ele pode ser um déspota feudal, e pode encontrar aí um mecanismo de compensação para a deterioração da sua condição social. As suas raízes de classe predispõem-no contra a Revolução (1789) em curso com as terríveis perseguições políticas que, sobretudo no período do Terror, justificou; claro que ele não se opôs ao Terror em nome de valores aristocráticos, ele opôs-se em nome da natureza e da liberdade, mas isso não significa que na raiz não esteja o ressentimento pela perda dos privilégios da classe de que ele ainda fazia parte.
Beauvoir defende que as práticas sexuais a que Sade se entregava funcionavam como um mecanismo de recuperação de um poder que ele enquanto membro de uma classe privilegiada tinha perdido. Vivendo num meio burguês ao qual tinha de se adaptar, perdido na multidão de outros cidadãos, um dos meios de recuperar a sua individualidade, a sua subjetividade, seria na vida sexual. Com uma vida social pautada pelo conformismo e pela obediência às normas, ao frequentar os bordéis negava esse mesmo conformismo e exigia, no domínio sexual, a obediência a que tinha de se submeter no domínio social. Como Beauvoir escreve, Sade e outros seus contemporâneos igualmente bem-nascidos, “herdeiros de um nome em declínio (a aristocracia) que uma vez tinha exercido um poder concreto, mas que não mais detinha qualquer poder sobre o mundo, tentavam reviver simbolicamente, na privacidade da alcova, o estatuto de que tinham nostalgia, aquele do déspota feudal, soberano e solitário.” MBS 15
A sexualidade teria sido o caminho escolhido por Sade para reviver simbolicamente a privação de poder e de estatuto que o mundo burguês lhe retirara; poderia ter escolhido outro, mas preferiu fazer «da sua sexualidade uma ética» e erigir «gostos em princípios». MBS 15.

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