segunda-feira, 6 de junho de 2011

A cumplicidade das mulheres



Desde tempos imemoriais as mulheres ocuparam o lugar do Outro e foram desvalorizadas enquanto sujeitos capazes de tomarem em mãos o seu próprio destino. Ainda hoje, quando as condições poderiam ser aproveitadas para a sua afirmação e emancipação real vemos muitas, porventura ainda a maioria, recusarem assumir-se como sujeitos livres e responsáveis pela sua existência e aceitarem os termos que os homens lhes impõem, mais preocupadas em agradar-lhes do que em agradar a si mesmas.
Para explicar este comportamento de cumplicidade com a própria opressão poderíamos invocar as formas subtis de poder que se exercem sobre as mulheres e são muitas; mas o fenómeno tem porventura raízes mais profundas que Simone de Beauvoir (em 1949) num livro ainda hoje dotado de enorme atualidade – O Segundo Sexo - explicitou. Nele, Beauvoir ao perguntar-se porque é que a situação de alteridade vivida pelas mulheres se mantinha incontestada, encontrou uma resposta inverosimilmente simples: o sistema funcionava com benefícios para os dois sexos, isto é não eram só os homens os favorecidos, as mulheres também tiravam dele «ganhos» aparentemente significativos:


“Recusar ser o Outro, recusar ser uma parceira no negócio – isso seria para as mulheres renunciar a todas as vantagens que a aliança com a casta superior lhes confere. O homem – suserano fornecerá à mulher - vassala proteção material e procurará justificar a sua existência; com o risco económico ela pode evitar o risco metafísico de uma liberdade cujos fins tem de ser estabelecidos sem ajuda … É um caminho fácil; nele evita-se a angústia e a tensão de uma existência autenticamente assumida. “

Quer dizer, se se consegue manter as mulheres num lugar de subordinação, se os mecanismos funcionam para que elas aceitem esse papel é porque esse papel, em certo sentido, lhes é cómodo, evita que corram os riscos que a liberdade comporta e é garante de uma vida medíocre mas segura.
Num quadro mais amplo, todo o ser humano, segundo Beauvoir, luta com a ambiguidade da sua condição: percebe-se como um ser consciente, capaz de transcender o dado – aquilo que a natureza ou a sociedade lhe fornecem à partida - capaz de ir mais além, e, em simultâneo, como um objeto, um ser corpóreo com as limitações que lhe são inerentes.
O ser humano percebe essa tensão sujeito/objeto, difícil de aceitar porque é sempre difícil lidar com a ambiguidade, e, para a eliminar, tanto pode pretender que é um puro sujeito como pode aceitar o estatuto de objeto, sobretudo se este for devidamente camuflado. Em termos sartrianos qualquer destas duas situações corresponde a um ato de má fé, a uma auto-mistificação porque essa ambiguidade é constitutiva da existência humana; mas, como Beauvoir refere foi o que se verificou na relação entre os sexos ao longo da história: os homens pretenderam acreditar e fazer crer que eram puros sujeitos e as mulheres meros objetos.
Acontece ainda que a tendência dominante nos dois sexos, porque a mais cómoda, é a de se aceitarem como objetos ao invés de se afirmarem enquanto sujeitos, só que esta tendência, ao longo do processo de socialização, é fortemente contrariada nos homens, mas estimulada com igual intensidade nas mulheres.
Temos assim que nas mulheres a propensão a perceberem-se como objetos é reforçada constantemente e, percebido isto, fica menos estranho o seu comportamento, embora não mais desculpável.

5 comentários:

  1. Muito interessante, muito embora fortemente generalista. Casos há e muitos em que o ser humano, levado pela angustia associada a ter algum conhecimento, vai contra essa tendencia de ser objeto por vontade própria. Nesse sentido, e isso pode ocorrer independentemente do género todos nós podemos ter uma tendencia não de ser objetos mas de ser sujeitos (subject vs object)

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  2. Claro, afirmar-se como sujeito é sempre o que um ser verdadeiramente consciente pretende. Mas reparemos, em muitos seres humanos se calhar na maioria a tendencia para se alienarem e se colocarem sob a vontade de Outro é extremamente poderosa, ver o que se passa nas religiões ou em relação a grandes lideres que obtem a adesão cega dos seus seguidores. Lá está, assumir-se como sujeito dá imenso trabalho e assumir a liberdade é sempre um risco, fica-se sem desculpa, inteiramente responsável pelos atos praticados.

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  3. Não acho que as mulheres se sujeitem ao papel de objeto meramente porque "é cômodo", "é fácil", como se mulheres fossem meramente pessoas preguiçosas mentalmente e até moralmente. Acho que antes de mais nada elas são coagidas a serem objetos porque sofrem represálias da sociedade que são violentíssimas caso não façam isso. Não se pode subestimar o papel da coerção nisso para afirmar meramente que estar na posição de objeto é fácil, porque NÃO É. Não é fácil não ter voz dentro da própria casa, não é fácil engolir as próprias vontades para agradar o marido, não é facil passar por cima das próprias vocações para fazer serviço doméstico, não é fácil se reprimir sexualmente e não satisfazer suas próprias vontades em nome de uma moral religiosa objetificante... enfim, não achei este um post feliz.

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  4. Mesmo que não tenha achado o post feliz agradeço o seu comentario que nos dá conta de uma vivência, efetivamernte mais comum do que muito boa gente pensa.
    De qualquer modo você até pode estar a ser cumplice com a objetificação mas sente-se revolta em si e isso é uma atitude que já não cai debaixo do conceito de má fé; todavia temos de reconhecer que muitas e muitas mulheres não encontram nada de mais na situação e ao fim ao cabo é nelas que no post se está a pensar. Além disso penso ter sido clara quando referi que a tendencia para a auto-objetificação é igualmente forte em homens e mulheres, o que acontece é que os homens são educados a reconhecerem essa situação como indesejável para eles, ao passo que com as mulheres acontece exatamente o contrário.
    Abraço, Adília

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