O texto de Catharine Mackinnon, que a seguir traduzo, reflecte sobre a pornografia, sua natureza e consequências; é um texto publicado em 1995 e podem dizer que já não traduz a realidade, porque entretanto a pornografia, face à demanda feminina de consumo, se alterou. Mas, embora aceite que ocorreram alterações no sentido de atenuar a carga sexista que comporta, penso que no essencial não se modificou e que o modelo permanece nas suas características essenciais.
A crítica de Mackinnon à pornografia não se funda na moralidade tradicional nem no pretenso carácter obsceno do relato pornográfico, tem o seu fundamento na convicção, para a qual as narrativas pornográficas que abundam no mercado fornecem argumentos, de que a pornografia inferioriza as mulheres e, reforçando o modelo sexual de domínio – submissão, reforça o estatuto que a sociedade sexista lhes atribui.
Sabemos das tentativas de produção de filmes porno não sexistas, por pessoas que, não vendo qualquer hipótese de se eliminar a pornografia sexista, supõem que o melhor antídoto é mais pornografia, de sentido diferente, como quando se combate um fogo com a técnica do contra-fogo. A intenção é positiva e louvável e recuso-me a adiantar mais sem ter a experiência directa desse tipo de filmes. Mas a pornografia que continua facilmente disponível, nomeadamente através da Internet continua a ser sexista, e a insistir na representação intensiva e extensiva da mulher como objecto sexual.
Para qualquer espectador que se esforça por ser imparcial - se é que isso é possível, a pornografia é uma mistificação, é uma mentira, porque as mulheres, nomeadamente as actrizes porno, não estão a sentir prazer, estão a fingir prazer o que é uma coisa completamente diferente, e estão a fingir prazer de situações que objectivamente não é suposto provocarem sensações de prazer, mas que são erotizadas, isto é que são apresentadas como se dessem prazer. A pornografia constrói assim a sexualidade feminina e também a masculina, mostrando modelos que uns e outras devem seguir para terem prazer. Que os homens tenham prazer através das práticas mostradas, não existem dúvidas, já em relação às mulheres, o que muitas dizem e há que não desvalorizar o seu testemunho, é que tais práticas não lhes dão prazer e são mesmo desagradáveis ou repugnantes.
Mesmo assim há quem defenda a pornografia e realce o seu poder libertador, é caso para perguntar, libertador para quem? È que, para as mulheres, tal como é apresentada (e estou para ver por que ainda não conheço a pornografia não sexista), reforça modelos de sujeição e de extrema dependência, de anulação da mulher como pessoa.
A pornografia não sexista pode revestir interesse se ajudar as mulheres a construírem a sua sexualidade em termos completamente diferentes daqueles que conhecemos e que a pornografia sexista vende. E essa tarefa, que tem até de passar pela construção de nova linguagem para referir a actividade sexual, é muito necessária se queremos uma sociedade justa e psicologicamente saudável.
Vejamos pois o texto de Mackinnon:
“Para a questão que Freud nunca colocou e que define a sexualidade numa perspectiva feminina: O que é que os homens querem? A pornografia fornece a resposta. A pornografia permite aos homens terem tudo aquilo que sexualmente desejam. Ela é para eles a verdade acerca do sexo. Ela relaciona a centralidade da objectificação sexual tanto com a excitação sexual masculina como com os modelos masculinos de conhecimento e verificação, conectando objectividade com objectificação. Mostra como os homens vêem o mundo, como ao vê-lo a ele acedem e o possuem, e mostra como é a acção humana de domínio sobre ele. Mostra o que os homens querem e como conseguem o que querem.
A partir do testemunho da pornografia, o que os homens querem é mulheres dominadas, mulheres espancadas, mulheres torturadas, mulheres degradadas e conspurcadas, mulheres assassinadas. Ou, para sermos just@s com o registo mais suave (soft core), mulheres sexualmente acessíveis, possuíveis, que estão ali à sua disposição, querendo ser possuídas e usadas, talvez com uma ligeira sugestão de escravidão. Qualquer acto de violentação das mulheres - violação, espancamento, prostituição, abuso sexual de crianças, assédio sexual, é apresentado como sexualidade, é tornado sexy, divertido e libertador da verdadeira natureza da mulher na pornografia. (…)
As mulheres são transformadas em e postas em paralelo com qualquer coisa considerada inferior ao humano: animais, objectos, crianças e – claro, outras mulheres. (…)
A pornografia é um meio através do qual a sexualidade é socialmente construída, é um lugar de construção, um domínio de exercício. Constrói as mulheres como coisas para uso sexual e constrói os seus consumidores para quererem desesperadamente a posse, a crueldade e a desumanização. A própria desigualdade, a própria sujeição, a própria hierarquização, a própria objectificação, o abandono em êxtase da capacidade de auto-determinação, é o conteúdo aparente do desejo sexual das mulheres e é o que é desejável. (…)
Se a pornografia não se tivesse tornado sexo para os homens e do ponto de vista dos homens, seria difícil explicar porque é que a indústria pornográfica arrecada biliões de dólares por ano vendendo-a como sexo principalmente para homens; porque é que é utilizada para ensinar sexo às prostitutas infantis, às esposas, filhas e namoradas recalcitrantes, a estudantes de medicina e a agressores sexuais; porque é que quase universalmente é classificada como uma subdivisão da «literatura erótica»; porque é que é protegida e defendida como se fosse o próprio sexo. E porque é que um eminente sexólogo manifesta o receio de que, se a perspectiva feminista se reforçar contra a pornografia na sociedade, os homens tornar-se-ão «eroticamente inertes»: não havendo pornografia, não há sexualidade masculina.”
A partir do testemunho da pornografia, o que os homens querem é mulheres dominadas, mulheres espancadas, mulheres torturadas, mulheres degradadas e conspurcadas, mulheres assassinadas. Ou, para sermos just@s com o registo mais suave (soft core), mulheres sexualmente acessíveis, possuíveis, que estão ali à sua disposição, querendo ser possuídas e usadas, talvez com uma ligeira sugestão de escravidão. Qualquer acto de violentação das mulheres - violação, espancamento, prostituição, abuso sexual de crianças, assédio sexual, é apresentado como sexualidade, é tornado sexy, divertido e libertador da verdadeira natureza da mulher na pornografia. (…)
As mulheres são transformadas em e postas em paralelo com qualquer coisa considerada inferior ao humano: animais, objectos, crianças e – claro, outras mulheres. (…)
A pornografia é um meio através do qual a sexualidade é socialmente construída, é um lugar de construção, um domínio de exercício. Constrói as mulheres como coisas para uso sexual e constrói os seus consumidores para quererem desesperadamente a posse, a crueldade e a desumanização. A própria desigualdade, a própria sujeição, a própria hierarquização, a própria objectificação, o abandono em êxtase da capacidade de auto-determinação, é o conteúdo aparente do desejo sexual das mulheres e é o que é desejável. (…)
Se a pornografia não se tivesse tornado sexo para os homens e do ponto de vista dos homens, seria difícil explicar porque é que a indústria pornográfica arrecada biliões de dólares por ano vendendo-a como sexo principalmente para homens; porque é que é utilizada para ensinar sexo às prostitutas infantis, às esposas, filhas e namoradas recalcitrantes, a estudantes de medicina e a agressores sexuais; porque é que quase universalmente é classificada como uma subdivisão da «literatura erótica»; porque é que é protegida e defendida como se fosse o próprio sexo. E porque é que um eminente sexólogo manifesta o receio de que, se a perspectiva feminista se reforçar contra a pornografia na sociedade, os homens tornar-se-ão «eroticamente inertes»: não havendo pornografia, não há sexualidade masculina.”
Catharine Mackinnon: Sexuality, Pornography, and Method: "Pleasure Under Patriarchy"
Podemos resumir o conteúdo deste texto nos seguintes pontos:
1. A pornografia é para os homens a verdade acerca do sexo (é preciso dizer que se está a falar da pornografia sexista e da generalidade dos homens). A verdade dos homens é que a mulher é objecto sexual e é nesse contexto que os excita.
2. É a redução da mulher a objecto que fornece o enquadramento para a sua dominação sexual, elemento importante da sua dominação social.
3. Mas os homens não querem apenas dominar as mulheres, querem que elas gostem de ser dominadas.
4. E aqui a pornografia fornece os instrumentos de violência simbólica ao erotizar e transformar em sexo inúmeras situações de violência, com a correspondente mensagem: ser sexualmente dominada pelo homem é sexy, responder positiva e gratamente a todos os desejos e fantasias do homem é sexy; rejeitar em êxtase a sua própria capacidade de auto-determinação é sexy.
5. As imagens pornográficas mostram constantemente mulheres revelando excitação e prazer por tudo quanto fazem aos homens e por tudo quanto os homens lhes fazem, sendo que tudo gravita ao redor da «imponência» do pénis. Mesmo as situações que objectivamente não é suposto provocarem sensações de prazer são erotizadas, isto é são apresentadas como se dessem prazer, a avaliar pelos sons emitidos pelas personagens, pelas suas expressões faciais ou pelas expressões verbais utilizadas.
6. A pornografia é assim um poderoso instrumento de construção da sexualidade: a sexualidade é uma construção social de poder masculino, definida pelos homens e «imposta» às mulheres. A pornografia constrói as mulheres como coisas e constrói os homens como sujeitos que vão usar sexualmente as mulheres.
7. As mulheres aprendem a sexualidade com os seus companheiros e estes são socializados com o modelo sexual de domínio/submissão que é expresso através da própria linguagem. Deste modo, as mulheres são privadas da possibilidade de terem experiências suas e dos próprios termos que eventualmente as pudessem descrever: são «obrigadas» a verem-se e a referirem-se a si próprias nos termos que os homens e a linguagem sexista estipularam.
Adília,posso ligar seu blog num que estou preparando? Vc é uma das raras feministas de lingua portuguesa que enxerga este problema da pornografia,estou com dificuldades absurdas de colocar na cabeça das brasileiras que a porno-cultura existe e só tem jogado nossas conquistas no lixo.Tenho também usn textos sobre o assunto que peguei de ongs sérias...da próxima vez eu volto com mu id do blog.
ResponderEliminarCom certeza que estou receptiva ao seu pedido até porque acho que está na hora de nos unirmos pois tod@s somos precis@s.
ResponderEliminarFico à espera de notícias suas.
abraço, Adília
Os homens apontam a direção e as mulheres vão seguindo... Na pornografia também é assim.
ResponderEliminarDois textos, entre outros, que postei na Biblioteca Feminista:
"Feminismo pós-modernista e bem_estar dos animais" e na Biblioteca Feminista II:
"Como as políticas do orgasmo sequestraram o movimento Feminista",
me fazem crer que não há possibilidade de existir uma pornografia não-sexista, uma vez que se trata de prostituição de pessoas e toda prostituição é exploração e sexismo. No meu entender, devemos tornar a pornografia desnecessária e deixar que as pessoas vivam sua sexualidade e afetividade entre si, na sua intimidade sem copiar estereótipos ditados por preferencias individuais e baseadas em pressupostos culturais.
Quando deveríamos lutar pelo fim da prostituição, lutamos pela legalização.
Quando deveríamos lutar pela desnaturalização da pornografia, fazemos pornografia feminina.
Nosso modelo de pornografia, nosso modelo de prostituição.
Pagamos à uma mulher pelo seu corpo, para que faça sexo "didático, faremos com que tenha orgasmos "verdadeiros" para diferenciar da pornografia mainstream?
Pagamos à uma mulher pelo seu corpo para que faça sexo, mas não seremos escatológicos como o porno maisntream. Não faremos aqueles closes, não pediremos que gritem de falso prazer, não faremos com que sejam xingadas e espancadas. Seremos mais clean ( mais românticas?!).
Pagamos a uma mulher para que faça sexo, mas lhe daremos uma "história, um contexto, nada será gratuito, ela terá que fazer sexo, mas deu jeito "verdadeiro".
Pagamos para que uma mulher faça sexo, exatamento como na prostituição exercida pelos homens, mas como somos nós, mulheres as agenciadoras, as consumidoras, as empregadoras, a prostituição da nossa pornografia feminina é mais light, não-sexista, de mulher para mulher. Afinal, nós mulheres precisamos aprender o sexo. Somos o sexo, o personificamos.
Fazemos a "nossa" pornografia da prostituição legalizada do mercado de vídeos e damos nossa contribuição para o abastecimento desse mercado. Sexo é mercadoria. A mulher é mercadoria. Mas somos agora mercadoria e objeto segundo "nossos" termos, pois somos nós que produzimos a "nossa" pornografia ( I choose my choices ).
E o mercado, a indústria do sexo aprecia a nossa contribuição por atendermos um nicho desse mercado. Os homens agradecem, pois agora podem justificar tudo o que fizeram e continuarao fazendo na pornografia, porque agora nos engajamos nela: 'Se as mulheres fazem, porque não nós?'; 'Se as mulheres gostam porque não podemos gostar do nosso jeito?'
E todos seremos felizes para sempre, porque todos ficarão satisfeitos.
Adília,muito obrigada ^_^,e aqui estou eu de volta para lhe apresentar o blog que iniciei hoje,depois de muito tempo pensando se valeria a pena =p...mulher brasielira é pra lá de difícil e na maioria das vezes defendem valores patriarcais como "direito da mulher"
ResponderEliminarE aí em cima está um assunto interessante e invisível para o feminismo.A objetificação da mulher é "perdoável" quando feita pelas próprias mulheres.Isso tormna nossa luta um tanto paradoxal,porque queremos ser vista como gente mas é noso direito ser objeto sexual....um tema a ser trabalhado.
Aqui está meu blog ^_^:
http://hanabiantiporno.blogspot.com/2009/11/postagem-inaugural.html
bjs e mais uma vez valeu ^_^
Respondendo às minhas interlocutoras que criticam sem mais a pornografia mesmo uma pornografia não sexista, prometo vir a abordar este assunto logo que me encontre minimamente capacitada. De facto, numa pornografia não sexista a categoria de prostituição não me parece fazer qualquer sentido porque então nesse contexto, homens e mulheres estariam a receber dinheiro pela sua performance, mas a mulher não se estaria a vender a um homem.
ResponderEliminarDesde que não haja a erotização da submissão e inferiorização da mulher, a questão muda completamente de figura. Mas prometo de facto voltar ao assunto.
abraço adília
Uma coisa muito ausente na educação das crianças é a tal de "educação sexual". Não, esta não existe. O máximo que pode existir, com palavras medidas em milímetros, com imagens extremamente pudicas, etc e tal é alguma pincelada sobre biologia de reprodução humana. É batata: o casal está "fazendo amor" coberto por lençol e resta à criança a pergunta que todos têm vergonha de responder:
ResponderEliminar_ Mas o que acontece embaixo do lençol?
Será que um filme "pornô", ou seja, um filme que mostre uma relação sexual real, explícita, mas com amplo envolvimento carinho, palavras carinhosas de amor, descrição das preliminares (não existe mulher fria: o que existe é mulher mal esquentada), etc e tal faria tanto mal à criança?
A primeira impressão é a que fica. A mostra de um filme assim, retratando a realidade sexual entre um casal que se ama, marcaria para o bem a personalidade da criança a respeito do assunto.
Já os filmes pornôs sexistas não precisariam ser escondidos dela: podem ser mostrados e explicados. É dizer:
_ Isso aí é como filme de bang bang, missão impossível, 007: coisas para divertir, mas que ninguém faz na vida real. O sexo bom não é assim.
Inclusive porque nos dias de hoje, as crianças entendem muito bem de computador e de como achar esses sítios pornôs. Se os pais dela põem bloqueadores, os pais do vizinho não e aí...
A questão de os filmes sexistas venderem, é porque o público gosta. É de se saber o que os faz gostar disso para se chegar à raiz do problema.
Não existe pornografia não sexista. A pornografia está cada vez mais violenta. Mulheres são exploradas no seu corpo, na sua sexualidade em qualquer tipo seja softporn ou hardporn. Hoje em dia o porno mainstream tornou tênue a linha que separava as práticas bdsm das do porno dito mais comum; duas novas práticas estão viralizando: o prolapso anal, apelidado de rosebud e a penetração na uretra. Não há limites para o estupro pago da pornografia. Homens assistem e depois tentam obrigar suas parceiras nessas práticas degradantes e humilhantes e quando não conseguem, se voltam para as prostitutas que são pagas para aceitarem todo tipo de bizarrice. Homens são misóginos e nunca deixaram de ser.
ResponderEliminarConcordo plenamente com oque vc disse. Sem dúvida alguma a indústria pornografica é um dos grandes empecilhos ao que refere as lutas pelos direitos fundamentais das mulheres. Empecilho este, que deve ser discutido pelo movimento feminista e prol a sua destituição
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