Eu percebo perfeitamente que o sistema capitalista e o modo como gere a produção de bens são incompatíveis com a eliminação da exploração humana; este sistema baseia-se numa assimetria de fundo entre quem detém os meios de produção e aqueles que apenas possuem a força de trabalho e, conhecendo nós os seres humanos, facilmente percebemos que, se houver possibilidade de explorar, a exploração se vai manter, independentemente da boa ou má vontade das pessoas. Ora, no sistema capitalista, quem detém os meios de produção encontra-se numa posição óptima para impor condições a quem dispõe apenas da sua força de trabalho e, obviamente, não vai abdicar desta prerrogativa até porque o sistema está montado para funcionar a seu favor. No sistema de economia capitalista, as relações de produção estabelecidas entre capitalistas e trabalhadores são intrinsecamente explorativas; enquanto se mantiverem, a exploração não desaparece e os trabalhadores, como, primeiro que tudo, têm de sobreviver, precisam de se lhe sujeitar, a alternativa é não entrar na relação, mas não entrar na relação equivale a morrer de fome.
Até aqui tudo bem, não vejo qualquer incongruência na análise marxista da situação e sou levada a concordar com ela por uma questão de pura lógica. Mas quando o marxismo pretende estabelecer um paralelo entre as relações de produção estabelecidas no mundo do trabalho e as relações de reprodução estabelecidas no meio familiar, surgem-me as maiores dúvidas e tenho dificuldade em dar a minha aquiescência a tal interpretação. Quer dizer, para o marxismo, assim como é inevitável a opressão dos trabalhadores também é inevitável a opressão das mulheres, desde que se continue a manter a estrutura económica capitalista da qual a família seria uma unidade básica. A partir daí defende que para acabar com o sexismo é preciso acabar com o capitalismo e que as mulheres devem aceitar que a resolução dos seus problemas e a defesa dos seus interesses passe prioritariamente por aqui.
Mas a pretensa analogia entre a relação de produção e a relação de reprodução, para mim, é falaciosa e passo a explicar: na família e na relação heterossexual, não há de um lado homens, a deterem os meios de reprodução e do outro mulheres, sem esses meios, o que se verifica é que os meios de reprodução pertencem igualmente a mulheres e a homens, isto é, não há a força de trabalho das mulheres, por um lado, e os meios de reprodução dos homens, por outro, portanto logo à partida estamos perante uma falsa analogia, porque enquanto a relação de produção é intrinsecamente explorativa, a relação de reprodução não o é; pode assumir essa forma, tem assumido essa forma, mas essa forma não decorre da própria estrutura da relação. Por outro lado, o carácter falacioso da analogia entre as relações de produção e as relações de reprodução reforça-se com a constatação de que, enquanto os trabalhadores têm necessariamente de aceitar a relação de produção, porque a alternativa é morrerem de fome, não se passa o mesmo na relação de reprodução, as mulheres podem recusar entrar nela e temos de reconhecer que só o não fazem porque são doutrinadas desde a mais tenra infância para a aceitarem e para não perceberem o seu carácter problemático. Desde que se vislumbrou a possibilidade de as mulheres não a aceitarem, toda a cultura estabelecida se mobilizou para sacralizar a maternidade e dificultar o recurso à contracepção e ao aborto. Por isso, não vejo por que razão a luta das mulheres tem de ser, como pretende o marxismo, indissociável da luta contra o capitalismo; prevejo mesmo a possibilidade dessa luta ser bem sucedida mesmo mantendo-se a estrutura capitalista da sociedade. Porque uma coisa é a opressão dos seres humanos enquanto tais e outra é a opressão das mulheres, não enquanto seres humanos, mas enquanto mulheres, isto é, seres humanos do sexo feminino. Isto não quer dizer que uma vez ultrapassado o sexismo, mulheres não continuem a ser oprimidas, mas aí a opressão que sofrerem não é por serem mulheres, mas por serem, como os homens, seres humanos sujeitos a um sistema económico que gera inevitavelmente exploração.
Por outro lado, uma outra reflexão se oferece. Nas relações de reprodução as mulheres não só detém com os homens os meios de reprodução como têm ainda um papel mais relevante do que eles na reprodução da espécie e se resolverem não entrar na relação - e têm possibilidade de o fazer - criam um problema social grave e aí isso pode funcionar como moeda de troca para que os seus interesses, enquanto pessoas, sejam reconhecidos e acautelados. Aliás, em certa medida, isto já se começa a verificar quando se vê surgir legislação para proteger a maternidade e não permitir que as mulheres sejam prejudicadas nas suas carreiras profissionais pelo facto de resolverem ser mães, mas claro que muito há ainda para fazer.
Dizer que o capitalismo não favorece a eliminação do sexismo é uma coisa, dizer que não o permite é outra e não convém confundir os dois planos sob pena de se perder o foco da questão.