Em O Segundo Sexo, Simone de Beauvoir dedica um capítulo à Amorosa. Aí reconhece que mulheres e homens têm concepções diferentes acerca do amor. Citando Byron e Nietzche, confirma que as mulheres entendem por amor a dedicação total da sua vida a um homem, enquanto o amor para este não implica tal reciprocidade. O amor, como escreve Byron, é apenas «uma ocupação na vida do homem, ao passo que é a própria vida da mulher.» Para a mulher, o amor é demissão da sua própria vida enquanto para o homem é anexação da vida da mulher amada na sua. Beauvoir reconhece a justeza deste retrato:
“Em certos momentos de sua existência, alguns homens puderam ser amantes apaixonados, mas nenhum há que se possa definir como "um grande apaixonado"; nunca abdicam totalmente, mesmo em seus mais violentos transportes; ainda que caiam de joelhos diante de sua amante, o que desejam afinal é possuí-la, anexá-la; permanecem no coração de sua vida como sujeitos soberanos; a mulher amada não passa de um valor entre outros; querem integrá-la em sua existência, e não afundar nela uma existência inteira. Para a mulher, ao contrário, o amor é uma demissão total em proveito de um senhor.” p. 410
Simone de Beauvoir poderia ter referido que estamos perante personalidades do século XIX - um poeta e um filósofo - que têm em comum o facto de serem, cada um à sua maneira, profundamente misóginos, aproveitando as obras que nos deixaram para expressarem de uma forma mais palatável a sua misoginia. Poderia ainda ter referido como a literatura que eles produziram, nomeadamente Byron e muitos novelistas da época, como Dickens, consumida avidamente pelo público feminino, reforçava este estereótipo da amorosa, apresentada como o modelo de todas as virtudes femininas. Não referiu nem uma coisa nem outra, não alertou para estes pormenores significativos, mas pelo menos, e isso não foi de menor importância, denunciou que é a situação em que decorre a vida das mulheres que explica porque concebem e sentem o amor dessa maneira. Assim, ao essencialismo destes autores que atribuem à natureza feminina estas peculiaridades do amor, contrapõe a existência social das mulheres.
A história provocou que ela estava certa e os essencialistas errados porque hoje muitas mulheres não se revêem de modo nenhum nesta concepção de amor precisamente porque as suas condições de vida mudaram. Os intelectuais do século XIX não conseguem de modo nenhum explicar por que é que, se essa é como pretendem a natureza da mulher, precisam de estar tão atentos, reforçando esse papel e execrando todas as mulheres da época - e já eram algumas - que a ele não se ajustavam; também não conseguem explicar por que é que hoje cada vez menos mulheres se revêem nesse papel. Mas vejamos a abordagem de Beauvoir que é extremamente interessante e plausível, mais do que plausível reveste um extraordinário poder explicativo:
A história provocou que ela estava certa e os essencialistas errados porque hoje muitas mulheres não se revêem de modo nenhum nesta concepção de amor precisamente porque as suas condições de vida mudaram. Os intelectuais do século XIX não conseguem de modo nenhum explicar por que é que, se essa é como pretendem a natureza da mulher, precisam de estar tão atentos, reforçando esse papel e execrando todas as mulheres da época - e já eram algumas - que a ele não se ajustavam; também não conseguem explicar por que é que hoje cada vez menos mulheres se revêem nesse papel. Mas vejamos a abordagem de Beauvoir que é extremamente interessante e plausível, mais do que plausível reveste um extraordinário poder explicativo:
“Em verdade, não é de uma lei da natureza que se trata. É a diferença de suas situações que se reflete na concepção que o homem e a mulher têm do amor. O indivíduo que é sujeito, que é êle mesmo, tendo o gosto generoso da transcendência, esforça-se por ampliar seu domínio sobre o mundo: é ambicioso, age. Mas um ser inessencial não pode descobrir o absoluto no coração de sua subjetividade. Um ser votado à imanência não pode realizar- se em atos. Encerrada na esfera do relativo, destinada ao macho desde a infância, habituada a ver nele um soberano a quem não lhe é dado igualar-se, a mulher que não sufocou sua reivindicação de ser humano sonhará em ultrapassar-se para um desses seres superiores, em unir-se, confundir-se com o sujeito soberano.
Não há para ela outra saída senão perder-se de corpo e alma em quem lhe designam como o absoluto, o essencial. Como de qualquer maneira se acha condenada à dependência, a obedecer a tiranos — pais, marido, protetor — prefere servir um Deus; escolhe querer tão ardorosamente sua escravidão que esta se apresentará a ela como a expressão de sua liberdade; esforçar-se-á por superar sua situação de objeto inessencial assumindo-a radicalmente; através de sua carne, de seus sentimentos, de suas condutas exaltará soberanamente o amado, pô-lo-á como a realidade e o valor supremos; aniquilar-se-á diante dele. O amor para ela torna-se uma religião.” 412
A mulher que entende o amor como abdicação da sua própria vida para se fundir e plasmar na vida do amante encontra aí uma solução de compromisso e uma forma vicariante de existir como ser humano; perante a dificuldade de se afirmar como sujeito e de transcender a condição que a sociedade, aproveitando algumas das suas limitações naturais, lhe impõe, não se assume como um ser livre e foge para a inautenticidade. Essa fuga é compreensível a partir do momento em que todo o processo de aculturação a ela conduz: à falta de independência económica junta-se a colonização cultural devidamente reforçada por códigos jurídicos que a tratam como um ser inferior e inessencial. Neste contexto é preciso ser uma heroína para ser um ser humano.
Não há para ela outra saída senão perder-se de corpo e alma em quem lhe designam como o absoluto, o essencial. Como de qualquer maneira se acha condenada à dependência, a obedecer a tiranos — pais, marido, protetor — prefere servir um Deus; escolhe querer tão ardorosamente sua escravidão que esta se apresentará a ela como a expressão de sua liberdade; esforçar-se-á por superar sua situação de objeto inessencial assumindo-a radicalmente; através de sua carne, de seus sentimentos, de suas condutas exaltará soberanamente o amado, pô-lo-á como a realidade e o valor supremos; aniquilar-se-á diante dele. O amor para ela torna-se uma religião.” 412
A mulher que entende o amor como abdicação da sua própria vida para se fundir e plasmar na vida do amante encontra aí uma solução de compromisso e uma forma vicariante de existir como ser humano; perante a dificuldade de se afirmar como sujeito e de transcender a condição que a sociedade, aproveitando algumas das suas limitações naturais, lhe impõe, não se assume como um ser livre e foge para a inautenticidade. Essa fuga é compreensível a partir do momento em que todo o processo de aculturação a ela conduz: à falta de independência económica junta-se a colonização cultural devidamente reforçada por códigos jurídicos que a tratam como um ser inferior e inessencial. Neste contexto é preciso ser uma heroína para ser um ser humano.