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sábado, 26 de novembro de 2011

Shulamith Firestone – perigosamente à frente do seu tempo

Shulamith Firestone foi um ícone do movimento feminista dos anos sessenta/setenta que surpreendentemente desapareceu de cena logo após a publicação de A Dialética do Sexo em 1970, na altura um enorme sucesso comercial, mas só reeditada mais de vinte anos depois. Muito pouco se tem escrito sobre Firestone e em certo sentido ela transformou-se numa relíquia do passado, o que, para alguém que teve uma visão tão premonitória do futuro, não deixa de provocar estranheza.

A visão que expõe nessa obra é verdadeiramente utópica e, embora inspirada em Engels e Marx, vai contra a corrente, não só porque coloca na origem do processo histórico a diferença de sexo - não os antagonismos de classe - como também porque considera prioritária a luta pela libertação das mulheres; Firestone, embora consciente da desigualdade económica e racial, não assumiu a tese, cara à intelectualidade de esquerda da época, de que era prioritária a luta de classes, na suposição de que com a abolição das classes se eliminaria a opressão das mulheres.

A experiência pessoal de Firestone, bem como a experiência histórica vivida pela União Soviética, não lhe permitiam alimentar muitas ilusões quanto à bondade dessa tese. De facto, ela própria tivera oportunidade de apreciar como os colegas reagiam às propostas que apresentava para se debaterem as questões das mulheres, não as considerando oportunas e como presumiam que o papel das participantes femininas nas reuniões políticas deveria ser o de coadjuvarem os homens, secretariando e distribuindo “cafezinhos”. Na época, ao participar em Chicago na National Convention for a New Politics, redigira com outras mulheres uma resolução na qual se criticavam os media pela divulgação de estereótipos sobre as mulheres enquanto simples auxiliares dos homens e meros objetos sexuais e se exigia o controlo completo das mulheres dos seus próprios corpos, a divulgação de informação sobre o controlo de natalidade a todas as mulheres independentemente do seu estado civil e a remoção de todas as proibições contra o aborto; mas quando chegou a altura de apresentar a proposta de resolução o presidente da reunião retirou-a da pauta com o argumento de que havia assuntos mais importantes a debater. Essa foi a gota que fez transbordar o copo, na semana seguinte formava-se o primeiro grupo de mulheres. Também na União Soviética se persistia na diferenciação de papéis com uma participação mínima das mulheres na esfera pública.

Neste contexto, começa a perceber-se por que é que as propostas verdadeiramente subversivas de S. encontraram tanta resistência e anticorpos. Tinha contra ela a massa de mulheres e de homens antifeministas; era vista com desconfiança pela intelectualidade de esquerda de formação marxista; as feministas liberais consideravam que ela estava a fazer um mau serviço ao movimento ao alienar a simpatia de muitas mulheres e homens, em virtude do radicalismo das suas propostas; e mesmo no seio do movimento feminista radical, estava longe de gerar consensos; numa época em que a pílula anticoncepcional ainda era acessível a um número restrito de mulheres, as suas ideias sobre gravidez e maternidade não eram aceites por muitas. Mas o facto é que, apesar de tantas e tão poderosas resistências, a leitura de A Dialética do Sexo, quatro décadas depois, revela como se caminhou em vários aspetos no sentido preconizado pela autora.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Shulamith Firestone e os papéis atribuídos às mulheres

Comecei a ler The Dialectic of Sex: The Case for Feminist Revolution, de Shulamith Firestone, que ainda não conhecia, e vou começar a partilhar as reflexões que a leitura me está a proporcionar.
Shulamith Firestone (1945-), feminista da geração de setenta do seculo XX, publicou então The Dialectic of Sex: The Case for Feminist Revolution, recebida com profunda desconfiança e mesmo escândalo por parte de vários sectores, nomeadamente de sectores feministas. Essa obra, escrita quando tinha apenas vinte e cinco anos, muito falada mas pouco conhecida, só foi reeditada uma vez, o que mostra como continuamos a viver em sociedades que procuram, com sucesso, calar vozes dissidentes a que não interessa dar audição.
Ora independentemente de se concordar ou não com o conteúdo abordado e teses defendidas, o que é um facto é que “exige” a nossa reflexão já que se trata de uma obra importante e de um marco que não se pode ignorar na história do feminismo e na evolução do movimento. Shulamith desafia-nos a repensar e a reavaliar os nossos sentimentos acerca dos papéis que secularmente nos têm sido atribuídos.
O livro foi publicado em 1970 e desde então os progressos na condição das mulheres têm sido em certa medida impressionantes, mas apesar de tudo há ainda muita actualidade nas ideias defendidas por S. que ainda hoje a uma primeira apreciação nos parecem chocantes.
Para S. o verdadeiro objectivo da luta deve ser não só o de minar o privilégio masculino mas também a própria distinção sexual, com o genuíno convencimento de que não basta reformar um sistema iníquo mas é necessário eliminá-lo e substitui-lo por um outro totalmente novo, não basta exigir igualdade perante a lei e igualdade de direitos; se as estruturas da sociedade não estiverem preparadas essa será uma tarefa vã e de fachada. O que é preciso é conseguir que a diferença genital não se transforme numa diferença cultural. Nesse aspeto, se ela tem razão, muito, mas mesmo muito, está ainda por fazer.
S. foi inspirada pela teoria marxista e defendeu que a revolução feminista, para o ser, tinha de começar pela base, pelo que está na origem da opressão das mulheres assim como o marxismo procurou encontrar o que se encontra na origem da opressão de classe. Mas na década de setenta, na América, embora os ventos parecessem favoráveis o facto é que a classe média era, como ainda hoje é, profundamente conservadora e não via com bons olhos qualquer movimento revolucionário. Além disso, mais tarde, a implosão da União Soviética, com razão ou sem razão, em certo sentido veio a descredibilizar o marxismo e a partir deste caldo político e cultural qualquer tentativa de imprimir ao movimento feminista um cunho revolucionário ficou votada ao fracasso e as feministas tiveram de se contentar com reformas pontuais que S. tão bem denunciara.
Uma das teses mais polémicas e chocantes de S. é a de que as mulheres, para atingirem a igualdade, têm de abandonar o seu papel biológico como únicas produtoras de crianças. O papel reprodutivo das mulheres, segundo S, foi em grande parte responsável, pelo lugar de cidadãs de segunda classe que têm ocupado e não haverá qualquer alteração significativa enquanto esse papel não for secundarizado . Defende ainda que os cuidados com as crianças devem ser partilhados por homens e mulheres, defende “a libertação das mulheres da tirania da reprodução por todos os meios possíveis e a difusão dos cuidados com as crianças pela sociedade como um todo, por homens e outras crianças assim como pelas mulheres.”
Na época e ainda hoje estas ideias parecem quase ultrajantes, mesmo a muitas mulheres; a essa sensibilidade não são alheios os meios de comunicação social que insistentemente procuram fazer passar a mensagem de que a maternidade é algo de maravilhoso. As chamadas revistas cor-de rosa não se poupam a esforços e a gravidez de jovens mulheres famosas é um item recorrente. Mas, se refletirmos um pouco, também vemos como o número de filhos que as mulheres decidem ter é cada vez menor, isto claro nos países onde a igualdade sexual tem feito o seu caminho; também vemos como nos países mais avançados, os pais juntamente com as mães se encarregam de tarefas relacionadas com os cuidados das crianças. Por isso, podemos concluir que, apesar de tudo, as reflexões “chocantes” de S. não caíram em saco roto e que ela foi mais uma daquelas pessoas que, vivendo à frente do seu tempo, teve de pagar um preço pela sua ousadia e temeridade.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Sufrágio feminino - 90º aniversário

Completam-se hoje noventa anos do sufrágio feminino nos Estados Unidos - em 26 de Agosto de 1920 foi finalmente aprovada a 19ª Nona Emenda constitucional que o garantia.
Se lembrarmos que a luta começou formalmente na Convenção de Seneca Falls em 1848, na qual Elizabeth Cady Stanton leu a célebre Declaração de Direitos e Sentimentos, contas feitas, constatamos que a luta só foi coroada de sucesso setenta e dois anos depois de ter sido iniciada o que é um longo espaço de tempo para uma conquista que parecia mais do que justa; lembremos ainda que das signatárias do documento apenas uma viveu o suficiente para tomar conhecimento da aprovação da 19ª Emenda.
Esta memória talvez nos ajude a aceitar com menor desânimo o facto de continuarmos a assistir a um progresso lento dos direitos das mulheres, por vezes seguido de retrocessos, talvez nos ajude a perceber por que é que o sexismo continua a fazer parte das nossas vidas. Afinal o processo histórico tem estes percalços.

De qualquer forma, muitos avanços foram alcançados; hoje, mesmo no Brasil, um país que não foi de modo algum pioneiro na luta pela emancipação da mulher, duas mulheres apresentam-se como candidatas à presidência da república, mas se olharmos em volta delas mesmas, vemos como o universo da política continua a ser um universo avassaladoramente masculino e o quanto há ainda para fazer.

Para comemorar o dia em que o sufrágio feminino foi conseguido nos Estados Unidos nada mais apropriado do que apresentar algumas citações de uma mulher que com o seu esforço, inteligência e tenacidade para ele contribuiu, trata-se de Susan B. Anthony, que algumas anti-feministas contemporâneas querem cooptar para a causa, num claro desrespeito à sua memória. As palavras que Susan Anthony escreveu há mais de cento e cinquenta anos, ainda hoje, apesar de avanços, fazem sentido:

«O facto é que as mulheres estão acorrentadas e a sua servidão é tanto mais degradante quanto mais dela não se apercebem.»

«Não haverá igualdade enquanto as próprias mulheres não colaborarem na feitura das leis e na eleição dos legisladores.»

«Não se pode dizer que a mulher instruída é a mais feliz. Quanto mais aberta é a sua mente melhor compreende as condições desiguais entre homens e mulheres e mais desespera perante um governo que tolera tal situação.»

sexta-feira, 16 de julho de 2010

O sufragismo norte-americano

Podemos considerar a Convenção de Seneca Falls em 1848 - na qual participaram cerca de 300 pessoas, das quais 40 eram homens - como um marco na história do sufragismo norte-americano. Nela, Elizabeth Cady Stanton, parafraseando a Declaração da Independência dos Estados Unidos, numa proclamação que ficou célebre – a Declaração de Sentimentos e Intenções - formulou a reivindicação do voto para as mulheres e exigiu o fim da discriminação com base no sexo.
Antes de Seneca Falls, as feministas já se tinham envolvido em movimentos tendentes à morigeração dos costumes, como o Movimento da Temperança que visava a proibição da venda de bebidas alcoólicas, cujo consumo, frequentemente excessivo, despoletava atitudes de violência doméstica cujas principais vítimas eram as mulheres e as crianças. Apoiaram também o movimento abolicionista e a participação que nele tiveram despertou com certeza as suas consciências para a própria injustiça da situação que viviam enquanto mulheres desprovidas dos direitos mais elementares, sujeitas à autoridade de maridos e de pais frequentemente tirânicos e abusadores. O debate sobre os direitos dos negros e a campanha para a abolição da escravatura levou-as a descobrir o seu próprio estatuto de autênticas «servas domésticas».
Um episódio ocorrido na época, numa reunião internacional, em Londres, em 1840, para debater a abolição da escravatura, mostra bem a discriminação que as mulheres tinham de enfrentar; neste fórum que se propunha lutar pela libertação de seres humanos oprimidos por leis iníquas, ironia das ironias, as delegadas femininas foram impedidas de usar a palavra.
Embora a reivindicação do direito de voto fosse o ponto fulcral do movimento, feministas, como Elizabeth C. Stanton e Susan Anthony, pelas campanhas que lideraram, conseguiram que a lei do divórcio, que até aí só podia ser requerido pelo marido, fosse alterada e que o regime de propriedade , que retirava às mulheres a capacidade legal de possuírem ou mesmo de administrarem os bens, inclusive os herdados, fosse modificada.
A reivindicação do voto, apresentada desde 1830, só começou a surgir com frequência a partir de 1860. No Reino Unido, Stuart Mill em 1867 apresentou no Parlamento, na Câmara dos Comuns, uma proposta nesse sentido que foi derrotada. Nos Estados Unidos, o direito só foi reconhecido constitucionalmente em 1920 e mesmo assim apenas para mulheres com idade superior a 30 anos; só em 1928 foi reconhecido nos mesmos termos em que era permitido aos homens.
A aquisição dos direitos políticos foi apenas um primeiro passo no sentido da emancipação, muito ainda precisava de ser feito, pois como bem sabemos, não se mudam mentalidades por decreto.

sábado, 3 de julho de 2010

Susan B. Anthony e as «feministas conservadoras»

Susan Brown Anthony, 1820-1906, foi a segunda de sete filhos de uma família Quaker que, como acontecia entre os Quakers, era contra a escravatura e acreditava na igualdade entre homens e mulheres. Susan viveu pois num ambiente familiar muito progressista, numa casa que era o ponto de encontro de activistas anti-esclavagistas e teve como vizinho o grande orador afro-americano Frederick Douglas.
Depois de receber educação numa escola religiosa Quaker em Filadélfia, Susan seguiu a carreira de professora durante alguns anos - uma das poucas profissões então abertas a mulheres, ganhando um quinto do que os colegas masculinos ganhavam – e combateu a segregação racial nas escolas. Em 1848, juntou-se às «Filhas da Temperança» (Daughters of Temperance) e em 1852 fundou a Sociedade das Mulheres pela temperança, do Estado de New Jersey (Women´s New York State of Temperance Society), preocupada com os abusos sofridos pelas crianças e mulheres de alcoólicos, apoiou e chegou mesmo a liderar um movimento contra a venda de bebidas alcoólicas.
Conheceu Elizabeth Cady Stanton em 1851 numa convenção anti-esclavagista e tornaram-se amigas. Em 1854 apresentou uma petição sobre os direitos de propriedade das mulheres e sobre o sufrágio. Viu a primeira reivindicação satisfeita em 1860 quando foi reconhecido legalmente o direito das mulheres controlarem os seus próprios salários e heranças e exercerem autoridade sobre os filhos.
Em relação ao sufrágio, a principal reivindicação feminista da época, exigiu-o para mulheres brancas e negras; mas, porque se pronunciou sobre o absurdo que era conceder o voto a homens analfabetos enquanto se negava o mesmo direito a mulheres cultas, foi acusada de elitista. Ora tal acusação, em meu entender, resulta apenas de se ignorar propositadamente o contexto em que as afirmações são proferidas, para distorcer completamente o seu sentido.
Em 1872 teve a ousadia de votar para a eleição presidencial argumentando que a constituição diz: «Nós, as pessoas, e não, nós cidadãos brancos do sexo masculino.» Foi presa, julgada e multada, mas nunca pagou a multa.
De 1868 a 1870 foi proprietária de um jornal - «Revolution» - que, entre outros tópicos, lutava contra a discriminação no trabalho e na aplicação de leis do divórcio. Os apoios financeiros escassearam e ela própria teve de trabalhar durante alguns anos para pagar as dívidas, entretanto contraídas.
Organizou em 1890, em Washington, a primeira convenção para o sufrágio feminino e participou em outros datas e lugares em movimentos a favor do sufrágio pelo que foi de todo o direito que a emenda constitucional, que viria a legitimar o sufrágio nos Estados Unidos, ficou conhecida pela Emenda Susan B. Anthony.
Com este brilhante currículo só é de estranhar que antifeministas dos nossos dias se procurem apropriar do nome e do prestígio de que Susan Anthony goza para promoverem uma agenda que não defende os interesses das mulheres.
Susan Anthony bateu-se pelo direito de voto para as mulheres; lutou pela abolição da escravatura; reivindicou o direito das mulheres controlarem os seus salários e heranças bem como de terem autoridade sobre os filhos e poderem interpor acções de divórcio; combateu a violência doméstica; pugnou para que as mulheres não fossem discriminadas, como ela própria foi, no exercício das diferentes profissões. Todas estas lutas eram no momento lutas prioritárias e corajosas. Poderíamos perguntar se mulheres que hoje nos Estados Unidos se reclamam do seu legado, as tais «feministas conservadoras» de que fala Sara Palin, as teriam endossado. A resposta credível é rotundamente negativa. Hoje gozam de direitos de cidadania que só existem porque as feministas lutaram quando era preciso fazê-lo e quando surgiram condições objectivas para essa luta, mas é de presumir que então teriam adoptado a posição que as antifeministas assumiram, considerando que o voto não era necessário pois os homens representavam bem os interesses das mulheres.
Hoje, a luta feminista centra-se sobre a questão da autonomia das mulheres que passa pelo controlo da sua capacidade reprodutiva e pela garantia dos seus direitos reprodutivos, bem como pelo desenvolvimento de facto das liberdades que a lei lhes concede; ora é precisamente neste campo que as «feministas conservadoras» assestam baterias para minar qualquer pretensão libertadora. (Sara Palin vai ao ponto de afirmar que se uma sua filha fosse violada e engravidasse, a gravidez seria para levar até ao fim). As «feministas conservadoras» costumam ainda rejeitar o apoio a medidas que visam facilitar a vida das mães trabalhadoras, como é o caso da instituição de creches e de outros apoios. Quanto à violência doméstica, embora a critiquem, também não se cansam de afirmar que as feministas exageram o fenómeno. A culpa pelo divórcio é por vezes por elas atribuída a mulheres demasiado exigentes, influenciadas pelo feminismo. Tudo isto, penso, é mais do que suficiente para denunciar o aproveitamento que fazem do nome de uma mulher, essa sim, uma autêntica feminista porque colocou a sua vida ao serviço dos interesses das mulheres com a consciência plena de que estes passam pela sua autonomia e libertação.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Sobre a «natureza» das mulheres

Sempre que nos virmos confrontad@s com estereótipos acerca da natureza das mulheres - utilizados para lhes impedir o acesso a determinadas profissões, é muito conveniente recordar atitudes assumidas no passado por autoridades que o correr dos tempos acabou por desmentir cabalmente. Hoje, o universo do direito conta já com um número significativo de mulheres nos mais diversos cargos, mas há pouco mais de um século, um ilustre professor de Harvard ainda se atrevia a proferir a seguinte declaração:

«Espero que a Faculdade de Direito de Harvard continue livre e não contaminada por mulheres. As mulheres – Deus as abençoe, estão fora do lugar na profissão jurídica. Elas são motivadas pela intuição – sua especial prerrogativa – impulso e preconceito, os quais são antitéticos do juízo racional que deve ser a principal característica de um advogado qualificado – para além de qualquer questão de carácter moral, uma boa mulher não pode ser um bom advogado, paralelamente, um bom advogado não pode ser uma boa mulher. Uma mulher advogada não é a companheira que um homem precisa e ela não precisa de o ser.»
Charles L. Griffin, Harvard 1888.

Griffin, seguindo de perto filósofos ilustres, como Immanuel Kant, atribui à mulher uma natureza em que a razão é ofuscada pela intuição e em que domina o comportamento impulsivo e preconceituoso, carecendo da objectividade mínima exigível para aplicar o rigor da Lei, desse modo, uma boa mulher, leia-se uma mulher autenticamente mulher, nunca seria indicada para o exercício de tal profissão. Assim, restou às más mulheres estarem-se nas tintas para a má reputação e lutarem pelo acesso a uma profissão que lhes queriam vedar. Foi o que elas fizeram-se, pode dizer-se que com grande sucesso. Ainda uma nota curiosa, Griffin entende que as mulheres devem estar atentas ao que os homens precisam, e estes precisam de boas mulheres. Muito interessante esta postura!!

A imagem é de Arabella Mansfield a primeira mulher a ser admitida, a título excepcional, na barra dos tribunais de Iowa nos Estados Unidos em 1869. No ano seguinte a lei foi alterada para abrir a profissão às mulheres.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Annie Besant – transgressora e marginal

Continuando a abordar o século XIX na Inglaterra vitoriana, vou hoje escrever sobre Annie Besant, personagem cuja história de vida daria um filme interessante e comovente, se a indústria do cinema, navegando em outras águas, não desdenhasse completamente este tipo de temas, para, ao invés, nos bombardear com a banalidade da violência e a trivialidade de aventuras mais toscas.

Annie Besant (1847-1933), filha de pai médico, livre pensador e céptico, e de mãe católica devota, revelou uma inteligência precoce. A sua evolução espiritual conheceu um primeiro momento de adesão ao catolicismo, em breve substituído pelo protestantismo em que foi iniciada por uma amiga. Mais tarde a leitura de Comte, com a sua lei dos três estádios de evolução da humanidade (teológico, metafísico e positivo), e de Charles Darwin inclinou-a para o ateísmo; todavia, necessidades espirituais mais fortes e a estada na Índia levaram-na a aderir à Teosofia que lhe permitia conciliar uma concepção progressista do fenómeno religioso com a defesa de causas humanitárias.

Annie casou em 1867 com Frank Besant, pastor protestante, com o qual teve dois filhos, mas a sua evolução no campo religioso conduziu a incompatibilidades que levaram à separação em 1873. Mais tarde veio a contrair um segundo casamento com Charles Bradlaugh, Membro do Parlamento, que a introduziu no jornalismo e no activismo político.

Esteve presa pelo que hoje se chama delito de opinião, tendo ficado famoso o seu julgamento juntamente com Bradlaugh por terem prefaciado um livro no qual se defendia o controlo de nascimentos e, obviamente, a divulgação de informação sobre práticas contraceptivas o que, para muitos, constituia um autêntico atentado à estabilidade da sociedade vitoriana e aos valores da família patriarcal na qual o homem controlava a sexualidade feminina.
Mais tarde, na India, foi novamente presa, acusada de sedição por defender o nacionalismo indiano contra o imperialismo britânico. Mas acabou por ser a primeira mulher eleita Presidente do Congresso Nacional da India.

A adesão à Sociedade Teosófica, à qual presidiu em 1907, bem como a fundação, juntamente com Maria Russak e James Ingel Wedgwood, da Ordem Mística do Templo da Rosa Cruz, que teve curta duração, talvez expliquem a sua marginalização por parte de certos sectores intelectuais poderosos na determinação de cânones literários e filosóficos, mas está na hora de proceder a uma reavaliação do contributo de uma mulher que lutou pela causa feminista, pelo secularismo, que liderou lutas de trabalhadoras, que antecipou a descolonização e que advogou a união de todas as religiões e o seu empenhamento em lutas humanitárias - uma mulher que esteve nitidamente à frente do seu tempo.

A obra que deixou é vasta, dela destacamos: «The Political Status of Women» (1874) e «Marriage as it was, As i tis, and As it should be: A Plea for Reform» (1878).

quarta-feira, 8 de julho de 2009

O movimento sufragista

Aproveitando um comentário de Tere Marin do blog Sexismo Publicitário, transcrevo aqui as informações que ela recolheu sobre a luta das sufragistas inglesas do período vitoriano que mostram como, apesar de uma rainha tão conservadora e mesmo reaccionária, a luta das mulheres não esmoreceu.

A Vitória, mulher, provavelmente não à rainha, parecia natural a supremacia masculina no casamento e não repugnava que as mulheres fossem consideradas menores pelas leis e pelos costumes, mas os tempos prenunciavam mudanças e as sufragistas souberam aproveitar a maré:

"Entre 1850 y 1920 las mujeres inglesas lucharon por conseguir leyes más justas en lo referente al matrimonio, a la custodia de los hijos, al control sobre sus bienes y salarios, al acceso a la educación, al voto y a la participación política. Desde 1833 comenzaron a aparecer manifiestos y artículos que pedían el voto para las mujeres. En respuesta a estas protestas, la Cámara de los Comunes insertó por vez primera de forma explícita la palabra varón en los requisitos requeridos para ejercer el voto. En 1847 se fundó la Asociación Política Femenina para luchar por el voto de las mujeres.
En 1851, Harriet Taylor Mill (1807-1858) escribió su Ensayo sobre el sufragio de las mujeres. Las feministas enviaron peticiones al Parlamento, que no obtuvieron respuesta. Mill reclamó la plena igualdad de derechos políticos y civiles para las mujeres inglesas, inspirándose en los logros conseguidos por las norteamericanas. Escribió: “Lo que queremos para las mujeres es igualdad de derechos, igualdad de privilegios sociales, no una situación diferente, una especie de sacerdocio sentimental”. Harriet Mill no ejerció ninguna actividad política pública debido a su precaria salud, pero inspiró a su marido John Stuart Mill su famoso ensayo La esclavitud femenina, publicado en 1869, que habría de convertirse en un clásico del pensamiento feminista. Pero antes de la aparición del libro de Stuart Mill, las mujeres inglesas llevaban décadas de lucha."(wikipedia)

*As sufragistas, como podemos ver pela imagem, resumiam o sentido da sua luta, reivindicando liberdade, enquanto direito inalienável de qualquer ser humano.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

“Estou-me nas tintas para a minha reputação”

Entre Femininity, do Magic Summer (1963) e Bad Reputation (1980), da cantora e guitarrista rock Joan Jett, medeiam uns escassos dezassete anos, mas que diferença quanto à mensagem que fazem passar!

No caso de Femininity, temos uma espécie de manual de boas maneiras em verso, para meninas casadoiras, que aconselha a conformidade com os padrões do que convencionalmente se entende por feminino, balizados pela ideia de que o papel da mulher é agradar ao homem e gratificar o seu (dele) ego e que propõe subserviência e passividade para a mulher: “Deixa-o fazer a conversa; os homens gostam de quem sabe ouvir. Ri, mas não demasiado alto, se ele decidir contar uma piada”.
Pode dizer-se que, quanto à relação entre os sexos, o que se está aqui a defender é a teoria da complementaridade, ouve-se mesmo: “Complementa a sua masculinidade”. E para terminar aconselha-se a jovem adolescente a deixar que as aparências governem a sua vida: “ Sê modesta, doce e pura, esconde o que realmente és”
É caso para dizer que, em pleno século XX, no início da década de sessenta, ainda é Jean-Jacques Rousseau, dos idos do século XVIII, que governa as mentalidades no que ao tema diz respeito, vejamos o que ele escreveu no Emile ou de l’Education:

“Pela própria lei da Natureza, as mulheres, tanto por elas como pelos filhos, estão à mercê dos juízos dos homens: não basta que sejam estimáveis, é preciso que sejam estimadas; não basta que sejam belas, é preciso que agradem; não basta que sejam sensatas, é preciso que sejam reconhecidas como tal; a sua honra não reside apenas na sua conduta mas também na sua reputação (…). O homem, ao agir correctamente, depende apenas dele próprio e pode desafiar o julgamento público, mas a mulher, ao agir correctamente, cumpre apenas metade da sua tarefa, e o que as pessoas pensam dela não é menos importante do que o que ela com efeito é. Por isso, a sua educação deve, em relação a este aspecto, ser a contrária da nossa: a opinião pública é o túmulo da virtude para os homens e o trono para as mulheres.

…Toda a educação das mulheres deve ser relativa aos homens. Agradar-lhes, ser-lhes útil, fazer-se amar e honrar por eles; criá-los quando jovens, cuidar deles quando crescidos, aconselhá-los, consolá-los, tornar a sua vida agradável e doce; estes são os deveres das mulheres em todos os tempos e o que se deve ensinar-lhes desde a infância. Quanto mais nos afastarmos deste princípio, mais nos afastaremos do objectivo e todos os preceitos que lhes dermos de nada servirão para a sua felicidade ou para a nossa.”
Rousseau alerta a mulher para a necessidade, não só de ser virtuosa mas também de o parecer, deixando-se tiranizar pela opinião pública que, em contraste, o verdadeiro homem pode desafiar. Nega também autonomia à mulher cuja vida diz só fazer sentido ao serviço do homem. Se repararmos, em Femininity as teses defendidas são muito próximas.

Em flagrante contraste, já na década de oitenta do mesmo século XX, Joan Jett, que não se limita a ser cantora, mas que é também guitarrista numa banda rock, desafia ferozmente a opinião pública e defende a sua autonomia e o direito a ser feliz segundo os seus próprios padrões:
“Estou-me nas tintas para a minha reputação. Tu vives no passado, mas há uma nova geração. Uma rapariga pode fazer o que quiser e é isso que vou fazer. Não tenho de agradar a ninguém. Não tenho medo de ser diferente. De facto não me importa se pensares que eu sou estranha. Estou-me nas tintas para a minha reputação.”

Está na altura de voltarmos a ouvir as duas canções que são também dois marcos na história do feminismo.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Uma mulher notável

Mary Wollstonecraft foi um dos pilares do movimento feminista - que surgiu e se desenvolveu na Europa e nos Estados Unidos a partir dos tempos modernos. Teve uma vida tumultuada e breve, mas mesmo assim deixou sinais que a tinta da história não apagou.
Mary nasceu em 1759 na Grã- Bretanha; era a segunda de sete filhos de um pai irresponsável, alcoólico e perdulário que lançou a família na miséria; teve assim conhecimento em primeira mão e por experiência própria dos abusos que a família patriarcal permitia aos maridos, que podiam pôr e dispor dos bens que as próprias mulheres traziam para o matrimónio.
Mary viveu apenas 38 anos pois morreu em 1797 de complicações do parto da sua segunda filha, a futura escritora Mary Shelley; teve uma vida assinalada por dificuldades económicas que sempre procurou superar através de ocupações várias, desde dama de companhia e também governante em casa de famílias aristocráticas e abastadas, até fundadora e directora de uma escola para jovens raparigas, e, sobretudo, colaboradora em revistas, tradutora e escritora, num universo até então praticamente dominado em exclusivo por homens.
No plano pessoal e amoroso, uma primeira ligação com Gilbert Imlay, do qual teve uma filha ilegítima - o que à época era um terrível estigma, causou-lhe sofrimento e desespero que a levou mesmo a uma tentativa de suicídio. Posteriormente, casou com William Godwin, jornalista, escritor e teórico anarquista, quando esperava a sua segunda filha; os dois eram contrários à instituição do casamento que aprisionava as mulheres num colete de forças legal, retirando-lhes os poucos direitos que as não casadas ainda usufruíam, mas decidiram pactuar com a situação, tendo em vista preservar os interesses da filha que haveria de nascer. Embora vivessem em casas separadas, unia-os o respeito e o companheirismo; infelizmente, esta promissora união terminou com a morte prematura de Mary.
Mary Wolstonecraft escreveu vários livros, mas o mais conhecido foi A Vindication of the Rights of Woman, no qual critica a educação que na época era ministrada às jovens e reivindica direitos para as mulheres, muito especificamente o direito a acederem à verdadeira educação que as preparasse para a vida e que não se preocupasse em ministrar-lhes apenas as prendas domésticas que as tornariam boas esposas e mães de família.
M. W. critica o sexismo de Rousseau, defendendo que as mulheres como seres humanos são espiritualmente iguais aos homens, tanto do ponto de vista intelectual como quanto a capacidade moral. Duas importantes ideias que filósofos, e homens em geral, rejeitavam, reservando para as mulheres o estatuto de menoridade intelectual e moral; a rejeição dessas ideias servia ainda para justificar o tipo de educação que deveriam receber. Ora M. W. tem bem a noção de que o direito à educação será o trampolim para a emancipação, contrariando Rousseau, mas também Kant, e muitos outros, que justificavam o desigual tratamento dado às mulheres numa pretensa deficiência ou falta no domínio da racionalidade que as incapacitaria para o exercício de determinados papéis. Por isso, M. W. defende insistentemente que a mulher, tal como o homem, é um ser dotado de razão e da capacidade de se deixar determinar racionalmente e que distinções artificiais de género corrompem as relações entre homens e mulheres.

Passados duzentos e cinquenta anos após a morte de Mary Wollstonecraft, que foi a todos os títulos uma mulher notável, ainda hoje nos surpreendemos e ficamos quase incrédulas quando sabemos que na monumental e brilhante Enciclopédia (projecto de Diderot e D’Alembert) ela vêm registada na letra P (das prostitutas), um sinal de tempos em que, apesar dos progressos e das luzes da razão, a misoginia continuava no seu melhor.