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quarta-feira, 14 de março de 2012

As jovens e o feminismo

Encontrei aqui um post interessante sobre a velha rejeição do feminismo por jovens mulheres que são ignorantes da história, o que não admira muito porque se tem feito tudo para apagar do passado o que não interessa ao statu quo. Mas mesmo assim não deixa de ser lamentável essa ignorância, sobretudo vinda de uma jovem que cursou uma universidade e até tirou um curso de filosofia, pergunto-me para que lhe serviu? A jovem em questão é Talyta Carvalho e o texto a seguir de Lélia Almeida é escrito a pensar nela:

Marcelo Mirisola publicou hoje, dia 8 de março, no Facebook, a matéria de Talyta Carvalho, uma filósofa de 25 anos onde ela diz que não deve nada ao feminismo e às feministas. A frase não é original, quem a disse assim, tal e qual foi Margaret Thatcher quando chegou ao poder. Não sei se a moça sabe o que a Dama de Ferro significou na história da Inglaterra e no aniquilamento das políticas de direitos humanos, trabalhistas e outros daquele país. O GNT está passando esta semana um documentário canadense que se chama "Quem Quer Ser Feminista?" falando sobre os diferentes momentos da história da luta das mulheres e entrevistando algumas feministas famosas. Naomy Wolf diz que o grande problema do feminismo hoje é para quem passar o bastão da luta já que as mulheres jovens não se interessam pelo ideário feminista numa falsa ilusão de que tudo já foi conquistado. Germaine Greer diz que a tendência de uma nova onda feminista sempre tende a negar a anterior e que, portanto, é compreensível que as jovens mulheres neguem o feminismo. O que é legítimo, elas que inventem o feminismo que bem entenderem ou que nunca mais falem neste assunto.
Marcelo Mirisola diz que a moça é corajosa, pergunta ás leitoras do face o que achamos de fazer uma entrevista com a jovem e publicá-la no Congresso em Foco, veículo onde ele é colunista e propõe que enviemos perguntas para a entrevista. Sugiro que ele entreviste a moça, e que possibilite que ela vire uma celebridade e, quem sabe, a candidata a calendário de oficina mecânica, como sói acontecer.
Mas vou fazer o meu dever de casa. Seguem as minhas sugestões de perguntas: Você já fez um aborto? Você já se sentiu constrangida, desconfortável, impotente junto a um parceiro que se negou terminantemente a usar camisinha com você? Você sabia que houve um momento na história do mundo em que as mulheres tiveram de se rebelar contra normas e padrões muito rígidos para poder estudar, dirigir um carro, não querer casar e ter filhos e fazer qualquer coisa que achassem mais interessantes? Você se sente inteiramente feliz e confortável com o seu corpo, sua sexualidade e isenta do bombardeio midiático que preconiza a beleza feminina jovem e bela e que trata as mulheres como retardadas e infantis? Você sabia que milhares de mulheres no mundo inteiro morrem na mesa de abortos mal feitos, de mutilação genital e nas mãos de homens que dizem matar por amor ou para defender a própria honra? Você acha que as mulheres devem votar e defender suas demandas, interesses, e os das suas filhas? O que você acha dos índices relativos á saúde mental que provam que as mulheres são supermedicadas por depressão e outras moléstias modernas por viverem situações de sobrecarga cada dia mais insuportáveis para grande parte delas? Você acha que os maridos devem sustentar suas mulheres? Você acha que as mulheres devem ficar em casa cuidando dos filhos? Você acha que em briga de marido e mulher não se mete a colher e que as mulheres que são estupradas, no fundo, provocaram esta situação?

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Anti-feminismo, biologismo e idealismo

Se escavarmos um pouco verificamos que por detrás do anti-feminismo se encontra o essencialismo e na base deste o idealismo filosófico; ora tanto o anti-feminismo como o idealismo ainda constituem a ideologia dominante, constantemente reforçada pelos media de informação e de entretenimento, e é uma tarefa ciclópica tentar desalojar esta ideologia até porque mesmo a própria ciência, sobretudo nas suas versões espúrias, parece sustentá-la. Estou a referir-me ao biologismo, ou seja ao determinismo genético, que pretende encontrar os genes responsáveis pelo nosso comportamento e desse modo «naturalizar» as diferenças entre mulheres e homens, com a óbvia consequência de que se as diferenças estão naturalmente inscritas no nosso código genético então nada há a fazer senão aceitá-las e tirar delas o melhor partido.

A base metafísica do biologismo também é o idealismo e convém não o esquecer, as suas hipóteses são o substituto moderno da hipótese divina. No século XIX, e ainda hoje para muitos sectores da população, bastava dizer que deus tinha criado homens e mulheres diferentes e por isso uma mulher que pretendesse ter direito de voto ou exercer uma profissão «masculina» estava a desrespeitar o plano divino. Nos nossos dias a coisa é mais sofisticada, não se invoca o plano divino, recorre-se à genética, com igual sucesso. Mas só «mudam os nomes dos bois» porque num caso e no outro aceita-se que os seres humanos são à partida isto ou aquilo, tem uma essência (ideal) que deve moldar as suas existências (concretas). A partir daqui, a capacidade de intervenção do ser humano fica reduzida à expressão mais simples e a organização social iníqua está justificada: afinal vivemos no melhor dos mundos possíveis.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

«boas raparigas» e «más raparigas» - todas são objectificadas


"O sistema patriarcal sugere que há apenas duas identidades que uma mulher pode assumir. Se aceita o seu papel tradicional de género é uma «boa rapariga»; se não, é «má rapariga». Estes dois papéis … vêem as mulheres apenas em termos de como se relacionam com a ordem patriarcal. Claro que o modo como as «boas rapariga» e as «más raparigas» são especificamente definidas alterar-se-á de acordo com a época. Mas será o sistema patriarcal que procederá à definição porque ambos os papéis são projecção do desejo masculino patriarcal; por exemplo, o desejo de possuir mulheres adequadas para serem esposas e mães, o desejo para controlar a sexualidade da mulher de modo a que a sexualidade dos homens não seja ameaçada de nenhum modo, e o desejo de dominar em todas as questões financeiras. Este último desejo é bem servido pela ideologia patriarcal que considera certos tipos de ocupações impróprias para as «boas raparigas»; foi uma ideologia que forçou muitas mulheres escritoras da era vitoriana na Inglaterra a publicarem o seu trabalho sob pseudónimo e que obrigou escritoras dos dois lados do Atlântico a acomodarem a sua arte a expectativas patriarcais. (...)
De acordo com a ideologia patriarcal, em plena força na década de 1950, as más raparigas violam as normas sexuais patriarcais de um ou de outro modo, são sexualmente atrevidas em termos de aparência ou de comportamento, ou tem múltiplos parceiros sexuais. Os homens dormem com as «más raparigas», mas não casam com elas; as «más raparigas» são usadas e depois descartadas porque não merecem melhor e provavelmente nem mesmo esperam melhor; não são boas o suficiente para usarem o nome de um homem e para serem mães das suas crianças legítimas. Esse papel apenas é apropriado para uma convenientemente submissa «boa rapariga». A «boa rapariga é recompensada pelo seu comportamento sendo colocada num pedestal pela cultura patriarcal. A ela são atribuídas todas as virtudes associadas com a feminilidade patriarcal e com a domesticidade: é modesta, não assertiva, auto-sacrifica-se e cuida dos outros, não tem necessidades próprias porque se sente totalmente satisfeita por servir a sua família. De vez em quando pode sentir-se triste com os problemas dos outros e preocupa-se frequentemente com aqueles de que cuida – mas nunca está zangada. Na Inglaterra da cultura vitoriana ela era o «anjo na casa», fazia da casa um porto seguro para o marido - onde ele podia fortalecer-se espiritualmente, antes de reassumir as lutas diárias no local de trabalho - e para as suas crianças onde podiam receber a orientação moral necessária para virem a assumir os seus papeis tradicionais no mundo adulto.
O que há de errado em ser colocada num pedestal? Uma coisa: os pedestais são pequenos e deixam a uma mulher pouco espaço para fazer outra coisa que não seja desempenhar o papel prescrito. Por exemplo, para permanecer no pedestal vitoriano a «boa rapariga» tinha de permanecer desinteressada da actividade sexual a não ser com o objectivo da procriação, porque se acreditava que não era natural que as mulheres tivessem desejo sexual. De facto, esperava-se que a «boa» mulher achasse o sexo ameaçador ou desgostante. Além disso, os pedestais são instáveis, pode cair-se facilmente de um pedestal e quando uma mulher cai é punida com frequência; no melhor dos casos, sofre auto-recriminação, no pior sofre punição física da comunidade e do seu marido, o qual até há relativamente pouco tempo era encorajado pelas leis e pelos costumes, e é ainda com muita frequência tacitamente perdoado por um sistema de justiça ineficiente ou cúmplice.
Neste contexto, é interessante notar que o sistema patriarcal objectifica tanto as «boas» como as «más» raparigas. Isto é, trata as mulheres, qualquer que seja o seu papel, como objectos. Como objectos as mulheres existem, de acordo com a ordem patriarcal, para serem usadas, sem consideração pelas suas próprias perspectivas, sentimentos e opiniões. Afinal, de um ponto de vista patriarcal, as perspectivas, sentimentos e opiniões das mulheres não contam a não ser que se conformem com as do sistema patriarcal.”
Lois Tyson, Critical Theory Today, Routledge, 2006.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

O feminismo implica a crítica radical da cultura em que fomos educadas


Um dos argumentos mais utilizados pelo anti-feminismo para desprestigiar o feminismo é o de que afinal as jovens, livres e emancipadas – diz-se - não querem nada com o feminismo e rejeitam mesmo o rótulo. Ora isto é em parte verdade, mas precisa de ser desconstruído e é essa a tarefa, ou uma das tarefas, do feminismo - produzir conhecimento - que tanto irrita quem se lhe opõe.
Comecemos pela realidade dos factos: são tão poucas as oportunidades oferecidas às jovens na vida pública que é compreensível que encarem o romance e o casamento como a saída adequada e o campo em que naturalmente se podem realizar; paralelamente, a sociedade esgrime com os valores da família e estimula-as a constituírem família, considerando que, se o não fizerem, a sua identidade fica em risco; tudo no ambiente cultural que as rodeia leva a que se definam em termos da capacidade de serem atraentes e de encontrarem um parceiro sexual; neste contexto, aquelas que tiverem a coragem de se afirmar feministas não vão de modo algum favorecer as suas hipóteses no mercado marital - basta recordarmos que ainda hoje são poucos os homens, jovens ou menos jovens, que simpatizam com o feminismo. Quando se vive num ambiente destes, as justas exigências das jovens, se forem apresentadas, vão dificultar a sua capacidade para encontrar parceiro e como a sua identidade foi construída nessa base é a sobrevivência do eu que fica ameaçada.
A posição das jovens mulheres em relação ao feminismo torna-se assim perfeitamente compreensível porque o feminismo implica a crítica radical da cultura em que foram educadas e das instituições em que se encontram integradas; é uma postura muito exigente que pressupõe o sacrifício de interesses imediatos. Na fase de vida em que se encontram, as desilusões ainda não fizeram o seu caminho e o amor romântico parece pleno de promessas, como resistir quando todo o condicionalismo social convida à desistência?
Lisa Maria Hogeland, professora de Inglês e de Estudos sobre as Mulheres na Universidade Cincinnati, resume de forma magistral as ideias que acabei de expor: “A nossa cultura dá às mulheres tão escassos domínios para se desenvolverem, para explorarem possibilidades, para testarem os limites do que podem fazer e do que podem ser, que as relações sexuais e românticas tornam-se no principal e frequentemente único domínio de realização pessoal.”

terça-feira, 16 de novembro de 2010

O conceito de sexo como posse

O sexólogo austríaco Otto Weininger (1880-1903), no livro Sex and Character, publicado em 1903, dá-nos conta do entendimento que têm da relação sexual; esta, em sua opinião e na opinião dos sexólogos da época e mesmo posteriores, pressupõe a passividade e dependência da mulher que, muito convenientemente transposta para as relações sociais entre homens e mulheres, permitirá manter as tradicionais e defendidas relações de domínio/submissão.

«A mulher não deseja ser tratada como um agente activo, ela quer permanecer sempre e em toda a parte – e é nisso que precisamente consiste a feminilidade – puramente passiva, e sentir-se ela própria na dependência da vontade de outrem; ela apenas e tão-somente quer ser desejada fisicamente e ser possuída como uma nova propriedade.»

Este conceito de sexo como posse da mulher pelo homem - obviamente sem reciprocidade – foi o prevalecente ainda no decurso do século XX; mas hoje é algo que repugna a muitas mulheres e mesmo a alguns homens; de resto, desde sempre, estou em crer que o homem apenas imaginou possuir a mulher através do acto sexual e que ela aquiesceu a entrar no «jogo», por necessidade de sobrevivência, nuns casos, e por pura conveniência pragmática, em outros.
Weininger dá todvia um passo interessante, essencializa uma situação puramente contingente e procura fornecer-lha uma base ontológica permanente: faria parte da essência da mulher amar a passividade e a submissão. Mas, como bem sabemos, só as coisas são possuíveis e mesmo estas de modo efémero; a posse de uma pessoa é uma impossibilidade porque uma vez possuída deixa de ser pessoa e é transformada num objecto, desprovido de vontade e de autonomia. O filósofo francês Jean Paul Sartre percebeu bem a questão, quando escreveu:

“O homem que quer ser amado não deseja realmente a escravização da amada … A total escravização da amada mata o amor do amante. Se a amada se transforma num autómato, o amante reencontra-se a si mesmo sozinho. Por isso, o amante não deseja possuir a amada como se possui um carro. Ele exige um tipo especial de apropriação. Ele quer possuir uma liberdade, enquanto liberdade, ele quer ser amado por uma liberdade, mas exige que esta liberdade deixe de ser livre.” (1)

Desta caracterização decorre que, segundo Sartre, o desejo sexual tem um objecto impossível porque o que ele quer possuir, aquilo que o satisfaz, assim que for possuído, deixa de existir enquanto tal: uma vontade livre, uma vez possuída, deixa de ser vontade e deixa de ser livre e aquele que ama não pode querer que tal aconteça. Mas claro que os sexólogos de serviço no século dezanove e mesmo no século XX não se aperceberam desta contradição e desse modo deram um contributo inestimável à perpetuação de uma situação que menorizava e inferiorizava as mulheres.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

O cérebro cor de rosa

A tentativa de naturalizar as diferenças entre homens e mulheres e justificar papeis e lugares sociais, de que Aristóteles foi o ilustre pioneiro e de que Darwin, mais de dois mil anos depois, foi um lídimo representante, continua na ordem do dia. Mas hoje as mulheres já estão apetrechadas com cultura humanística e científica para lhe responder. É o que faz Cordelia Fine no livro Delusions of Gender. O artigo a seguir transcrita dá disso notícia.

O cérebro cor de rosa, Por Nurit Bensusan 30/09/2010 :

Homens de Marte, mulheres de Vênus... homens são melhores em entender mapas e mulheres, em entender pessoas... homens gostam de carros e armas e mulheres, de bonecas e roupas... A lista poderia ir muito além. Preconceitos sobre gênero, embalados numa roupagem "científica" e agora, cada vez mais, "genética" ou "neurológica", estão em todos os lugares, desde conversas de bar até livros aparentemente sérios.
Cordelia Fine, uma psicóloga escritora, em seu novo livro, Delusions of Gender, mostra que essas "diferenças" de gênero não resistem a um exame mais profundo. Com toda uma parte dedicada ao neurosexismo, o livro fala sobre a sensibilidade da nossa espécie ao estereótipos de gênero e como as crianças são imediatamente, desde a mais tenra infância, saturadas com informações sobre a divisão social de gênero, a mais importante na nossa sociedade.
Numa entrevista muito interessante
( http://blogs.plos.org/neuroanthropology/2010/09/28/cordelia-fine-and-delusions-of-gender/), a autora diz que há muito mais interesse em achar diferenças no "hardware", ou seja no cérebro, do que em reconhecer que as diferenças são resultados da nossa sociedade. Assim, ficamos com a impressão que a situação que vivemos é natural, desejável e inevitável. Não é o que Cordelia acha...
O neurosexismo e o determinismo genético contribuem para manter tudo como está, forçando um conforto que na realidade não existe. Como se não houvesse mais o que fazer... se as diferenças estão nos cérebros, só nos restaria, aceitá-las. Mas, como questiona o livro, será que é realmente assim?
URL:: http://blogs.plos.org/neuroanthropology/2010/09/28/cordelia-fine-and-delusions-of-gender/

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Mulheres são escravas naturais?!

Aristóteles disse: «(a escravatura) é a condição de todos aqueles cuja função é mero serviço físico e que são incapazes de outra coisa melhor; esses são escravos naturais.»

No século XIX, havia um entendimento bastante amplo de que a função da mulher se reduzia à preservação da espécie e à criação dos filhos e cuidados com o lar; era esse entendimento que justificava que lhe fosse completamente vedado o acesso à participação na vida política, esta, dizia-se, não era a sua esfera - nem Deus nem a natureza a tinham capacitado para essas funções.
Não é necessária grande reflexão para se perceber que deste modo se transformavam as mulheres em autênticas servas domésticas, escravas naturais, como diria Aristóteles. Pessoas apenas capazes de serviço físico, serviço físico para preservar a espécie e serviço físico para prestar os concomitantes cuidados. Participar na vida pública, contribuir para a tomada de decisões que interessavam à sociedade, desenvolver-se enquanto ser livre e autónomo, isso estava completamente fora de cogitação
Em troca do serviço prestado, as mulheres recebiam comida, vestuário, abrigo e protecção, tal como os escravos. É certo que umas viviam em gaiolas douradas, outras em casebres, mas o estatuto não se alterava significativamente. Num caso ou no outro, não podiam abandonar os seus senhores – não podiam abandonar o domicílio conjugal nem requerer divórcio, esse direito era restringido aos maridos; os filhos que geravam eram propriedade dos maridos; não tinham o direito de propriedade nem mesmo sobre os bens que traziam para o casamento e se trabalhassem fora de casa, o salário pertencia ao marido que o podia administrar a seu bel-prazer. E isto ocorria não faz assim tanto tempo!
Hoje, em muitos países, as coisas são diferentes, mas mesmo assim ainda há mulheres que abdicam da sua participação na vida social e política para se colocarem na dependência dos maridos, esquecendo que afinal estão a seguir um padrão antiquíssimo que implica um enorme risco: o risco de sacrificarem a sua liberdade e de comprometerem a sua autonomia.
Claro que a escravatura das mulheres, pelo menos em tempos mais recentes, era atenuada por um tratamento mais humano do que aquele que normalmente era dispensado aos escravos tradicionais, mas isso não modifica substancialmente a situação e o facto desta não ser reconhecida como escravatura também não a altera, porque, realmente, que outro nome podemos dar a pessoas que não gozavam nem de direitos civis nem de direitos políticos e às quais era exigida subserviência e submissão?

domingo, 17 de outubro de 2010

Dona de casa - profissão em vias de extinção?


Em vez de assestarem baterias contra os remanescentes das estruturas patriarcais que, apesar de todos os desenvolvimentos, ainda subsistem, as anti-feministas contemporâneas culpabilizam as feministas e o feminismo por terem incentivado as mulheres a prosseguirem carreiras profissionais que, dizem, se revelam desgastantes, e defendem que as mulheres se devem centrar nos seus papéis tradicionais.
Em vez de lutarem pela humanização do mercado e das condições de trabalho e pelo empenhamento dos homens na partilha equitativa das tarefas domésticas, em vez de exigirem apoio estatal a creches e a jardins de infância de qualidade, contestam todas as medidas propostas pelas feministas neste sentido. Hasteando o fantasma do colectivismo na educação das crianças, consideram negligentes as mães que têm crianças pequenas mas entendem prosseguir as suas carreiras.
Afirmam que, bem no fundo, o que as mulheres querem é criar os seus filhos e cuidar dos seus maridos e que isso as realiza, continuando assim a defender a tese de que a essência da mulher é ser mãe e esposa e que as feministas fizeram um mau serviço ao sexo feminino ao inculcarem nas mulheres a ideia de que tal projecto não preenche as suas vidas.
Claro que encontram receptividade por parte de muitas mulheres que têm profissões mal remuneradas e ainda por cima arcam com as tarefas domésticas naquilo que ficou consignado como dupla jornada de trabalho. Além disso, as anti-feministas contemporâneas cooptaram a linguagem do feminismo e acenam-lhes com os conceitos de liberdade e de escolha, tentando fazer passar a ideia de que uma mulher pode escolher entre a carreira profissional e a vida doméstica e a segunda escolha é tão ou mesmo mais digna e enriquecedora do que a primeira. Mas aqui está a escamotear-se um aspecto fundamental e é o de que, para além do prazer que podemos tirar do trabalho dito socialmente produtivo em termos de relações interpessoais e de abertura de outros horizontes, o trabalho remunerado dá à mulher capacidade de independência e de autonomia e não a prende irremediavelmente a uma situação que pode vir a querer alterar. Conheço algumas mulheres que optaram por ficar em casa, apesar de capacitadas com títulos universitários e que vieram a descobrir mais tarde, com os filhos criados e os maridos «esfriados» e à procura de companhias mais estimulantes, que afinal fizeram a aposta errada. Só que então se torna difícil e em alguns casos impossível retomar uma vida que abandonaram à partida.
Hoje, mesmo a vida familiar heterossexual alterou-se profundamente, os casais decidem ter normalmente um ou dois filhos, e a frequência do infantário começa cedo com benefícios para as crianças. Constata-se ainda que as escolinhas são normalmente muito atractivas para as crianças que aprendem e brincam com outras num ambiente muito mais estimulante do que aquele que encontram em casa. Por outro lado, as tarefas domésticas ocupam um número reduzido de horas não tendo qualquer comparação com o que se passava há algumas décadas atrás. Por tudo isto, as pretensões das anti-feministas revelam-se completamente deslocadas e só poderiam fazer algum sentido se o relógio da história andasse para trás como elas gostariam que acontecesse.

P.S. Quando falo em anti-feministas não se pense que estou a invocar uma entidade abstracta, elas andam por aí bem activas, a título de exemplo, conheçam Danielle Crittenden e Wendy Shalit que fizeram carreiras profissionais prósperas e lucrativas a aconselharem as mulheres a desistirem das carreiras.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Josephine Marshall Dodge - Quem eram as anti-sufragistas

Josephine Marshall Dodge (1855-1928) nasceu numa família ilustre, descendente directa dos primeiros colonizadores – brancos, de ascendência anglo-saxónica e protestantes – o pai era um industrial próspero, proprietário de manufacturas de couros, além de político influente.
Depois de uma infância e adolescência felizes e da frequência de escolas de elite, Josephine casou em 1875 com Arthur Dodge, também pertencente a uma família com pergaminhos, dinheiro e influência política. Estabeleceram residência em Nova Iorque e tiveram seis filhos.
Em 1896, Arthur morreu com apenas 43 anos e Josephine, continuando a tradição filantrópica do marido, fundou uma instituição de caridade que cuidava de crianças de mães trabalhadoras.
Em 1899 testemunhou no Alabama contra uma lei de sufrágio feminino limitado e em 1911 fundou a National Association Opposed to Woman Suffrage e tornou-se a sua primeira presidente. Foi também Editora do Woman´s Protest no qual publicou vários artigos em que justificava a oposição ao sufrágio feminino: considerava que o voto para as mulheres era desnecessário pois já possuíam direitos civis reconhecidos pelos diferentes Estados, já havia leis de protecção ao trabalho infantil e o salário mínimo para as mulheres estava acautelado.
A fundação da National Association Opposed to Woman Suffrage revelou-se muito útil para quem se opunha ao sufrágio feminino pois dava aos legisladores um argumento forte: as mulheres estavam divididas, umas queriam o voto, outras não, logo não havia motivo para ele ser concedido, pois tanto peso teriam as que o reivindicavam como aquelas que se lhe opunham.
Em 1917, Josephine deixou o cargo de Presidente da Associação que passou a ser ocupado pela esposa de um senador ferozmente anti-sufragista e remeteu-se para o lugar, menos visível, de vice-presidente.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Milread Lewis Rutherford - Quem eram as anti-sufragistas

Milread Lewis Rutherford (1851- 1928) autora de vários livros sobre o Sul dos Estados Unidos, nasceu em Athens numa família patrícia próspera com uma linhagem que remontava aos primeiros colonizadores. O avô materno, um dos homens mais ricos e influentes do seu tempo, era dono de uma extensa plantação que em 1840 contava com 209 escravos, o que o tornava o maior proprietário de escravos da região.
Milread, que em 1914 integrou a Associação contra o Sufrágio Feminino da Geórgia, defendia o ideal de domesticidade que remetia as mulheres para a esfera da família e para os papeis tradicionais, mas pessoalmente desafiou completamente este padrão: nunca casou, escreveu e publicou inúmeros livros, ensinou e palestrou em locais públicos e levou uma vida activa de intervenção na esfera pública que repudiava para o seu sexo.

Em relação à questão racial, a sua atitude paternalista e a sua concepção romântica da escravatura levavam-na a afirmar que, embora os escravos tivessem sido trazidos à força de África, eram felizes nas plantações.
Com as suas ideias anti-feministas e racistas, que divulgou através de livros, panfletos e palestras, ajudou a retardar a conquista do voto para as mulheres e a pavimentar o caminho para o regime de segregação racial que vigorou nos Estados Unidos até 1964. O seu contributo no sentido de preservar as estruturas tradicionais está bem resumido nestas palavras: “Rutherford representou a tentativa do Novo Sul de conjugar modernidade com fidelidade a uma compreensão conservadora das hierarquias de raça e de género.” (Georgia Women: Their lives and Times” by Ann Short Chirhart, Betty Wood, p. 272)

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Motivações da luta contra o sufrágio - Pauline Wells e suas razões

Em 1915, tudo parecia indicar que, numa base Estado-por-Estado, o Texas seria mais um a aprovar o sufrágio feminino; as sufragistas locais estavam a realizar um bom trabalho: promoviam campanhas de rua, escreviam no mais influente jornal e, quando a Câmara Legislativa iniciou a sessão, enviaram cartas e petições aos legisladores. Havia boas expectativas de que as suas reivindicações fossem finalmente atendidas. Mas na arena política surgiu uma oponente do sufrágio que testemunhou perante a Câmara Legislativa de forma veemente e poderosa e conseguiu reverter o resultado inicialmente previsto: não se atingiu os dois terços de votos necessários para que a lei passasse. Essa mulher foi Pauline Kleiber Wells.

Pauline Kleiber Wells casou em 1880 com James B. Wells, um dos poderosos patrões políticos da região do Rio Grande Valley do Texas, uma zona de rancheiros e homens de negócios abastados que contavam com mão-de-obra constituída basicamente por hispânicos cujo voto era facilmente manipulável via paternalismo, ameaça e suborno. Claro que a estes patrões políticos que faziam e desfaziam governos não interessava que o número de votantes aumentasse, tanto mais que no caso das mulheres passaria a implicar uma constituência, aparentemente - pelo menos assim o deviam pensar - mais instável e difícil de controlar.

Pauline Wells, como outras anti-sufragistas, considerava que as mulheres eram inferiores aos homens, deixando-se governar não pela razão mas pelas emoções; portanto, não era conveniente entregar-lhe a alta responsabilidade de votar. Iriam colocar ao abrigo dos seus caprichos coisas tão importantes como decisões militares. Como não podia deixar de ser, acusava as líderes sufragistas de odiarem e invejarem os homens e de desprezarem as mulheres que se dedicavam à vida familiar e ao lar, para as quais o voto, ao invés de ser um direito, seria um fardo.
Era mais uma a assustar as mulheres com o declínio da família que o voto provocaria, semeando discórdia entre marido e esposa e levando as mulheres a terem menos filhos, o que poria em risco a raça do verdadeiro povo americano - branco, de origem anglo-saxónica e predominantemente evangélico – cuja supremacia ficaria ameaçada, um argumento que encontrava receptividade num número significativo de pessoas; não estava fora de questão, dizia-se, que o país viesse a ser dominado pelos negros.

Esta retórica alarmista escondia interesses políticos e económicos inconfessáveis. Os grandes proprietários, os comerciantes de bebidas alcoólicas, os barões da indústria e da finança e os patrões das máquinas políticas, todos viam com preocupação a concessão de voto às mulheres e aqui, independentemente de outras motivações , objectivamente, Pauline limitava-se a defender os interesses da classe a que pertencia. Quando testemunhou perante a Câmara, a sua argumentação resumiu-se à alegação de que o sufrágio feminino levaria ao «feminismo, antagonismo entre os sexos, socialismo, anarquismo e Mormonismo». Foi tão bem sucedida que, em seguida, resolveu fundar a “ Associação do Texas Oposta ao Sufrágio da Mulher (“Texas Association Opposed to Woman Suffrage”) que resistiu até 1920, altura em que a 19ª Emenda Constitucional foi aprovada.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Emily Bissell - activista social e anti-sufragista

Emily Perkins Bissell (186-1948), a segunda de quatro crianças de uma família da alta burguesia teve um pai banqueiro e investidor imobiliário e um avô materno advogado proeminente e senador; ficou conhecida como activista social e anti-sufragista.
Como acontecia frequentemente com as senhoras da elite, dedicou boa parte do seu tempo a actividades filantrópicas e dentro desse mesmo padrão revelou sempre uma mentalidade nitidamente conservadora que a levava a afirmar, entre outras coisas: “a ralé vive miseravelmente precisamente porque é ralé”, numa clara atribuição da pobreza a factores individuais, os pobres seriam pobres porque não se esforçam por sair da pobreza, porque não são empreendedores, etc. etc., descartando as responsabilidades da organização da sociedade na matéria; num outro registo, defendeu a introdução da punição por chicotadas em público, uma espécie de reconstrução dos pelourinhos medievais, só que em pleno século XX.

Enquanto activista social, Bissell envolveu-se em várias campanhas na luta contra a tuberculose que então era um verdadeiro flagelo, e o seu trabalho foi reconhecidamente meritório. Para angariar fundos, inspirada numa campanha dinamarquesa, teve a ideia , que acabou por vingar, de criar um selo que seria vendido nas estações de correio por uma importância ínfima e aposto junto dos outros selos. Foi ainda responsável pela introdução de uma lei que estabelecia o número máximo de horas de trabalho nas fábricas que podia ser exigido às trabalhadoras, uma medida de discriminação positiva que mais tarde haveria de ser invocada na luta contra o ERA (Equal Rights Amendment).

Bissell foi uma das líderes da National Association Opposed to Woman Suffrage; em 1909 esccreveu um panfleto que circulou em vários estados, «A Talk to Women on the Suffrage Question” em que se explica. Nos seus argumentos contra a concessão do voto às mulheres invoca o fardo que tal tarefa representaria bem como a discórdia que poderia provocar no seio da família. As mulheres tinham, dizia, outros meios para intervirem na vida da nação, tais como a persuasão moral, as actividades na comunidade religiosa e obviamente a filantropia - a que ela se dedicava. Um outro argumento insistia no «perigo» do sufrágio feminino que iria duplicar o voto negro e o voto emigrante, o que obviamente a devia preocupar a ela e às elites no poder.
Atenta às descobertas científicas da época muito favoráveis à causa anti-sufragista, Emily não se esqueceu de as utilizar:
“É nos animais superiores que a ciência encontra as maiores distinções entre os sexos. O homem - a mais elevada forma de vida animal - tem as mais amplas diferenças na função. É natural, é cientificamente correcto, que a mulher seja tão feminina quanto possível e o homem masculino. (…) Exigir, como o sufrágio faz, todos os direitos e deveres do homem é absurdamente anti-científico. Implicaria o retrocesso da sociedade moderna para as épocas da barbárie.” (A Talk to Women on the Suffrage Question, New York, National Association Opposed to Woman Suffrage, 1909, 3)
A ideologia presente é a de que os sexos são diferentes, os papéis são diferentes, as esferas de influência são diferentes, logo nada de permitir à mulher intervir em paralelo com o homem na vida política da nação; como a ciência o comprova, isso não será um avanço, mas um retrocesso.
É preciso dizer mais?!

domingo, 5 de setembro de 2010

O feminismo põe em risco a segurança das mulheres. Será?

Depois de ler Right Wing Women, de Andrea Dworkin, começo a perceber melhor o movimento anti-feminista e a entender as motivações que levam tantas mulheres a estarem contra os direitos das mulheres.
Dworkin procura desvelar as motivações profundas que se encontram na origem da cumplicidade das mulheres para com a sua própria opressão. Procura explicar por que é que as mulheres se sujeitam à autoridade masculina, por que é que se conformam à submissão. Nos caminhos dessa demanda encontra em primeiro lugar o medo e a necessidade, ancorada no instinto vital, de sobreviverem:

«Da casa do pai para a do marido e desta para o túmulo - que pode ainda não ser dela -, uma mulher aquiesce à autoridade masculina para conseguir alguma protecção da violência masculina. Conforma-se, com vista a obter a segurança possível»

A violência masculina é imprevisível e incontrolável, com ela o mundo surge como um lugar perigoso e caótico; as mulheres - a experiência confirma-o - têm boas razões para recear. Mas não há problema para o qual não se encontre solução e para este a direita conservadora, o que é quase um pleonasmo, fornece uma, fácil e acessível: o casamento tradicional - uma união consagrada pela religião - e um lar seguro, estável e confortável. Em simultâneo, recorre à intoxicação ideológica: os homossexuais e as feministas põem em perigo o casamento tradicional, logo a segurança das verdadeiras mulheres fica em risco; o aborto é «assassínio de crianças»; as carreiras profissionais são um acessório facilmente descartável, o verdadeiro destino da mulher é ser esposa e mãe. E com esta intoxicação ideológica se eliminam as reais possibilidades de independência e autonomia. Dworkin não tem dúvidas:

«Todo e qualquer acto de acomodação das mulheres à dominação masculina, embora aparentemente estúpido, auto-destruidor ou perigoso, encontra-se enraizado na urgente necessidade de sobreviver, por qualquer meio, em termos masculinos.»

Mas como os «termos masculinos» implicam sentimentos de frustração e desalento geradores de ódio, a direita dá às mulheres a possibilidade de descarregarem essa frustração, que inevitavelmente têm de experimentar, sobre grupos marginais específicos que funcionam como bodes expiatórios, de entre estes, as feministas - ressentidas e invejosas - transformam-se nas más da fita.

Assim fica mais fácil entender o anti-feminismo e as anti-feministas. Obrigada, Andrea Dworkin.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Anti-feminismo travestido: o feminismo da igualdade

Christine Sommers, autora de Who Stole Feminism (1994) critica as feministas suas contemporâneas, que designa de «feministas de género» e defende aquilo a que chama «feminismo da igualdade».
A sua crítica, entre muitos outros aspectos, incide sobre a tentativa feminista de expurgar os manuais escolares de vestígios de sexismo. Vejamos o que escreve a esse respeito:

«Certos temas simplesmente não ocorrem nestas histórias e nestes artigos (dos livros escolares). Dificilmente surge uma história que celebre a maternidade ou o casamento como um modo de vida preenchido e significativo»

Como se pode ver, Sommers critica os manuais escolares por não apresentarem o casamento e a maternidade como um modo de vida e ainda como um modo de vida dotado por si só de significado e capaz de preencher a vida de uma mulher. Com esta crítica está a insistir mais uma vez num modelo que reduz a mulher à função de esposa e de mãe, precisamente aquilo que o feminismo combateu. Por isso não é de admirar que os manuais escolares, na tentativa louvável de expurgar vestígios de sexismo, não o apresentem, mas para S. esse modelo é não só legítimo como desejável. Parece não querer perceber ainda que se uma mulher se auto-limita e define por esses papéis, a sua capacidade de autonomia fica seriamente comprometida já que terá de depender de um marido provedor e protector e continuará a existir como um ser humano dependente.
Este é apenas um exemplo do tipo de «feminismo» de que é apologista, mas já dá para perceber que estamos perante anti-feminismo travestido.

Nota: Provavelmente Sommers gostaria que imagens do tipo da aqui apresentada constassem dos manuais escolares, claro que sem a legenda que pode despertar o senso crítico.

domingo, 1 de agosto de 2010

Antifeminismo na era Reagan


Em 1980, Ronald Reagan, ex-actor de filmes de segunda categoria, foi eleito Presidente dos Estados Unidos; com ele no comando (1981-1989), tudo foi tentado para que a América voltasse ao «glorioso» passado da ordem, da autoridade e dos valores tradicionais.


Com Reagan, reconhecidamente adverso do movimento feminista, fez-se passar a ideia de que as mulheres já tinham adquirido plena igualdade e que então a América se encontrava numa era post-feminista. Partindo desta premissa mais que dúbia tratou de se desmantelar todos os «institutos» que protegiam as mulheres, tais como o sistema de quotas ou a atribuição de fundos estatais para serviços de apoio às mães e às famílias, nomeadamente aos sectores mais desfavorecidos da população.


Uma das primeiras medidas legislativas, apresentada assim que Reagan chegou ao poder, proposta pela Nova Direita, foi o projecto de Lei de Protecção a Família com o qual se pretendia anular de uma assentada as conquistas alcançadas pelo movimento das mulheres.


A lei, tão estranhamente baptizada, acabou por não ser aprovada, mas, para ficarmos a fazer uma ideia da sua natureza e alcance, basta lembrar que, entre outras coisas, proibia a educação mista nas escolas bem como em actividades desportivas; recusava fundos a escolas que utilizassem manuais nos quais as mulheres aparecessem em papéis que não os tradicionais; propunha que o casamento e a maternidade fossem apresentadas no curriculum escolar como as carreiras que as meninas deveriam seguir; e visava eliminar fundos estatais para centros de apoio a vítimas de violência sexual, bem como a protecção do Estado a mães solteiras. Pela positiva, se é que podemos assim falar, previa isenções fiscais para as famílias em que a mulher não trabalhasse fora de casa, num claro convite ao restabelecimento da família tradicional com maridos provedores e mulheres domésticas. Como se pode ver um programa completo para fazer a história andar para traz.


Se o específico programa proposto na Lei de Protecção à Família não foi bem sucedido o mesmo não aconteceu com outras medidas posteriormente aprovadas e sobretudo alcançou-se com ele o objectivo pretendido: evitar que as feministas sequer ousassem apresentar novas reivindicações tão ocupadas estavam a evitar que o que tinham alcançado lhes fosse retirado.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Modelo tradicional de feminilidade e injustiça

No século XIX, Elizabeth Wordsworth (1840-1932), antifeminista e antisufragista assumida, manifestava, nestes termos, a sua preocupação a propósito da educação que se devia ministrar às jovens - futuras esposas e mães de família:
«Se, durante dez ou mais anos da sua vida, uma jovem está sempre enfronhada nos livros, como podemos esperar que, uma vez adulta, esteja atenta ao bem-estar pessoal dos que se encontram à sua volta – os idosos, os que trabalham arduamente, as crianças e os doentes?»
Para Dame Elizabeth, filha e irmã de clérigos anglicanos, colocados em altos cargos, como para as suas colegas antisufragistas, uma jovem não devia receber educação intelectual séria, não devia viver «enfronhada nos livros» porque isso poderia distraí-la e comprometer o papel que teria de desempenhar, quando adulta - um papel que exigia que se sacrificasse pelos outros e se esquecesse dela própria.
Elizabeth Wordsworth não parecia aperceber-se da injustiça que estava a cometer ao pretender impor a todas as jovens, futuras mulheres, aquilo que a ela parecia melhor e essa incompreensão resultava de defender um conceito de feminilidade que enaltecia a vocação maternal, o altruísmo e a devoção aos deveres familiares da «verdadeira mulher», estimulada a sacrificar os seus interesses pessoais, que, pasme-se, eram entendidos como interesses egoístas.
Neste paradigma de feminilidade, o lugar para a educação intelectual das jovens tinha de ser necessariamente limitado e o seu objectivo definido e orientado no sentido de as preparar para os papéis que a sociedade delas esperava. Ser mulher era uma espécie de ofício que uma educação intelectual «desequilibrada», leia-se, séria, poderia prejudicar. O mais que as antifeministas reconheciam era a necessidade das jovens serem formadas para virem a cumprir com eficácia a tarefa de educadoras dos seus filhos e para exercerem uma influência moralizadora positiva na vida social, logo uma educação que tinha acima de tudo uma vertente religiosa muito forte e que se centrava na modelação do carácter e das atitudes.
Este conceito de feminilidade encontra-se longe de estar ultrapassado; mesmo no mundo ocidental, num país como os Estados Unidos dos fins do século XX, a antifeminista Beverly La Haye (1929), presidente da organização «Concerned Women for America», ainda aconselhava as jovens a casarem cedo e a considerarem os maridos e os filhos como a sua prioridade. Como dizia o refrão dos anos cinquenta que ela implicitamente aceitava: «jovens americanas e livros não combinam»
Entre esta opinião da cristã evangélica Beverly La Haye e as preocupações de Elizabeth Wordsworth qualquer semelhança não é pura coincidência. As duas defendem para a mulher o lugar que tradicionalmente lhe foi reconhecido, as duas negam o feminismo e rejeitam a sua pretensão à construção de uma sociedade mais igualitária.
Podemos conceder que tanto estas duas mulheres, como as antifeministas em geral, actuam com base no convencimento da bondade das suas opiniões sobre como deve decorrer a vida das mulheres; mas também temos de reconhecer que, objectivamente, estas opiniões favorecem e suportam o tipo de sociedade em que os homens detém lugares de poder e de supremacia e as mulheres ocupam posições de subalternidade e de subserviência. Para reverter a situação e estabelecer relações de simetria entre homens e mulheres seria fundamental garantir às mulheres o acesso ao conhecimento que elas negam.
Desde sempre se percebeu que se as mulheres tivessem acesso ao conhecimento, a ordem patriarcal seria posta em causa e por isso é que a educação lhes foi recusada com diferentes justificações: começou por se dizer que não tinham capacidade e acabou a dizer-se que não seria conveniente.
Hoje, o exercício do poder sobre as mulheres já não assume as formas repressivas do passado, mas, não tenhamos ilusões, continua presente, só que mais criativo e, por isso, ainda mais perigoso e mistificador. Denunciá-lo; colocar em evidência a sua agenda escondida; revelar os seus disfarces e simulacros; numa palavra, despertar as consciências é tarefa de que não podemos demitir-nos.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Antifeminismo evangélico

É curioso que muitas mulheres, nos nossos dias, dizem não se identificar com o feminismo e recusam mesmo o epíteto mas, de facto, na sua prática quotidiana agem como feministas; tal como o Monsieur Jourdain da peça de Moliere fazia prosa sem o saber, também elas, mesmo que o não reconheçam, são feministas. E, basicamente, podemos dizer que isso acontece porque elas nem se consideram inferiores aos homens nem tão pouco menos merecedoras de direitos.
Assim, mesmo se muitas coisas não foram conseguidas e se o sistema patriarcal ainda se mantém em muitos aspectos, pelo menos o feminismo conseguiu que as mulheres, na grande maioria, interiorizassem sentimentos positivos e adquirissem a consciência de que lhes são devidos os mesmos direitos, liberdades e oportunidades que os homens gozam; regressar ao passado e ao recato do lar doméstico, sem participação na vida colectiva e no mundo do trabalho, parece hoje completamente fora de questão; ora, se lembrarmos que ainda na década de cinquenta do século XX esse era o modelo e o ideal proposto para as mulheres, percebemos bem como os tempos mudaram e como o feminismo contribuiu de forma decisiva para essa mudança.

Há, todavia, um outro aspecto, esse sim mais preocupante, o das mulheres que rejeitam a própria emancipação e que costumamos designar de antifeministas. Mas aqui temos dois grupos e dois estilos, o daquelas que, embora preguem os valores da domesticidade, são tudo menos domésticas e fazem carreiras profissionais, normalmente bem sucedidas, dizendo mal das feministas, e as que sofreram uma tal lavagem ao cérebro que não são capazes de se emanciparem e continuam a viver nas gaiolas douradas que o sistema lhes faculta. Têm medo da mudança e acham sempre preferível o statu quo.
Este segundo grupo, bem mais numeroso, é constituído por mulheres que são enquadradas por uma religião e por um entendimento conservador, literal e fundamentalista dessa religião; pensam que o papel que Deus lhes destinou foi o de serem um apêndice dos seus próprios maridos e que a sua função na vida é gerar e cuidar das crianças que Deus «lhes der». O paradoxo é que estas mulheres vão usar o voto e até as liberdades concretas que as feministas conquistaram para lutar contra instrumentos libertadores, sejam por exemplo o direito à contracepção, ao aborto, ao divórcio, bem como o acesso ao mundo do trabalho socialmente produtivo, e ainda por cima combatem as feministas com todo o ódio que os seus corações e mentes limitadas são capazes de abrigar, não percebendo sequer que a liberdade que gozam de se pronunciarem e de serem ouvidas nos media resultou das reivindicações feministas.
Estas mulheres continuam reféns do modelo que o século XIX lhes propôs e designam-se a si mesmas de «verdadeiras mulheres», isto é, mulheres obedientes aos desígnios de Deus, que é uma outra maneira de dizer, aos seus maridos, eles próprios intérpretes e intermediários da vontade divina. Em 2008, nos Estados Unidos, ocorreu um mega evento, The True Women Conference onde cerca de três mil «verdadeiras mulheres», apostadas em defender a sociedade patriarcal, afirmaram a necessidade de se cultivarem «virtudes tais como pureza, modéstia, submissão, mansidão e amor», uma espécie de retorno a uma moral entendida em termos sexuais e servis, na qual a virtude feminina se restringe à obediência e ao correcto comportamento sexual, mas que promove o fanatismo, a intolerância e o ódio contra quem se lhe opõe, ignorando completamente que a bondade e o rigor ético não passam decididamente por aí. Podemos dizer que estas são mulheres misóginas porque se atribuem a si mesmas pouco valor e se desprezam, pois só um ser que se despreza e que tem uma auto-imagem negativa abdica da liberdade, da autonomia e da capacidade para controlar a sua própria vida.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

“Feministas” neoconservadoras ou aproveitadoras?!


É difícil aceitar que mulheres que são contra o aborto em toda e qualquer circunstância, mesmo, por exemplo, em caso de violação, tenham alguma coisa a ver com o feminismo porque este implica defender que as mulheres, na medida do possível, possam controlar o seu destino e isso, obviamente, passa pelo controlo da sua capacidade reprodutiva.
Claro que as feministas não advogam o aborto como recurso contraceptivo - defendem sim que se disponibilize educação sexual e uso de anticoncepcionais -, mas encaram-no como legítimo quando houver qualquer falha, ou quando razões terapêuticas ou situação de violação o justificarem. Criminalizar o aborto será, na opinião das feministas, retirar autonomia às mulheres: sob a capa do valor sagrado da vida do feto; hipocritamente, o que se pretende é continuar a controlar as mulheres. Claro que não é este o entendimento que muitas mulheres têm do assunto, e isso é lamentável, mas até é compreensível, o que já não é compreensível nem desculpável é que se sirvam da capa do feminismo para defenderem a sua posição contra o aborto. É o que acontece com a organização Susan B. Anthony List.

A Susan B. Anthony List, fundada em 1992 nos Estados Unidos para apoiar o movimento pró-vida, tem actualmente como objectivo colocar mulheres que são contra a legalização do aborto em lugares de decisão política, dedicando-se à angariação de fundos para apoiar essas candidatas. Curiosamente, esta e outras organizações de direita não «desbaratam» dinheiros em apoios às camadas sociais mais desfavorecidas, mas canalizam-nos para conseguirem chegar a lugares onde podem influenciar as decisões e até contrariar medidas, essas sim de protecção social.
A escolha desta designação - Susan B. Anthony List - representa uma manobra de evidente má-fé e de desonestidade intelectual pois procura cooptar o feminismo para a causa e para tal serve-se do nome de uma das mais proeminentes líderes feministas do século XIX, companheira de Elizabeth Cady Stanton, embora mais comedida e moderada do que esta.

Susan B. Anthony - segundo Lynn Sherr, sua biógrafa, e Ann Gordon, editora da obra de Anthony e historiadora feminista - nunca tomou posição pública contra o aborto, nem pareceu interessar-se pelo assunto, e vivia numa sociedade (e numa família) que aceitava o aborto quando se tratava de uma gravidez indesejada; apenas se lhe conhece uma breve referência ao problema, quando a cunhada ficou presa a uma cama por motivo de um aborto mal realizado, a frase é uma – única - e é ambígua. «Depois de uma visita com o irmão, Anthony anota no seu diário que a cunhada tinha abortado, as coisas não tinham corrido bem e ficara entrevada. Anthony conclui, «ela lamentará o dia em que contrariou a natureza” Claramente Anthony não aplaude a acção da cunhada, mas a referência é ambígua. É o acto abortivo que ela lamenta ou as suas consequências, com o risco que a própria vida da pessoa corre? »*
Esta escassa e ambígua referência não impediu a mediática Sara Palin que, desde a corrida à vice-presidência dos Estados Unidos em 2008, não pára de nos surpreender, de discursar numa reunião da Susan B. Anthony List usando e abusando da palavra feminismo, referindo-se a um feminismo conservador e a feministas conservadoras que estariam a repor o feminismo na sua «pureza original»
A ideia que tudo isto dá, de facto, é que ela e outras que tais querem cavalgar a onda do feminismo, imprimindo-lhe outra direcção; o que, segundo Amanda Marcotte, não constitui novidade nenhuma pois Palin «é a última encarnação de uma longa e nobre linhagem de feministas antifeministas: mulheres que se auto-intitulam feministas, mas que colocam objeção à existência do movimento feminista e se organizam para se lhe oporem.»
De resto, se Palin parasse para pensar - o que me parece pouco provável - teria de reconhecer que só foi escolhida pelos republicanos para candidata à vice-presidência, como uma tentativa de manobra para derrotar Hillary Clinton; de outra maneira, nem o partido se teria lembrado dela nem ela teria o protagonismo que veio a conseguir. Teria de reconhecer que a direita conservadora só dá voz às mulheres quando se trata de derrotar o feminismo, porque percebe que é sempre mais credível colocar mulheres a dizer mal das feministas do que homens; estes têm um óbvio interesse na matéria que nas mulheres está camuflado. Teria de reconhecer o cinismo do partido republicano que escolheu uma mulher (ela própria) que se está nas tintas para a luta pelos direitos das mulheres, que pretende ilegalizar o aborto e a contracepção de emergência, que propõe que se retire financiamento ao programa estatal de luta contra a violência doméstica e que é contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Teria de reconhecer que o partido não escolheu outra - de entre as várias hipóteses que se lhe ofereciam - porque temia que o tiro lhe saísse pela culatra, coisa que com ela de certeza não iria acontecer.

Estas manobras e contra-manobras, bem como a cooptação do feminismo para a causa antifeminista, são muito interessantes mas, apesar de tudo, embora preocupantes, revelam que o feminismo, na aparência adormecido, continua a assustar muita gente instalada que tem medo da mudança como o diabo da cruz.

*Sarah Palin is no Susan B. Anthony, By Ann Gordon and Lynn Sherr

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Simone de Beauvoir e o mito da beleza

A notícia já é antiga, data de 2008, ano em que se comemorou o centenário do nascimento de Simone de Beauvoir; na época provocou acesa polémica, mas hoje volto a referi-la por me parecer que apresenta relação com o mito da beleza, abordado em post anterior.
Começo por recordar que a conceituada revista de centro esquerda Le Nouvel Observateur resolveu comemorar o evento publicando na capa um nu fotográfico da filósofa com o título: Simone de Beauvoir, La Scandaleuse. De imediato o grupo feminista francês Les Chiennes de Gard manifestou o seu repúdio considerando que era a dignidade de todas as mulheres que estava a ser posta em causa.
Não subscrevo esta crítica e respectivo comentário pois me parece decorrer de considerações moralistas que a própria S. de B. não defenderia. Mas há um outro aspecto que interessa realçar: o facto de se publicar um nu de uma filósofa, escandalosa é certo, como defendeu o editor, mas de nunca ter ocorrido sequer a ideia de publicitar um nú de um outro qualquer pensador - até porque o não conformismo da filósofa encontra paralelo em outros pares do sexo masculino, chama a nossa atenção mais uma vez para uma constante no tratamento dado às mulheres, sejam políticas, filósofas ou quaisquer outras, que é o de procurar remetê-las para a esfera da aparência e da futilidade, marginalizando de um só golpe as suas ideias e o seu contributo no domínio do pensamento e da cultura.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

O Mito da Beleza – um estratagema para continuar a manter as mulheres no seu «lugar natural»

Hoje, mais do que nunca, a preocupação com a beleza, considerada inseparável da juventude, continua a manietar as mulheres e a impedi-las de se realizarem acima de tudo como pessoas. Modas, cosméticas e cirurgias estéticas escravizam as mentes de muitas, sobretudo nos países onde a emancipação conheceu avanços mais significativos. E isto não acontece por acaso, acontece porque o «mito da beleza», enquanto mecanismo de controlo social, é actualmente a estratégia mais inteligente para que as mulheres continuem a ocupar o lugar que a ordem patriarcal para elas desenhou - o lugar do secundário e do inessencial.

O texto, que a seguir traduzo, explica bem como tudo isto funciona. Claro que seria desejável que o livro fosse lido na íntegra, mas para já, fica o aperitivo:

«Quando as mulheres se começaram a libertar elas próprias da mística feminina da domesticidade, o mito da beleza compensou o terreno perdido, expandindo-se à medida que essa mística se desvanecia, para levar a cabo o mesmo trabalho de controlo social.
O contra-ataque é muito violento porque a ideologia da beleza é a última remanescente da velha ideologia feminina que ainda tem poder para controlar aquelas mulheres que o feminismo da segunda vaga teria de outro modo tornado relativamente incontroláveis: tornou-se mais forte para levar a cabo o trabalho de coerção social que os mitos acerca da maternidade, domesticidade, castidade e passividade não mais conseguiam realizar. Neste momento procura desfazer, psicológica e veladamente, todas as coisas boas que o feminismo trouxe para as mulheres material e abertamente. Esta contra-força opera para pôr em cheque a herança do feminismo a todos os níveis da vida das mulheres ocidentais. …

Desde cerca de 1830, cada nova geração tem tido de combater a sua versão do mito da beleza. «É muito pouco para mim» disse a sufragista Lucy Stone em 1855, «ter o direito de votar, de possuir propriedade, etc, se não posso manter o meu corpo e os seus usos, como direito meu». Oitenta anos mais tarde, depois das mulheres terem ganho o voto, Virgínia Woolf escreveu que ainda haviam de passar décadas antes que as mulheres pudessem dizer a verdade acerca dos seus corpos. …

A «Beleza» é o sistema de moeda em curso, tal como o padrão ouro. Como em qualquer economia é determinado pela política, e nos tempos modernos no Ocidente é o último e o melhor sistema de crença que preserva o domínio masculino intacto. Ao assinalar valor às mulheres numa hierarquia vertical de acordo com um padrão físico culturalmente imposto, é uma expressão de relações de poder nas quais as mulheres têm de competir de modo não natural por recursos de que os próprios homens se apropriaram. …

O mito da beleza não é de modo nenhum acerca das mulheres. É acerca das instituições dos homens e do poder institucional.
As qualidades que um dado período considera belas nas mulheres são meros símbolos do comportamento feminino que esse período considera desejável: O mito da beleza está sempre de facto a prescrever comportamento e não aparência. A competição entre as mulheres tem sempre feito parte do mito, para que as mulheres estejam divididas umas das outras. A juventude, e até hà pouco tempo a virgindade, têm sido consideradas «belas» nas mulheres já que se enaltece a sua falta de experiência e a sua ignorância sexual. O envelhecimento nas mulheres não é «belo» porque as mulheres tornam-se mais poderosas com o tempo e porque o laço entre as diferentes gerações de mulheres deve ser sempre quebrado de novo: mulheres mais velhas temem as jovens, as jovens temem as velhas e o mito da beleza perpassa todas as épocas da vida das mulheres. Sobretudo é urgente que a identidade das mulheres tenha como premissa a «beleza» para que fiquemos vulneráveis à aprovação externa, trazendo exposto ao ar o órgão sensitivo vital da auto-estima.

Embora de certo tenha havido sempre um mito de beleza tão presente como tem sido presente o regime patriarcal, o mito de beleza na sua forma moderna é uma invenção bastante recente. O mito floresce quando os constrangimentos materiais sofridos pelas mulheres começam a abrandar perigosamente. …
O emergir do mito da beleza foi apenas uma das várias ficções sociais emergentes que se mascararam como componentes naturais da esfera feminina para melhor enclausurarem as mulheres nessa esfera. Outras ficções emergiram em simultâneo: uma versão de infância que requer supervisão maternal constante; um conceito de biologia feminina que exigia que as mulheres da classe média agissem nos papeis de histéricas e hipocondríacas; a convicção de que as mulheres respeitáveis eram sexualmente insensíveis; e uma definição do trabalho das mulheres que as ocupava com tarefas repetitivas, morosas e entediantes, tais como trabalhos de agulha e rendas. Todas estas invenções da era vitoriana serviam uma dupla função – isto é, embora elas fossem encorajadas para que as mulheres expandissem energia feminina e inteligência de modo que não fosse «prejudicial», as mulheres muitas vezes usavam-nas para exprimirem genuína criatividade e paixão.
Mas a despeito da criatividade das mulheres da classe média com modas e bordados e educação de crianças e um século mais tarde, com o papel da esposa suburbana, que decorreram destas ficções sociais, o propósito principal das ficções foi atingido: durante um século e meio de agitação feminista sem precedentes, elas efectivamente contra-atacaram os perigosos novos ócios, interesses literários e relativa libertação de constrangimentos materiais das mulheres da classe média.»[1]

[1] Naomi Wolf: The Beauty Myth: How Images of Beauty Are Used Against Women. Harper Collins e-books