segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

 Democracia liberal e capitalismo – gato escondido com o rabo de fora…

A democracia liberal na fase do neoliberalismo, que é aquela em que, no dealbar desta terceira década do seculo XXI, nos encontramos, atravessa uma crise profunda e sofre ataques persistentes de partidos de extrema direita aos quais, tudo leva a crer, vai ter de acabar por se render, aceitando-os pelo menos como pares na governação.

É certo que entre a extrema direita populista, conservadora e tradicionalista e a ideologia liberal que enforma as democracias liberais, as divergências são profundas, mas nada que não seja ultrapassável se, para salvar os dedos, for preciso perder os anéis.

As críticas que o populismo faz à democracia liberal são pertinentes e justas mas tem um pequeno senão é que falham o alvo: dirigidas aos políticos esquecem que estes são uma espécie de marionetes manipuladas pelas elites capitalistas de acordo com os interesses destas, ou corrompidas, quando tal se mostra necessário; e há formas muito subtis de corromper: lembremos como é frequente certas personagens politicas, findo o mandato, transitarem para altos cargos em instituições financeiras privadas, ou outro tipo de posições extremamente bem remunerados e nunca mais ouvimos falar delas, ficam a operar na sombra do sistema enquanto os políticos ocupam o palco.

Esta foi porventura a principal façanha do capitalismo - uma espécie de operação mãos limpas - conseguir que o ódio fique com os políticos, que as populações os detestem e ignorem que afinal a culpa das coisas correrem mal é do sistema capitalista, não dos políticos, não da democracia liberal; ou melhor, só é da democracia liberal porque esta se esquece de ser democracia e a sua liberalidade é tao simplesmente a que convém ao capitalismo: liberalidade no mercado, na ausência de regulamentação,  na não interferência do estado nos negócios, na isenção de impostos aos ricos com o justificativo de que essas medidas  não permitem o desenvolvimento da economia e a criação de empregos, etc., e a maioria das pessoas pura e simplesmente não percebe que está a ser ludibriada.

Seria de esperar que as esquerdas denunciassem esta situação, fizessem pelo menos pedagogia, e não slogans de que todos estamos cansados, mas até parece que elas próprias não têm a cultura política necessária para desmontar e desmistificar este processo.

Como o processo não é desmistificado, o populismo pode navegar a vontade, persuadindo amplos setores da sociedade de que as elites se estão nas tintas para o povo - e estão de facto - e de que o melhor será entregarem os seus destinos a líderes providenciais que pelo menos olharão paternalmente por eles. Desse modo não percebem que afinal o populismo - que vão apoiar - não combate o sistema capitalista, só combate a democracia da qual este pode prescindir ou mesmo ter necessidade de prescindir, atendendo às medidas predatórias que pretende impor ao trabalho para continuar o processo da chamada acumulação primitiva. O capitalismo pode em certo momento perceber a democracia como um empecilho de que será necessário desfazer-se, mesmo às custas de certas flores na lapela como as liberdades individuais, desde que não se toque no direito de propriedade e se mantenha uma farsa de igualdade política. Neste particular, o que se tem passado ultimamente no Brasil é sintomático desta situação bizarra, desta encruzilhada em que o capitalismo contemporâneo se encontra: pactuar com o fascismo ou enfrentar o descontentamento das populações, que pode ser violento.

Por outro lado, a extrema direita é nacionalista e o capitalismo é globalista, mas paradoxalmente o nacionalismo até ajuda porque cria um clima propício ao ódio entre nações, leva a ver o outro como inimigo porque diferente e assim quando há guerras a primeira vitima é a capacidade crítica com a ascensão do comportamento  de rebanho e os próprios trabalhores colocam toda a sua energia não contra os patrões, mas afinal, veja-se o absurdo, contra outros trabalhadores (de outras nações). De facto, tudo o que ajuda a criar bodes expiatórios, em simultâneo ajuda o povo a ignorar  os seus verdadeiros inimigos.

Ainda acontece que a extrema direita é tendencialmente conservadora nos valores e não vê com bons olhos a tolerância em relaçao a novas formas de família, a avanços nos direitos das mulheres, veja se, por exemplo, a reversão do direito ao aborto nos Estados Unidos e outras pérolas de misoginia disfarçadas com a defesa do valor vida, tao desprezado no concreto e nos mais variados contextos. .Mas paciência, não se pode ter tudo, sacrifique-se o que for preciso para se manter o essencial. 

Resumindo, pode dizer-se que aos analistas políticos, mesmo aos sectores da esquerda, tem escapado a perceção de que a crise da democracia liberal decorre da contradição entre democracia liberal e capitalismo que se encontra instalada desde os seus primórdios; assim, a seu tempo, foi possível detetar as debilidades da democracia e atacá-la, deixando-se todavia intacto o sistema capitalista a que esta desde sempre tem estado atrelada – quer dizer, neste caso, deita-se fora apenas a água do banho, o bebé continua bem protegido…

 

 




domingo, 11 de dezembro de 2022

 

VAMOS FALAR DE REDES SOCIAIS!

As redes sociais são uma forma nova de comunicação social que surgiu e se desenvolveu com a internet e que, pelo menos aparentemente, é democrática: todo e qualquer um pode entrar e pronunciar-se sobre o assunto/tema que está sendo debatido. Têm ainda a particularidade de não pressupor mediatização, isto é, as pessoas entram diretamente e podem comunicar – pôr em comum - o que bem entenderem.

Utopia ou distopia, eis a questão! Para quem participa, pelo menos para muitos, esta nova forma de comunicação significa a realização de uma espécie de utopia, tanto mais surpreendente quanto nunca se imaginaram com tal possibilidade e o seu protagonismo dá-lhes uma sensação de poder que nunca tiveram, ficando ainda com a convicção de que aqui consegue eliminar-se a função eventualmente manipuladora do mediador.

Todavia, se na comunicação tradicional mediatizada se corre o risco de se ser manipulado pelos ‘donos’ do ‘meio’, aqui, correm-se outros riscos porventura ainda mais embrutecedores e perigosos Citemos alguns.

  • Um dos riscos deste tipo novo de comunicação consiste na proliferação de notícias falsas e na dificuldade a partir daí de se distinguir o verdadeiro do falso.
  • Um outro, muito referido porque equivale a uma enorme multiplicidade de experiências reais, está na proliferação de falas de ódio, que afastam muitas pessoas destas verdadeiras arenas dos novos tempos com todas as consequências negativas para a lucidez do debate.
  • Um terceiro, que não costuma ser devidamente denunciado consiste na ausência de discurso argumentativo e de apresentação de factos que o corroborem, o que representa um empobrecimento real da comunicação na qual o argumento é substituído pela falácia ad hominem quando não pelo insulto mais soez.

Tudo isto contribui para que muitas pessoas se recusem terminantemente a participar nesta nova forma de comunicação porque o chorrilho de asneiras e insultos flui com tal velocidade que é de facto difícil baixar ao nível e não ficar seriamente incomodado. Esta reação embora compreensível é contraproducente porque quanto mais acentuada for a ausência de pessoas com conhecimento e capacidade argumentativa mais perigosa se torna esta nova forma de comunicação pois aqui, muito ‘democraticamente’, todos são emissores e recetores em simultâneo por mais incompetentes que se revelem.

Defender que há democracia porque todos podem participar, porque há liberdade de expressão de pensamento é não perceber que a democracia é muito mais exigente: tem de pressupor informação e conhecimento, boa fé, vontade de ouvir e de entender o ponto de vista do outro; saber defender aquilo que se acredita corresponder a verdade, saber dialogar que é a antítese de insultar. Ora nada disto parece estar presente nas redes sociais. Diria mesmo que este novo tipo de comunicação social não só não representa qualquer progresso em relaçao aos media que conhecemos como traz perigos acrescidos para a própria democracia e suas instituições. Se entendermos a democracia como um procedimento que visa chegar a decisões que vão ao encontro dos interesses razoáveis – dotados de razoabilidade – do maior número de pessoas, consenso esse obtido através do diálogo e da argumentação, na qual se espera que vença a posição que apresenta melhores argumentos, que vença quem convence, então temos de concluir que tal não será alcançado através das redes sociais.

Ficam-me muitas duvidas, mas uma é particularmente perturbadora: isto acontece em função da natureza deste nova tecnologia de comunicação ou porque ela é intencionalmente construída para produzir estes efeitos?

P.S Como se pode deduzir, o meu conhecimento do tema é nitidamente insuficiente, assim convido quem ler e puder a enviar textos que acrescentem informação e o esclareçam melhor; poderei publicá-los no blog, identificando os autores.

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

 

Nós e o neoliberalismo

O neoliberalismo através de uma verdadeira revolução silenciosa com a qual conseguiu a proeza de modificar a linguagem e o pensamento das pessoas tornou-se o senso comum da nossa época, isto é, o modo de ser e de pensar que a maioria das pessoas assume como correto, sem mais indagações.

Desse modo, todos nós, se não fizermos um escrutínio crítico, contante, difícil, para o qual muitas vezes nos falta tempo e competência, assumimos uma forma neoliberal de pensar o mundo e a vida. Vemos tudo e avaliamos tudo em termos neoliberais.

Como foi isto possível?! Ainda não percebi completamente. Bem sei que a elite neoliberal tem os cordelinhos nas mãos, domina a informação, as técnicas, a comunicação social, e agora, o que é extremamente importante e muito poucos perceberam (estou a pensar na esquerda que está convencida que já sabe o que precisa de saber) domina as redes sociais, preocupando-se em construir perfis falsos para disseminar o que lhe convém e para orientar a opinião pública no mesmo sentido.

Além disso, dá-nos brinquedos para nos distrairmos: telemóveis cada vez mais sofisticados, programas recreativos que nos embrutecem, pornografia e sexo virtual e, entretanto, vai navegando, comendo-nos as papas na cabeça.

A coisa é toda muito bem feita e, embora lamente, tenho de reconhecer que a elite neoliberal se revela muito mais inteligente do que a esquerda que se julga bem-pensante. Um exemplo, qual o cidadão comum que alguma vez pensou que ao recorrer à Uber para se fazer transportar aqui ou ali estava afinal a minar os interesses dos trabalhadores e alimentar o sistema neoliberal, sistema esse que até é capaz de criticar em conversas com os amigos? E quem, mesmo tendo já adquirido essa perceção, é capaz de resistir a um serviço mais barato?

A questão é mesmo bicuda, porque, como escreveu Pierre Bourdieu, quando o dominado assimila o quadro de valores do dominante deixa de ter instrumentos para se revoltar contra a dominação e torna-se cúmplice desta.

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

 

Imperialismo e Capitalismo combinam muito bem

Os Estados Unidos são o símbolo maior do capitalismo. O capitalismo tende a ser imperialista. Se pelo caminho, um país capitalista sentir necessidade de eliminar outro ou outros, não hesitará em fazê-lo. Aqui não há solidariedade que seria até contranatura já que ao fim ao cabo aplica-se a nível dos estados o princípio da concorrência e da competitividade que se aplica a nível dos indivíduos: perecem os mais fracos ficam os melhores e há sempre um que é melhor que os outros.

O capitalismo é imperialista porque só assim pode continuar o processo de acumulação de recursos que lhe é inerente - que faz parte do seu ADN. Os recursos não são inesgotáveis e os defensores do sistema já o devem ter percebido, mas como a ganância predomina, o que percebem com mais força é que, independentemente das consequências, enquanto houver recursos, a (sua) festa deve continuar. Quem vier por último que feche a porta.

Para a festa do capitalismo triunfante continuar, as guerras também têm de ser promovidas até porque o complexo industrial militar que foi preciso construir tem de dar vasão ao produto fabricado, quando não, por falta de consumidores, entra-se numa crise do próprio sistema pois este deixa de ser rentável. Por outras palavras, para acumular recursos é preciso espoliar outros povos, para o conseguir é preciso armamento poderoso, este uma vez produzido tem de ser vendido, se não for cria-se um problema extra não menos grave. Por isso, o sistema retroalimenta-se.

Convém, todavia, perceber que na base disto tudo está a psicologia ou melhor o psiquismo humano. Enquanto as pessoas se virem como inimigas umas das outras, se sentirem ameaçadas pelo inimigo humano próximo ou mesmo distante - e hoje mais do que nunca a distancia é relativa - vai ser muito complicado resolver o problema. Por isso o capitalismo favorece o individualismo, porque este isola as pessoas e dificulta que se unam para derrubar o sistema; mas também não é refratário aos nacionalismos, porque estes acicatam povos contra povos e são imprescindíveis para que as criaturas humanas se empolguem estupidamente e apoiem e participem nas ações bélicas.

A resposta encontra-se numa diferente organização económica e numa organização social e política que reconhecendo este problema crie condições para o resolver, mas para isso é preciso por um lado desestimular o individualismo e por outro os nacionalismos e ainda as alianças ofensivas, seria bom que retomássemos o velho slogan da esquerda dos anos 70: NEM NATO NEM PACTO DE VARSOVIA que pode ser atualizado: PACTO DE VARSÓVIA JÁ FOI, NATO TEM DE LHE IR FAZER COMPANHIA

Por outro lado, é preciso perceber que a democracia liberal ocidental funciona como uma fachada para defender interesses obscuros e para justificar crimes hediondos frequentemente cometidos em seu nome como aconteceu na guerra do Iraque na qual os Estados Unidos alegavam que o objetivo era tornar este um pais democrático. O resultado está à vista.

Seria bom que nos perguntássemos como é que um país que diz defender a liberdade acima de tudo quer obrigar outros países e outros povos a adotarem o seu regime político, ainda por cima à lei da bala? Ninguém vê a contradição? Ninguém vê que essa justificação para a guerra é uma fachada para esconder interesses que não quer revelar?  

Extrapolando para atual situação de guerra na Ucrânia, desvelemos os mecanismos ideológicos postos em ação:

- O Putin é um autocrata, a autocracia é o contrário da democracia. - A democracia é boa, a autocracia é má;

- Então vamos fazer guerra a um pais que tem um regime mau para que ele adote um regime bom;

Mas, como houve já quem tivesse denunciado este esquema, podemos ser ainda mais espertos e fazer outra coisa:

- Criar condições tais ao Putin e ao país que ele lidera de modo a conseguir que seja este a tomar a iniciativa de invadir o outro;

- Aí ninguém nos pode acusar, pois nós apenas fomos em auxílio do outro, vulnerável face a autocrática Rússia.

- Logo nos só queremos libertar a Ucrânia e também a Rússia, não queremos mais nada, o que nos move é a liberdade e os nobres valores da civilização ocidental que é preciso preservar a qualquer custo – Maquiavel no seu melhor!

A partir daqui, é plausível concluir que a politica é uma espécie de biombo com o objetivo de esconder que o que está em jogo é a economia, ou melhor interesses económicos e rivalidades entre potencias económicas capitalistas, bem como a necessidade de escoar os produtos do complexo industrial militar norte americano e de continuar o processo de acumulação capitalista não já dentro do próprio pais – que já deu o que tinha a dar  - mas permitindo aos capitalistas com mais força do seu lado apoderarem-se dos recursos de outros povos e países, neste caso e para já da Rússia, depois logo se verá.

O que é de realçar aqui é que toda a guerra económica é reduzida à guerra política: quer-se fazer crer que o que está em causa é a democracia a defender contra a autocracia. Isto é falso, mas é uma mentira muito conveniente porque atrai a simpatia das pessoas e torna-as recetivas à guerra inadiável e aos sacríficos que esta impõe e as pessoas comem isto tudo e anda pedem mais porque o complexo mediático corporativo também funciona no seu melhor.

sexta-feira, 12 de agosto de 2022

 

Capitalismo das plataformas ou tecno feudalismo?!

Assistimos hoje, sob o signo do neoliberalismo, a um novo modelo de capitalismo, o capitalismo das plataformas, que alguns batizaram de tecno feudalismo. Para percebermos este novo modelo, suas implicações e seu retrocesso, ou não, a aspetos determinantes da economia feudal, convém recordarmos alguns pontos básicos.  

No feudalismo (Idade Média) a expropriação dos excedentes produzidos era conseguida por meios políticos: havia por um lado os senhores feudais, proprietários da terra que não trabalhavam (politicamente garantidos e reconhecidos) e os servos que nela viviam, obrigados a trabalhar e a entregar ao senhor parte do que produziam. Neste período histórico o Estado era fraco e coexistia com uma enorme fragmentação do poder político.

No capitalismo (capitalismo industrial Idade Moderna) a expropriação passa a decorrer simplesmente na esfera económica, sem interferência política: o assalariado (ganha um salário, é trabalhador livre, aceita, consente no contrato) produz e é o capitalista, dono dos meios de produção e dos recursos produtivos que ao vender os produtos do trabalho - a mercadoria - obtém a mais valia, o lucro.

Esta distinção entre feudalismo e capitalismo (industrial) é relevante, embora possa não o parecer, porque no capitalismo, a exploração do trabalho é mais sofisticada e permite maior mistificação: (1)o trabalhador é livre, não se encontra diretamente vinculado a um regime de servidão e assim dá-se como que a legitimação da exploração através do contrato de trabalho; (2)desse modo, é possível separar a esfera política da esfera económica, o que permite ignorar as ligações entre ambas e tudo é percebido como se uma coisa nada tivesse a ver com a outra. Claro que se está perante uma aparência, mas as aparências são sempre importantes e não são descuradas por quem percebe o processo e a relevância da mistificação.

Tanto num caso como no outro os trabalhadores encontram-se privados dos meios de produção o que obviamente os leva a ter de aceitar o sistema para sobreviverem. Mas na aparência, sob o capitalismo, podem (formalmente) não o fazer porque em termos jurídicos houve uma alteração: já não são servos, são livres.

Hoje, mundo contemporâneo, era digital, fase neoliberal, o capitalismo vai sofrendo alterações significativa e uma dessas alterações é protagonizada pelo chamado capitalismo das plataformas (digitais). Alguns apodam este tipo de capitalismo de tecno feudalismo, querendo com isso sinalizar uma espécie de retorno ao feudalismo, embora na era da tecnologia digital, sendo os donos das plataformas os novos senhores feudais e os trabalhadores os novos servos, literalmente servidores de serviços – tendo, como se vê, tudo a mesma raiz etimológica.

Neste tipo de capitalismo, capitalismo das plataformas, vide por exemplo, o caso paradigmático da Huber, os meios de produção pertencem ao trabalhador e toda a despesa é suportada por este para produzir o serviço, o papel do capitalista consiste em permitir-lhe aceder ao mercado (clientes) a troco de uma percentagem que paga à plataforma.

Como sabemos, a Uber é uma empresa que através de um aplicativo disponibiliza clientes para prestadores de serviço de transporte mediante o pagamento de uma percentagem/taxa. Os motoristas, em vez de serem considerados trabalhadores são considerados empresários em nome individual, e a empresa capitalista, a Huber, estabelece a ligação entre quem precisa do serviço e quem se propõe fornecê-lo, com ganhos, alega, para todos, nomeadamente para o utilizador em relaçao ao mercado clássico de transportes (este aspeto é obviamente muito sedutor).

Os motoristas podem sentir que não tem patrão que são o seu próprio patrão, mas esquecem que se isso é verdade, no plano formal, também é verdade que a liberdade que ganharam foi a de não ter trabalho certo, nem direito a reforma, ferias pagas e outras garantias tao penosamente conquistadas pela classe trabalhadora. Neste modelo é o trabalhador/empresário individual que é dono dos meios de produção e que tem encargos com esta, mas na mesma o capitalista apropria-se do excedente da produção.

Há duas consequências perversas neste modelo de capitalismo: 

(1) Por um lado, o trabalhador, quem produz, neste caso quem produz um serviço, não tem direitos laborais porque não lhe é reconhecido esse estatuto. 

(2) Por outro, esta estrutura de exploração entra em colisão com a forma clássica de capitalismo presente, por exemplo, nas empresas de transportes, vulgo táxis, e prejudica esses trabalhadores a quem os patrões podem com pretexto convincente reduzir os direitos, desde logo o salário, dada a concorrência que o modelo alternativo introduziu.

Este novo modelo de capitalismo põe assim em causa as relações laborais do modelo clássico, podendo levar à degradação acelerada dos direitos dos trabalhadores, conquistados à custa de longas e penosas lutas. Os empregadores capitalistas clássicos, confrontados com um competidor que se fortaleceu porque ignorou as regras do jogo que eles, todavia, tiveram de observar, sentir-se-ão pressionados a diminuir salários e regalias.

Acontece ainda que ao isolar os trabalhadores, ao impor vínculos precários e frágeis com a empresa, pelo regime de precariato que instala, não cria condições para as suas justas reivindicações.

Postas as coisas nestes termos, vejamos agora se de facto é justificável estabelecer uma analogia consistente entre este modelo de capitalismo e o regime económico feudal. Vou apresentar a síntese a que cheguei e cabe a quem lê decidir:

(1) O senhor feudal tinha domínio sobre a terra enquanto meio de produção, agora o empresário capitalista não é detentor dos meios de produção, mas tem o domínio sobre um algoritmo que lhe permite controlar o mercado, e, como sabemos, se não houver mercado não há produção.

(2) Neste novo tipo de capitalismo a mediação entre o explorador e o explorado é feita pelo mercado, que o explorador domina e controla. Há uma forma impessoal de dominação que a esconde, coisa que não ocorria no modelo feudal – a relaçao era pessoal e direta.

(3) No modelo do capitalismo das plataformas, tal como no modelo feudal, o dono, agora não da terra, mas do algoritmo não paga salário, todavia também expropria o trabalhador de uma parte do rendimento do seu trabalho.

(4) Como no feudalismo, os trabalhadores não têm direito a reforma, a segurança social, a proteção na doença, não tem horário, etc. e ainda tem de financiar as suas próprias ferramentas de trabalho e custos inerentes ao trabalho.

(5) A empresa capitalista pode em qualquer altura prescindir dos seus serviços (Precariato) enquanto o servo feudal estava adstrito à terra, não a podia abandonar, mas também não podia dela ser expulso.

(6) Assim como no feudalismo o estado era fraco, quase só nominal, também agora se defende e persegue o ideal de um estado fraco que não intervenha nos negócios, que não crie problema, que não regulamente e que sobretudo não vigie se a regulamentação é cumprida. Um estado fraco é mais fácil de cooptar pelos agentes económicos poderosos.

Aguardo os vossos comentários.

quinta-feira, 11 de agosto de 2022

 

Os filósofos e a voz do dono!


Estou a ler a Contra-história do Liberalismo, de Domenico Losurdo (acede-se ao livro através da internet).

É uma leitura impressionante porque o autor, de forma profusamente documentada, nos leva a perceber, na sua concretude, a humanidade que somos: a hipocrisia que nos habita, a falta de empatia estrutural, o como a educação e a informação padrão a que temos acesso nos deforma e mistifica.

Em relaçao aos filósofos, os quais durante muito tempo julguei que podiam escapar a esta  condição humana, acabo a concluir que devem ser vistos com salutar suspeição, como é o caso de Locke - o pai do liberalismo moderno - que me habituei a admirar incondicionalmente. Isto porque, não esqueçam, afinal os filósofos são a voz do dono, é uma tentação muito forte, porque ou são donos, isto é, já pertencem à elite, ou procuram aproximar-se dela e são os interesses desta que os movem.


Leiam o livro, tentem furar o bloqueio, aceitem o desafio!!!


segunda-feira, 18 de julho de 2022

 

Capitalistas e trabalhadores – porque é que há ricos e pobres e isso é muito justo!!!

“Em tempos muito remotos, havia, por um lado, uma elite laboriosa, inteligente e sobretudo parcimoniosa, e, por outro, vagabundos dissipando tudo o que tinham e mais ainda. A legenda do pecado original teológico conta-nos, contudo, como o homem foi condenado a comer seu pão com o suor de seu rosto; a história do pecado original econômico, no entanto revela-nos por que há gente que não tem necessidade disso. Tanto faz. Assim se explica que os primeiros acumularam riquezas e os últimos, finalmente, nada tinham para vender senão sua própria pele. E desse pecado original data a pobreza da grande massa que até agora, apesar de todo o seu trabalho, nada possui para vender senão a si mesma, e a riqueza dos poucos, que cresce continuamente, embora há muito tenham parado de trabalhar.” Marx. O Capital, cap. XXIV p. 339.

domingo, 17 de julho de 2022

 Esquerdas 

 A desgraça das esquerdas

As esquerdas, profundamente ressentidas com o colapso da união soviética (1991) cometeram erros gravíssimos que estamos a pagar com língua de palmo. Em primeiro lugar ficaram reféns desse ressentimento e desistiram de estudar o fenómeno histórico em si mesmo, de o tentar compreender, de encontrar as suas motivações mais profundas.
Com esta atitude permitiram que triunfasse a narrativa neoliberal de que o comunismo fracassara, que o marxismo era coisa do passado, que não havia alternativa ao capitalismo (TINA- There Is No Alternative, como gostava de dizer  M Thatcher).
Ora, por motivos de vária ordem, o que colapsou foi uma tentativa de pôr de pé uma sociedade socialista, não foi o socialismo; não foi o marxismo que se tornou irrelevante e passadista.  Marx continua atual, embora precisando de ser repensado em muitas e importantes matérias, já que viveu e escreveu num contexto que hoje se alterou profundamente. Mas precisamente, dada a sua atualidade, as universidades, dominadas por interesses neoliberais, (fenómeno nítido nos estados unidos) escamoteiam o seu estudo, e por exemplo, pelo menos em Portugal, fazem-se teses de doutoramento sobre tudo e mais um par de botas, mas o marxismo e a sua análise é tabu e é tabu porque os neoliberais já perceberam uma coisa que a esquerda ainda não percebeu é que Marx é dinamite pura, depois de o lermos não fica pedra sobre pedra. Que a direita neoliberal impeça o estudo de Marx percebe-se perfeitissimamente, que a esquerda não o estude, deixa-me estupefacta!


E mais a esquerda, pelo menos a que conheço, em Portugal, tem descurado completamente a educação política que é fundamental para percebermos a realidade; diz mal, repete slogans, faz reivindicações pontuais, mas não é nunca pedagógica, não explica, não identifica o racional que preside a estas e aquelas decisões políticas, não desconstrói a ideologia dominante quando ela se manifesta nesta ou naquela situação particular e hoje é neste campo que se ganham e perdem lutas.  E é minha convicção que não o faz porque é ignorante já que não estuda, não debate ideias, visões do mundo, etc. é uma esquerda de trazer por casa! Presa do senso comum. Com isso criou as condições para o neoliberalismo fazer a sua caminhada, sem obstáculos de maior. 


sexta-feira, 15 de julho de 2022

 

Na luta contra o neoliberalismo

A nova categoria concetual que é importante introduzir no discurso político é a de  “mercadorização da natureza”. Esta corresponde, na era neoliberal em que vivemos, a uma nova etapa da inicialmente chamada ‘acumulação primitiva’, operada através de um processo de privatização do que pertence à comunidade’; nomeadamente a comunidades indígenas, como acontece, por exemplo, na Amazónia.

A acumulação que ocorreu na época moderna, em países da europa, como a Inglaterra, foi já um autêntico roubo do que era de todos, transferência de terras comuns, para as mãos de privados que, de seguida, procuraram rentabilizar essas terras em termos de produção capitalista. Claro que provocou transformações sociais profundas, degradando extremamente as condições de vida das populações prejudicadas diretamente, mas não teve impacto a nível da própria natureza. Todavia, agora o caso muda de figura, porque não são só as populações que são roubadas e afetadas nos seus estilos de vida legítimos, é a própria sustentabilidade da natureza e mesmo do planeta que é colocada em grave risco.

Dai que seja preciso percebermos todos que natureza não é mercadoria, as pessoas não são mercadoria, as mercadorias são coisas produzidas pelo trabalho de pessoas e pessoas conscientes sabem que devem usar com critério os recursos que a natureza coloca à sua disposição. Tudo isto é esquecido pelo capitalismo extremamente predatório do neoliberalismo; por isso é preciso lutar com todas as forças contra o neoliberalismo, enquanto é tempo! Ouçam bem: ENQUANTO É TEMPO!