Democracia liberal e capitalismo – gato escondido com o rabo de fora…
A democracia liberal na fase do
neoliberalismo, que é aquela em que, no dealbar desta terceira década do seculo
XXI, nos encontramos, atravessa uma crise profunda e sofre ataques persistentes
de partidos de extrema direita aos quais, tudo leva a crer, vai ter de acabar
por se render, aceitando-os pelo menos como pares na governação.
É certo que entre a extrema direita
populista, conservadora e tradicionalista e a ideologia liberal que enforma as
democracias liberais, as divergências são profundas, mas nada que não seja
ultrapassável se, para salvar os dedos, for preciso perder os anéis.
As
críticas que o populismo faz à democracia
liberal são pertinentes e justas mas tem um pequeno senão é que falham o
alvo: dirigidas
aos políticos esquecem que estes são uma espécie de marionetes
manipuladas
pelas elites capitalistas de acordo com os interesses destas, ou
corrompidas, quando tal se mostra necessário; e há formas muito subtis
de corromper: lembremos
como é frequente certas personagens politicas, findo o mandato,
transitarem
para altos cargos em instituições financeiras privadas, ou outro tipo de
posições
extremamente bem remunerados e nunca mais ouvimos falar delas, ficam a
operar
na sombra do sistema enquanto os políticos ocupam o palco.
Esta
foi porventura a principal façanha do
capitalismo - uma espécie de operação mãos limpas - conseguir que o ódio
fique
com os políticos, que as populações os detestem e ignorem que afinal a
culpa das coisas correrem mal é do sistema capitalista, não dos
políticos, não da
democracia liberal; ou melhor, só é da democracia liberal porque esta se
esquece de ser democracia e a sua liberalidade é tao simplesmente a que
convém
ao capitalismo: liberalidade no mercado, na ausência de regulamentação, na não interferência do estado nos negócios,
na isenção de impostos aos ricos com o justificativo de que essas medidas não permitem o
desenvolvimento da economia e a criação de empregos, etc., e a maioria das
pessoas pura e simplesmente não percebe que está a ser ludibriada.
Seria de esperar que as esquerdas
denunciassem esta situação, fizessem pelo menos pedagogia, e não slogans de que
todos estamos cansados, mas até parece que elas próprias não têm a cultura
política necessária para desmontar e desmistificar este processo.
Como o processo não é desmistificado, o
populismo pode navegar a vontade, persuadindo amplos setores da sociedade de
que as elites se estão nas tintas para o povo - e estão de facto - e de que o
melhor será entregarem os seus destinos a líderes providenciais que pelo menos
olharão paternalmente por eles. Desse modo não percebem que afinal o populismo
- que vão apoiar - não combate o sistema capitalista, só combate a democracia da
qual este pode prescindir ou mesmo ter necessidade de prescindir, atendendo às
medidas predatórias que pretende impor ao trabalho para continuar o processo da
chamada acumulação primitiva. O capitalismo pode em certo momento perceber a
democracia como um empecilho de que será necessário desfazer-se, mesmo às
custas de certas flores na lapela como as liberdades individuais, desde que não
se toque no direito de propriedade e se mantenha uma farsa de igualdade política.
Neste particular, o que se tem passado ultimamente no Brasil é sintomático desta
situação bizarra, desta encruzilhada em que o capitalismo contemporâneo se
encontra: pactuar com o fascismo ou enfrentar o descontentamento das populações,
que pode ser violento.
Por outro lado, a extrema direita é
nacionalista e o capitalismo é globalista, mas paradoxalmente o nacionalismo até
ajuda porque cria um clima propício ao ódio entre nações, leva a ver o outro
como inimigo porque diferente e assim quando há guerras a primeira vitima é a
capacidade crítica com a ascensão do comportamento de rebanho e os próprios trabalhores
colocam toda a sua energia não contra os patrões, mas afinal, veja-se o absurdo,
contra outros trabalhadores (de outras nações). De facto, tudo o que ajuda a
criar bodes expiatórios, em simultâneo ajuda o povo a ignorar os seus
verdadeiros inimigos.
Ainda
acontece que a extrema direita é
tendencialmente conservadora nos valores e não vê com bons olhos a
tolerância
em relaçao a novas formas de família, a avanços nos direitos das
mulheres, veja
se, por exemplo, a reversão do direito ao aborto nos Estados Unidos e
outras
pérolas de misoginia disfarçadas com a defesa do valor vida, tao
desprezado no
concreto e nos mais variados contextos. .Mas paciência, não se pode ter
tudo, sacrifique-se o que for preciso para se manter o essencial.
Resumindo,
pode dizer-se que aos analistas
políticos, mesmo aos sectores da esquerda, tem escapado a perceção de
que a crise
da democracia liberal decorre da contradição entre democracia liberal e
capitalismo que se encontra instalada desde os seus primórdios;
assim, a seu tempo, foi possível detetar as debilidades da democracia e
atacá-la,
deixando-se todavia intacto o sistema capitalista a que esta desde
sempre tem estado atrelada – quer dizer, neste caso, deita-se fora
apenas a água do banho, o bebé
continua bem protegido…