Nas décadas de sessenta e setenta do século XX usar Freud para desconstruir o sistema patriarcal deveria parecer uma missão impossível, mas foi precisamente o que Shulamith Firestone intentou fazer.
Nessa época, a divulgação das teorias freudianas conhecia enorme sucesso e a princípio as feministas tinham recebido de braços abertos o que parecia ser um aliado contra os constrangimentos e tabus sexuais. Todavia, como em breve perceberam o potencial sexista que essas teorias também comportavam - já que forneciam justificativos para a manutenção dos papéis tradicionais - não é de estranhar que tenham experimentado as maiores suspeitas face à recuperação que Firestone decidiu fazer de Freud.
F. pensou, e não podemos negar pertinência a esse pensamento, que não se deveria dispensar Freud só por virtude do potencial sexista contido nas suas teorias, porque elas também explicavam o sexismo, ou melhor, forneciam instrumentos conceptuais que permitiam compreendê-lo, atingindo-se assim a raiz psicológica da opressão das mulheres. Para ela, Freud limitara-se a refletir sobre uma realidade já existente - a patriarcal - que vê como tendo origem na biologia. Não considera a psicanálise uma ideologia opressiva porque diz que esta se limita a analisar as condições em que homens e mulheres vivem e estruturam o seu psiquismo e nesse aspeto constitui até um roteiro útil para quem quiser empreender a crítica do sistema e sua superação. Não contesta a teoria freudiana da sexualidade, antes se serve dela para perceber como se vão constituir duas classes sexuais e suas diferenças. Para ela, a teoria é verdadeira desde que interpretada como uma explicação sociológica e não essencialista e uma vez filtrada pela interpretação feminista; utiliza-a assim para conseguir aquilo que muitas feministas ambicionavam: encontrar as raízes da opressão das mulheres no sistema patriarcal.
Vai procurar provar que de facto nas circunstâncias em que as crianças são criadas no seio da família biológica nuclear, o sistema só pode ser reforçado e replicado; para o evitar é preciso mudar essas circunstâncias, assumir uma atitude radical, anulando as causas porque só anulando as causas se conseguem evitar os efeitos. Considera que o que está na base da opressão das mulheres é a família nuclear na qual decorre o processo de construção das estruturas da psique infantil, construção diferente consoante se trate dos meninos ou das meninas - crianças do sexo masculino ou do sexo feminino. De Freud, retém a explicação que este dá do desenvolvimento infantil e aproveita para mostrar por que é que as mulheres são “femininas” e os homens “masculinos”, isto é, mostra como se constrói o género masculino e o género feminino.
Na família nuclear a figura de poder é a do pai e nela processa-se a separação entre emoção e sexualidade porque a criança aprende que certas intimidades com a mãe são permitidas enquanto outras são reprimidas, sob o estigma de sexuais. Desse modo, o sexo enquanto experiência emocional de um certo tipo é reprimido com o poder do pai que interdita a mãe ao filho.
Nesse quadro teórico, o fulcro da sua análise vai ser o construto conceptual que Freud designou de Complexo de Édipo. Quando na família biológica as crianças crescem e se desenvolvem, é central a ansiedade que sentem em relação à mãe, temendo perder o amor desse ser tão próximo do qual dependem directamente. Estabelece-se assim uma relação complexa entre a criança e a mãe. Mas essa relação vai ser diferente, consoante se trate dos filhos ou das filhas e vai acabar por se tornar responsável pela desigualdade de condição e de estatuto entre homens e mulheres, interiorizada desde a mais tenra infância.
Nesta fase do desenvolvimento psíquico da criança, o menino deseja a mãe, objecto do seu amor, mas dada a existência do pai, que pressente como um rival, vê esse amor rejeitado; é assim obrigado, a fim de resolver esta situação complexa – amor à mãe e ódio ao pai – a recorrer a um processo de sublimação do desejo e a procurar reconhecimento diferido através das suas realizações futuras. De qualquer modo, embora a repressão do desejo sexual ocorra, o menino posteriormente vai amar uma mulher, isto é, o desejo vai acabar por ser satisfeito numa pessoa do sexo feminino. Quer dizer, no longo prazo esta expressão da sua sexualidade não será reprimida.
Também para a menina, a mãe surge como o primeiro objeto de desejo; mas nunca terá oportunidade de transferir esse desejo para outra mulher, a heterosexualidade ser-lhe-á imposta como tipo de sexualidade normal e normativa. A menina não sublima o desejo, mas como quer ser reconhecida, vai procurar a aprovação direta, em primeiro lugar da mãe e depois das outras pessoas, como se bastasse existir e nada mais tivesse de fazer; não procede ao tipo de sublimação que ocorrerá com o rapaz, desse modo, na menina, a rejeição da mãe tem outros contornos e reveste-se de outras consequências:
“Na menina, a rejeição da mãe, ocorrendo por razões diferentes, produz insegurança acerca da sua identidade em geral, criando-lhe pela vida fora constante necessidade de aprovação (mais tarde, o amante substitui o pai como garante da necessária identidade de substituição – ela vê tudo através dos seus olhos).”
Temos assim que o facto da família apresentar uma estrutura patriarcal - na qual a autoridade dominante é a do pai e a mãe é praticamente o único elo de ligação dos filhos à figura paternal - tem como consequência que a primeira expressão do desejo sexual seja dirigida à mãe tanto nos meninos como nas meninas. Mas, dada a necessidade de o reprimir, vai ser imposta a heterossexualidade como forma correta de comportamento sexual. Uma heterossexualidade opressiva vai encontrar-se assim na fundação de uma ordem social, ela também opressiva. A heterossexualidade surge como uma identidade que tem a sua raiz nas relações desiguais entre homens e mulheres que, com origem em diferenças biológicas, são consolidadas na família patriarcal.
É o próprio facto de a família biológica revestir uma forma patriarcal que leva a criança, rapaz ou rapariga, a desejar (sexualmente) a mãe porque esta é o objeto de amor que lhe está mais próximo. O filho é obrigado a reprimir violentamente esse desejo, por receio da castração, explica Freud; mas sublima-o, obtendo reconhecimento através das suas realizações e mais tarde satisfá-lo de forma vicariante, amando outra mulher.
Na menina, a questão não se coloca com a mesma premência – não teme a castração porque não possui o respetivo apêndice mas também – é o que Freud nos diz - nunca desenvolverá a capacidade de sublimar:
“As filhas resolvem este complexo de Édipo renunciando às suas mães, partilhando com elas esta “falta”. [Mas] porque procuram superar a deficiência dando nascimento a um bebe com pénis, as mulheres permanecem sempre psicologicamente centradas na esfera do Eros. Isto é, segundo Freud, as mulheres nunca desenvolvem os poderes de sublimação que os homens adquirem e por isso ficam não apenas fora da civilização mas contra a civilização.”
Feminism and its Discontents, pp 17/18