domingo, 30 de outubro de 2011

Bem vindo à India rural – o patriarcado no seu melhor

“Suponha que se organiza a sociedade de tal modo que apenas os homens são autorizados a trabalhar fora de casa. As mulheres são confinadas ao interior para serem cuidadoras de crianças e donas de casa. Já que as mulheres não podem trabalhar, as suas hipóteses de sobrevivência dependem de serem suportadas primeiro pelos pais e depois pelo marido. Os pais têm de pagar um dote ao homem que tomar conta da filha.

Suponha ainda que não há sistema de segurança social e os pais tem de contar com os filhos para os suportarem quando forem velhos. Se você fosse pai, inevitavelmente preferiria um filho, que receberia um dote quando casasse e tomaria conta de si quando você fosse demasiado velho para trabalhar.

As filhas não têm para si qualquer utilidade e são um encargo para a sua já magra receita. Não surpreende se decidir abortar/matar bébés do sexo feminino. Outros adoptam o mesmo comportamento e assim a proporção de homens em relação às mulheres fica distorcida. Então o que é que acontece quando o seu filho tenta encontrar uma esposa? Não há mulheres suficientes em redor.

Há várias soluções. Pode arranjar uma esposa para um filho que depois será partilhada por outros irmãos. Ou pode raptar uma mulher para ser a esposa do seu filho. Ou pode comprar uma mulher que tenha sido raptada, por vezes, através de um leilão.

Já que as mulheres são percebidas como seres inferiores na sua sociedade – você mata as suas bébés, lembra-se? – as mulheres partilhadas e compradas serão suas para as tratar como se fossem uma propriedade. Bem vindo à India rural!”*

· Texto publicado em Feminist Philosophers

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

O filho de Johanna Schopenhauer

De Arthur Schopenhauer e da leitura da sua diatribe “Sobre as Mulheres” deixo-vos com estas pérolas de pura e requintada misoginia:

“ Que a mulher está por natureza destinada a obedecer é evidenciado pelo facto de que qualquer mulher, colocada na posição não natural de absoluta independência, de imediato se liga a um qualquer tipo de homem, pelo qual é controlada e governada; isto acontece porque ela precisa de um dono. Se é jovem, o homem é um amante, se é velha, um padre.”

Imaginem lá em quem é que este marmanjo estaria a pensar quando escreveu tão sábias reflexões?! Nada mais nada menos que na própria mãe, Johanna Schopenhauer. Atraente, viva e inteligente, Johanna teve de casar aos dezoito anos com um homem vinte anos mais velho, ainda por cima, taciturno e depressivo. Não admira pois que com a morte do marido, que provavelmente se suicidou, livre de restrições matrimoniais, ainda na casa dos trinta, tenha começado a viver nos seus próprios termos. O facto é que se tornou uma escritora conhecida, a primeira em território germânico a escrever sem recurso a pseudónimo. Claro que o filho de Joahnna Scopenhauer - como foi conhecido durante a maior parte da sua vida - não podia perdoar-lhe tanta assertividade.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Amor e sexo em Schopenhauer

Arthur Schopenhauer (1788-1860) foi um filósofo alemão cujas considerações sobre amor e sexo devem ser conhecidas, dada a potencialidade de misoginia que implicam. Schopenhauer conseguiu dar uma aparência de rigor aos preconceitos mais caros do senso comum, mas nesse aspecto não fez mais do que seguir uma velha tradição que fornece exemplos constantes da misoginia do Canon filosófico. De facto, foi sempre muito apelativo, uma vez enfraquecido o respeito pelos preceitos divinos, “naturalizar” a injustiça social nas suas diversas vertentes:

«Por disposição natural os homens são inclinados à inconstância no amor, as mulheres à constância. O amor do homem decai perceptivelmente a partir do momento em que obtém satisfação; quase qualquer outra mulher o encanta mais do que aquela que já possuiu, ele anseia por variedade. Por outro lado, o amor da mulher aumenta a partir desse momento. Isto é uma consequência do objetivo da natureza que é dirigido para a manutenção e por isso para o maior aumento possível da espécie. O homem pode gerar facilmente para cima de uma centena de crianças por ano, a mulher, pelo contrário, pode apenas trazer uma criança ao mundo cada ano (deixando de lado o nascimento de gémeos). Por isso o homem sempre andará à procura de outras mulheres, a mulher agarrar-se-á firmemente a um homem, porque a natureza move-a por instinto e sem reflexão a reter aquele que alimenta e protege os seus frutos. De acordo com isto, a fidelidade no casamento é artificial no homem e natural na mulher e por isso o adultério por parte da mulher é muito menos perdoável do que por parte do homem, tanto objetivamente por conta das consequências como subjetivamente por conta de não ser natural.”[1]



Schopenhauer, O Mundo como Vontade e como Representação.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

A ONU e o debate sobre a igualdade de género

A 66ª sessão da Assembleia Geral da ONU, realizada em 2011, foi marcada pelo debate sobre a igualdade de género. Pela primeira vez, desde que a ONU existe, o discurso de abertura foi proferido por uma mulher, no caso, a Presidenta do Brasil Dilma Roussef que chamou a atenção para o papel desempenhado no Brasil pelas mulheres no sentido de atenderem ao problema das desigualdades sociais, apesar de muito ainda precisar de ser feito para atenuar as desigualdades de género. Roussef rendeu homenagem a Michelle Bachelet, diretora executiva de ONU Mulheres: “Junto a minha voz às das mulheres que se atreveram a participar na luta política e no mercado de trabalho e que forjaram o espaço político sem o qual eu não estaria aqui.”

Os Chefes de Estado e os membros de governo presentes pronunciaram-se unanimemente no sentido de se incrementar a participação política das mulheres e de acabar com os atropelos aos seus direitos enquanto direitos humanos. De entre as diversas intervenções, saliento:

O facto de Os Emirados Arabes Unidos disponibilizarem um fundo de 5 milhões de Dólares para ONU Mulheres.

O apoio do Presidente da Nigéria à ONU Mulheres referindo que 30 por cento dos membros do seu gabinete são mulheres.

A insistência da Espanha e da Indonésia em melhorarem o papel das mulheres na economia, chave que pode abrir a sua maior participação na vida social e política.

A declaração do ministro dos assuntos exteriores de Burkina Faso que anunciou que o Grupo de Estados Africanos iria introduzir um projecto de resolução sobre a mutilação genital feminina.

Todos estes sinais são sinais positivos; convém conhecê-los e saudá-los pois, como disse a Ministra da Noruega para os Assuntos Exteriores, os Estados que insistem na discriminação não conseguem superar o ciclo infernal da pobreza.

sábado, 1 de outubro de 2011

Feminismo - Igualdade ou liberdade?!

Face à recente disposição do Estado australiano que remove restrições à aceitação de mulheres não só no exército mas especificamente na frente de combate, Clive Hamilton, professor de ética da Universidade Charles Sturt, considera que o feminismo com a sua ênfase na igualdade e não na liberdade continua a equivocar-se.

Clive Hamilton insiste nas diferenças entre os sexos e em como elas deviam ser valorizadas ao invés de tudo se fazer para as diminuir; mas parece esquecer que foi com base nas diferenças que a inferiorização das mulheres foi construída, e que, por isso, as feministas, pelo menos muitas, continuam a olhar com justificada suspeição para o discurso da diferença.

O argumento de Hamilton é o de que serem admitidas nas fileiras de um exército e participarem em combate devia ser rejeitado pelas mulheres pois corresponde a assimilar valores masculinos de violência e conflito. Quer dizer as mulheres reivindicam acesso a postos de combate só para serem iguais aos homens, mas ele pergunta-se se não seria melhor manter as diferenças e valorizá-las e chama à colação a feminista Carol Gilligan que enfatiza as diferenças entre homens e mulheres no domínio da moralidade: as mulheres preocupam-se mais com o cuidado a ter com o outro do que com um dever abstrato, enfatizam mais a responsabilidade do que os direitos, são mais dialogantes e negociadoras, sempre prontas a colocarem-se nos sapatos dos outros.

Quando diz que a valorização da guerra como meio de dirimir conflitos é a vitória de um modo masculino de pensar e que as mulheres estão literalmente a entrar em campo minado, eu acho que em certo sentido ele tem razão. Mas o problema que eu coloco e que ele ilude é o de saber se é possível a libertação das mulheres sem a igualdade de direitos em relação aos homens. Penso que aqui, infelizmente, não é possível queimar etapas, se não se lutar pela igualdade não vai ser possível atingir a liberdade. A história fornece argumentos factuais que corroboram esta tese. Em todos os momentos históricos em que humanidade procurou libertar-se de grilhões o que se constatou foi que essa humanidade se entendia como masculina e em relação às mulheres pretendia deixar tudo na mesma.

A argumentação de Clive lembra vagamente a argumentação dos partidos de inspiração marxista da primeira metade do século XX que consideravam burguesas as reivindicações das feministas e que defendiam que o importante era mulheres e homens lutarem pelos direitos dos trabalhadores e pela mudança social de fundo. Eram partidos politicamente de vanguarda mas socialmente reaccionários e se lhes tivéssemos dado ouvidos não só não se tinha operado a mudança social que preconizavam como as mulheres continuariam no lugar que muitos consideravam natural e desejável.

Quando Hamilton diz que se é para fazerem a política que os homens fazem então para quê pôr mulheres em cargos públicos, o argumento colhe, mas só até certo ponto, pois na mesma ordem de ideias e linha de coerência também deveríamos perguntar por que é que se acabou com o colonialismo se os novos governantes continuam a levar a cabo a exploração das populações; mas não passa pela cabeça de Hamilton e ainda bem, pôr em causa a justiça da luta de libertação dos povos oprimidos pelas potências coloniais.

Penso que a perpetuação do sistema capitalista é compatível com a realização do ideal feminista da igualdade, isto é, o sistema não vai cair pelo facto de reconhecer a igualdade das mulheres, como durante tanto tempo se temeu. A submissão das mulheres aos homens, embora tenha sido reforçada e potenciada pelo sistema capitalista, pressupõe outras raízes e essas tiveram a ver com a diferenciação acentuada de papéis: a produção social para os homens e a reprodução para as mulheres. Assim, em minha opinião só quando for alcançado um patamar estável e consistente de igualdade é que se pode partir para a luta pela liberdade, pelo menos para as mulheres.

Eu não sou cartesiana mas há um aspecto no método preconizado por Descartes que me parece importante: dividir um problema nos seus componentes e procurar resolvê-lo por partes: resolvamos o problema da inferiorização das mulheres, partamos depois para o da sua libertação que terá de ser o da libertação da humanidade no seu todo, homens e mulheres incluídos. Tentar as duas coisas em simultâneo não parece praticável, fazer uma com a desculpa que a outra vem por acréscimo não é realista.