sábado, 31 de dezembro de 2011

A Humanidade não é uma espécie animal é uma realidade histórica

Shulamith Firestone tem sido acusada de biologismo e de essencialismo, mas esta crítica não me parece correta. Ela reconhece que a assimetria de poder entre homens e mulheres tem uma base biológica e de certo modo aparece como natural, mas defende que isso não significa que as mulheres tenham de se conformar e nada fazer porque, como de Beauvoir já tinha realçado, “a Humanidade não é uma espécie animal é uma realidade histórica. A sociedade humana é uma antifysis – em certo sentido é contra a natureza; não se submete passivamente à presença da natureza, mas antes toma o controlo da natureza para seu próprio benefício.”

Controlar a natureza tem sido um objetivo persistente dos homens. Mas, curiosamente, ou não, enquanto se libertam a eles mesmos das peias da natureza, têm tentado manter as mulheres a elas presas pois estão interessados em preservar domínio e privilégio. Também nada garante que, uma vez ultrapassada a base biológica da opressão das mulheres, esta não persista porque ”a nova tecnologia, especialmente o controlo da fertilidade, pode de novo ser usada para reforçar o entrincheirado sistema de exploração.”

Para prevenir esta eventualidade e retornando a Marx e a Engels, Firestone defende que, assim como estes preconizavam a apropriação pelos trabalhadores dos meios de produção, também as mulheres se têm de apropriar dos meios de reprodução, isto é, do controlo dos seus próprios corpos. Palavras sábias que muitas teimam em ignorar.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Biologismo e injustiça social

O biologismo, ou determinismo biológico, hoje também designado determinismo genético, é a crença de que factores e características biológicas determinam características psíquicas e modos de comportamentos humanos. De acordo com esta perspectiva, traços de personalidade, talentos, ou comportamentos, nomeadamente comportamentos desviantes dos seres humanos, como por exemplo a criminalidade, são determinados basicamente por factores genéticos, o que lhes confere uma natureza inata e um carácter essencial - o biologismo é assim um essencialismo. Por contraponto, para o biologismo, factores não biológicos como os costumes sociais ou a educação têm um papel secundário ou até irrelevante na explicação das condutas.

O biologismo é um reducionismo que procura reduzir o complexo aos seus elementos mais simples e desse modo é bastante apelativo para a grande maioria das pessoas; todavia, ignora de facto a complexidade de relações que se estabelecem entre os organismos e o meio envolvente. Como Richard Lewontin em Biology as Ideology: The Doctrine of DNA (1991) sustenta, o biologismo parte de uma posição de base insustentável: a de que os organismos se comportam como receptores passivos das influências ambientais, quando o que se verifica é que são construtores activos do seu próprio ambiente, existindo assim uma dialética entre o organismo e o meio ambiente.

O biologismo não é uma teoria científica, é uma ideologia, e, enquanto ideologia, favorece o imobilismo social e a manutenção do statu quo pois naturaliza diferenças e desencoraja a luta por modificações sociais estruturais. Esta ideologia é antiga e persistente e embora tenha conhecido um período em que deixou de ser politicamene correcta, no pós guerra, dadas as tropelias cometidas em seu nome pelo nazismo, acabou por voltar em força, embora reciclada sob uma forma de pretensa ciência, caso da psicologia evolucionista e da sociobiologia do comportamento humano.

O biologismo tem potencial para tornar defensável o sexismo e o racismo com o argumento de que as caraterísticas biológicas determinam caraterísticas psíquicas e comportamentais que distinguem claramente num caso as mulheres dos homens e, no outro, os povos não brancos dos povos de raça branca. Acresce que essa diferença, embora isso possa não ser vocalizado, é percebida como inferioridade e permite justificar o baixo estatuto social desses sectores da população.

domingo, 18 de dezembro de 2011

Shulamith Firestone e o materialismo dialético

Partindo de uma formação filosófica de raiz marxista, Firestone desenvolveu uma análise da opressão das mulheres que pressupõe uma base material. Para essa análise, Marx e Engels forneceram-lhe o método dialético e a concepção materialista dialética da história. Segundo esta concepção, a história não é uma realidade estática de coisas e acontecimentos separados e independentes, mas um processo em que há constantes ações e reações de opostos que se interpenetram e que têm na base condições económicas.

F. estabelece um paralelismo entre a revolução feminista, que em sua opinião as mulheres têm de empreender, e a revolução económica, que se encontrava no horizonte da explanação de Marx e de Engels; considera mesmo que a teorização feminista precisa de ir mais longe porque o fenómeno que intenta explicar tem raízes mais remotas, entroncando no próprio reino animal.

Em Marx e Engels aprecia o facto de não procurarem debitar discursos edificantes acerca da injustiça das desigualdades sociais, como os socialistas utópicos faziam “preconizando um mundo ideal onde privilégio de classe e exploração não existiriam. Também as primeiras feministas tinham postulado um mundo onde o privilégio masculino e a exploração não deviam existir – por mera virtude da boa vontade”. Marx e Engels permitiram-lhe perceber que a situação de opressão em que as mulheres se encontram não muda por pura boa vontade, por mais inspiradora que essa vontade seja. É preciso ir às raízes da opressão, só assim se encontra a resposta para o problema.

A convergência com Marx e Engels fica no entanto por aqui. Porque, para F., não é a situação económica, mas a diferença sexual de natureza biológica que se encontra primariamente na origem da opressão das mulheres. Quer dizer, ao invés de partir da economia parte da biologia. Defende que a opressão sexual é a primitiva, mais antiga que a de classe social, e forneceu o modelo para todas as formas de opressão que se vieram a instalar nas sociedades humanas. Pretende assim que, para alem do nível económico, se encontra o nível sexual e é deste que convém partir.

Na visão que expõe em The Dialectic of Sex coloca na origem do processo histórico a diferença de sexo - não os antagonismos de classe. Por outro lado, considera prioritária a luta pela libertação das mulheres. Consciente da desigualdade económica e racial, não assumiu a tese, cara à intelectualidade de esquerda da época, de que era prioritária a luta de classes, na suposição de que com a abolição das classes se eliminaria a opressão das mulheres. A sua experiência pessoal, bem como a experiência histórica vivida pela União Soviética, não lhe permitiam alimentar muitas ilusões quanto à bondade dessa tese. De facto, ela própria tivera oportunidade de apreciar como os colegas (de esquerda) reagiam às propostas que apresentava, não as considerando oportunas e como presumiam que o papel das participantes femininas nas reuniões políticas deveria ser o de se limitarem a coadjuvar os homens, afinal o papel que desde sempre a sociedade lhes atribuíra. Também na União Soviética se persistia na diferenciação de papéis com uma participação mínima das mulheres na esfera pública, dificuldades em relação ao aborto e contracepção, etc. etc.

Neste contexto, F. defende que, assim como os trabalhadores precisam de controlar os meios de produção, também as mulheres têm de controlar os meios de reprodução, num caso e no outro tem sido essa falta de controlo que tem criado condições favoráveis à opressão.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Shulamith Firestone e a psicanálise

Nas décadas de sessenta e setenta do século XX usar Freud para desconstruir o sistema patriarcal deveria parecer uma missão impossível, mas foi precisamente o que Shulamith Firestone intentou fazer.

Nessa época, a divulgação das teorias freudianas conhecia enorme sucesso e a princípio as feministas tinham recebido de braços abertos o que parecia ser um aliado contra os constrangimentos e tabus sexuais. Todavia, como em breve perceberam o potencial sexista que essas teorias também comportavam - já que forneciam justificativos para a manutenção dos papéis tradicionais - não é de estranhar que tenham experimentado as maiores suspeitas face à recuperação que Firestone decidiu fazer de Freud.

F. pensou, e não podemos negar pertinência a esse pensamento, que não se deveria dispensar Freud só por virtude do potencial sexista contido nas suas teorias, porque elas também explicavam o sexismo, ou melhor, forneciam instrumentos conceptuais que permitiam compreendê-lo, atingindo-se assim a raiz psicológica da opressão das mulheres. Para ela, Freud limitara-se a refletir sobre uma realidade já existente - a patriarcal - que vê como tendo origem na biologia. Não considera a psicanálise uma ideologia opressiva porque diz que esta se limita a analisar as condições em que homens e mulheres vivem e estruturam o seu psiquismo e nesse aspeto constitui até um roteiro útil para quem quiser empreender a crítica do sistema e sua superação. Não contesta a teoria freudiana da sexualidade, antes se serve dela para perceber como se vão constituir duas classes sexuais e suas diferenças. Para ela, a teoria é verdadeira desde que interpretada como uma explicação sociológica e não essencialista e uma vez filtrada pela interpretação feminista; utiliza-a assim para conseguir aquilo que muitas feministas ambicionavam: encontrar as raízes da opressão das mulheres no sistema patriarcal.

Vai procurar provar que de facto nas circunstâncias em que as crianças são criadas no seio da família biológica nuclear, o sistema só pode ser reforçado e replicado; para o evitar é preciso mudar essas circunstâncias, assumir uma atitude radical, anulando as causas porque só anulando as causas se conseguem evitar os efeitos. Considera que o que está na base da opressão das mulheres é a família nuclear na qual decorre o processo de construção das estruturas da psique infantil, construção diferente consoante se trate dos meninos ou das meninas - crianças do sexo masculino ou do sexo feminino. De Freud, retém a explicação que este dá do desenvolvimento infantil e aproveita para mostrar por que é que as mulheres são “femininas” e os homens “masculinos”, isto é, mostra como se constrói o género masculino e o género feminino.

Na família nuclear a figura de poder é a do pai e nela processa-se a separação entre emoção e sexualidade porque a criança aprende que certas intimidades com a mãe são permitidas enquanto outras são reprimidas, sob o estigma de sexuais. Desse modo, o sexo enquanto experiência emocional de um certo tipo é reprimido com o poder do pai que interdita a mãe ao filho.

Nesse quadro teórico, o fulcro da sua análise vai ser o construto conceptual que Freud designou de Complexo de Édipo. Quando na família biológica as crianças crescem e se desenvolvem, é central a ansiedade que sentem em relação à mãe, temendo perder o amor desse ser tão próximo do qual dependem directamente. Estabelece-se assim uma relação complexa entre a criança e a mãe. Mas essa relação vai ser diferente, consoante se trate dos filhos ou das filhas e vai acabar por se tornar responsável pela desigualdade de condição e de estatuto entre homens e mulheres, interiorizada desde a mais tenra infância.

Nesta fase do desenvolvimento psíquico da criança, o menino deseja a mãe, objecto do seu amor, mas dada a existência do pai, que pressente como um rival, vê esse amor rejeitado; é assim obrigado, a fim de resolver esta situação complexa – amor à mãe e ódio ao pai – a recorrer a um processo de sublimação do desejo e a procurar reconhecimento diferido através das suas realizações futuras. De qualquer modo, embora a repressão do desejo sexual ocorra, o menino posteriormente vai amar uma mulher, isto é, o desejo vai acabar por ser satisfeito numa pessoa do sexo feminino. Quer dizer, no longo prazo esta expressão da sua sexualidade não será reprimida.

Também para a menina, a mãe surge como o primeiro objeto de desejo; mas nunca terá oportunidade de transferir esse desejo para outra mulher, a heterosexualidade ser-lhe-á imposta como tipo de sexualidade normal e normativa. A menina não sublima o desejo, mas como quer ser reconhecida, vai procurar a aprovação direta, em primeiro lugar da mãe e depois das outras pessoas, como se bastasse existir e nada mais tivesse de fazer; não procede ao tipo de sublimação que ocorrerá com o rapaz, desse modo, na menina, a rejeição da mãe tem outros contornos e reveste-se de outras consequências:

“Na menina, a rejeição da mãe, ocorrendo por razões diferentes, produz insegurança acerca da sua identidade em geral, criando-lhe pela vida fora constante necessidade de aprovação (mais tarde, o amante substitui o pai como garante da necessária identidade de substituição – ela vê tudo através dos seus olhos).”[1]

Temos assim que o facto da família apresentar uma estrutura patriarcal - na qual a autoridade dominante é a do pai e a mãe é praticamente o único elo de ligação dos filhos à figura paternal - tem como consequência que a primeira expressão do desejo sexual seja dirigida à mãe tanto nos meninos como nas meninas. Mas, dada a necessidade de o reprimir, vai ser imposta a heterossexualidade como forma correta de comportamento sexual. Uma heterossexualidade opressiva vai encontrar-se assim na fundação de uma ordem social, ela também opressiva. A heterossexualidade surge como uma identidade que tem a sua raiz nas relações desiguais entre homens e mulheres que, com origem em diferenças biológicas, são consolidadas na família patriarcal.

É o próprio facto de a família biológica revestir uma forma patriarcal que leva a criança, rapaz ou rapariga, a desejar (sexualmente) a mãe porque esta é o objeto de amor que lhe está mais próximo. O filho é obrigado a reprimir violentamente esse desejo, por receio da castração, explica Freud; mas sublima-o, obtendo reconhecimento através das suas realizações e mais tarde satisfá-lo de forma vicariante, amando outra mulher.

Na menina, a questão não se coloca com a mesma premência – não teme a castração porque não possui o respetivo apêndice mas também – é o que Freud nos diz - nunca desenvolverá a capacidade de sublimar:

“As filhas resolvem este complexo de Édipo renunciando às suas mães, partilhando com elas esta “falta”. [Mas] porque procuram superar a deficiência dando nascimento a um bebe com pénis, as mulheres permanecem sempre psicologicamente centradas na esfera do Eros. Isto é, segundo Freud, as mulheres nunca desenvolvem os poderes de sublimação que os homens adquirem e por isso ficam não apenas fora da civilização mas contra a civilização.” [2]



[1] S. Firestone, The Dialectic of Sex

[2] Feminism and its Discontents, pp 17/18