Em L’Etre et le Neant ( 1943), Sartre apresenta uma teoria sobre o sadismo muito interessante e com forte poder explicativo. Esta teoria mostra a potencial utilidade de conceitos sartrianos para a análise feminista, a que todavia o próprio Sartre, cumpre dizê-lo, não prestou grande atenção. No caso vertente a explicação que dá sobre o sadismo fornece à análise feminista enquadramento conceptual para perceber mecanismos de controlo das mulheres relacionados com o ideal de beleza feminina e sua função.
Para compreendermos a explicação que Sartre nos dá do sadismo, temos de conhecer alguns aspetos da sua concepção de natureza humana. Segundo Sartre, ser humano é ser consciente – ‘ser para si’. Ser consciente não se baseia numa essência positiva, mas na negação: ser consciente de que não se é um objeto. O ser para si, não sendo um objeto, não está sujeito à causalidade e consequentemente é livre. Mas, a angústia habita-o porque, sendo pura espontaneidade, não se deixa definir e é responsável pelas suas próprias escolhas, por aquilo que decidir; a sua situação é instável e encontra-se em risco constante porque enquanto ser para si também partilha do ser objeto na medida em que é, e não pode deixar de ser, ‘ser para os outros’ e para os outros o ser para si pode ser percebido como um objeto. Neste contexto, podemos entender o título de uma peça de teatro de Sartre: O Inferno são os Outros.
‘Ser para os outros’ pode ter aspetos positivos, dependendo do modo como os outros me vejam - podem ver-me positivamente - mas nem por isso deixa de ser menos arriscado e incerto porque os outros podem mudar o modo como me vêem. Por isso a ambiguidade faz parte da condição humana: ‘ser para si’ é também ‘ser para os outros’ e assim a subjetividade pode ser posta em perigo.
Segundo Sartre, na relação amorosa, que está, enquanto relação interpessoal, sujeita à mesma tensão e à mesma ambiguidade, o sadismo pode ser uma estratégia para o eu (um eu) escapar à ambiguidade da sua condição. Aí, o sádico quer assegurar a sua liberdade - quer afirmar-se como sujeito livre - às custas da liberdade daquele/a que vai manipular, da sua vítima; o sádico quer eliminar do seu ser a dimensão de ser para os outros, quer eliminar a ambiguidade da sua condição que comporta a incerteza e o risco de ser objetificado. Para o conseguir vai usar a dor e a violência (consentidas ou não):
“ O esforço do sádico é aprisionar o Outro na sua carne por meio da violência e da dor, apropriando-se do seu corpo de modo a tratá-lo como carne que se revela enquanto carne. Mas esta apropriação vai mais além do corpo que é apropriado porque o seu propósito é possuir o corpo na condição de a liberdade do outro ser aprisionada com ele.” BN 403
A dor desempenha um papel fulcral na estratégia do sádico porque «na dor a faticidade invade a consciência», na dor a única coisa que a consciência apreende é o próprio corpo e assim, quando o sádico se apropria do corpo, apropria-se também daquela consciência. Consciência e corpo, segundo Sartre, estão de tal modo interconectados que nem se pode falar de união, por isso, se a única coisa que a consciência apreender for o corpo, o outro experiencia-se a si mesmo como um objeto e não tem a mínima hipótese de, por sua vez, objetificar o sádico; se o outro se reduzir ele próprio ao corpo, dominar o corpo é dominá-lo.
Ora o que é que a cultura da beleza e do narcisismo feminino tem a ver com a estratégia do sádico? Reparemos que esta cultura conduz as mulheres a preocuparem-se com os seus corpos, a fascinarem-se com os seus corpos, de tal modo que acabam por se reduzir a eles e têm prazer em serem tratadas como objetos, incapazes elas próprias de objetificarem o macho.
O ideal de beleza feminina, expresso sobretudo através dos media, na publicidade, nos shows e em muitos outros programas, apresenta como modelo mulheres jovens e belas. A partir daí, Juventude e beleza são o normativo para as mulheres e aquelas que não se preocuparem em seguir o normativo que se cuidem e sofram as consequências – esta é a mensagem com que constantemente são bombardeadas. Neste contexto, as mulheres são valorizadas com base na sua aparência física, os juízos de valor não são sobre as mulheres, são sobre o corpo das mulheres, não são admiradas enquanto agentes, são admiradas enquanto objetos, são admiradas como carne.
Com este mecanismo social de controlo que é o culto da beleza feminina, para as mulheres, o corpo passa a ser o objeto que de tal maneira absorve a sua consciência que se identificam com ele. E isto acontece não só com as que se conformam ao ideal de beleza feminina como com as que não se conformam que tudo farão para dele se aproximarem; o investimento da sua consciência é sobre os seus corpos, não sobre o mundo enquanto oportunidade de sobre ele agirem e de transcenderem a sua condição.
Se lembrarmos que objetificar o outro é uma estratégia de exploração e de opressão podemos perceber toda a negatividade que esta cultura da beleza feminina e do investimento narcísico comporta.