quarta-feira, 23 de junho de 2010

Antifeminismo evangélico

É curioso que muitas mulheres, nos nossos dias, dizem não se identificar com o feminismo e recusam mesmo o epíteto mas, de facto, na sua prática quotidiana agem como feministas; tal como o Monsieur Jourdain da peça de Moliere fazia prosa sem o saber, também elas, mesmo que o não reconheçam, são feministas. E, basicamente, podemos dizer que isso acontece porque elas nem se consideram inferiores aos homens nem tão pouco menos merecedoras de direitos.
Assim, mesmo se muitas coisas não foram conseguidas e se o sistema patriarcal ainda se mantém em muitos aspectos, pelo menos o feminismo conseguiu que as mulheres, na grande maioria, interiorizassem sentimentos positivos e adquirissem a consciência de que lhes são devidos os mesmos direitos, liberdades e oportunidades que os homens gozam; regressar ao passado e ao recato do lar doméstico, sem participação na vida colectiva e no mundo do trabalho, parece hoje completamente fora de questão; ora, se lembrarmos que ainda na década de cinquenta do século XX esse era o modelo e o ideal proposto para as mulheres, percebemos bem como os tempos mudaram e como o feminismo contribuiu de forma decisiva para essa mudança.

Há, todavia, um outro aspecto, esse sim mais preocupante, o das mulheres que rejeitam a própria emancipação e que costumamos designar de antifeministas. Mas aqui temos dois grupos e dois estilos, o daquelas que, embora preguem os valores da domesticidade, são tudo menos domésticas e fazem carreiras profissionais, normalmente bem sucedidas, dizendo mal das feministas, e as que sofreram uma tal lavagem ao cérebro que não são capazes de se emanciparem e continuam a viver nas gaiolas douradas que o sistema lhes faculta. Têm medo da mudança e acham sempre preferível o statu quo.
Este segundo grupo, bem mais numeroso, é constituído por mulheres que são enquadradas por uma religião e por um entendimento conservador, literal e fundamentalista dessa religião; pensam que o papel que Deus lhes destinou foi o de serem um apêndice dos seus próprios maridos e que a sua função na vida é gerar e cuidar das crianças que Deus «lhes der». O paradoxo é que estas mulheres vão usar o voto e até as liberdades concretas que as feministas conquistaram para lutar contra instrumentos libertadores, sejam por exemplo o direito à contracepção, ao aborto, ao divórcio, bem como o acesso ao mundo do trabalho socialmente produtivo, e ainda por cima combatem as feministas com todo o ódio que os seus corações e mentes limitadas são capazes de abrigar, não percebendo sequer que a liberdade que gozam de se pronunciarem e de serem ouvidas nos media resultou das reivindicações feministas.
Estas mulheres continuam reféns do modelo que o século XIX lhes propôs e designam-se a si mesmas de «verdadeiras mulheres», isto é, mulheres obedientes aos desígnios de Deus, que é uma outra maneira de dizer, aos seus maridos, eles próprios intérpretes e intermediários da vontade divina. Em 2008, nos Estados Unidos, ocorreu um mega evento, The True Women Conference onde cerca de três mil «verdadeiras mulheres», apostadas em defender a sociedade patriarcal, afirmaram a necessidade de se cultivarem «virtudes tais como pureza, modéstia, submissão, mansidão e amor», uma espécie de retorno a uma moral entendida em termos sexuais e servis, na qual a virtude feminina se restringe à obediência e ao correcto comportamento sexual, mas que promove o fanatismo, a intolerância e o ódio contra quem se lhe opõe, ignorando completamente que a bondade e o rigor ético não passam decididamente por aí. Podemos dizer que estas são mulheres misóginas porque se atribuem a si mesmas pouco valor e se desprezam, pois só um ser que se despreza e que tem uma auto-imagem negativa abdica da liberdade, da autonomia e da capacidade para controlar a sua própria vida.

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