quarta-feira, 16 de junho de 2010

“Feministas” neoconservadoras ou aproveitadoras?!


É difícil aceitar que mulheres que são contra o aborto em toda e qualquer circunstância, mesmo, por exemplo, em caso de violação, tenham alguma coisa a ver com o feminismo porque este implica defender que as mulheres, na medida do possível, possam controlar o seu destino e isso, obviamente, passa pelo controlo da sua capacidade reprodutiva.
Claro que as feministas não advogam o aborto como recurso contraceptivo - defendem sim que se disponibilize educação sexual e uso de anticoncepcionais -, mas encaram-no como legítimo quando houver qualquer falha, ou quando razões terapêuticas ou situação de violação o justificarem. Criminalizar o aborto será, na opinião das feministas, retirar autonomia às mulheres: sob a capa do valor sagrado da vida do feto; hipocritamente, o que se pretende é continuar a controlar as mulheres. Claro que não é este o entendimento que muitas mulheres têm do assunto, e isso é lamentável, mas até é compreensível, o que já não é compreensível nem desculpável é que se sirvam da capa do feminismo para defenderem a sua posição contra o aborto. É o que acontece com a organização Susan B. Anthony List.

A Susan B. Anthony List, fundada em 1992 nos Estados Unidos para apoiar o movimento pró-vida, tem actualmente como objectivo colocar mulheres que são contra a legalização do aborto em lugares de decisão política, dedicando-se à angariação de fundos para apoiar essas candidatas. Curiosamente, esta e outras organizações de direita não «desbaratam» dinheiros em apoios às camadas sociais mais desfavorecidas, mas canalizam-nos para conseguirem chegar a lugares onde podem influenciar as decisões e até contrariar medidas, essas sim de protecção social.
A escolha desta designação - Susan B. Anthony List - representa uma manobra de evidente má-fé e de desonestidade intelectual pois procura cooptar o feminismo para a causa e para tal serve-se do nome de uma das mais proeminentes líderes feministas do século XIX, companheira de Elizabeth Cady Stanton, embora mais comedida e moderada do que esta.

Susan B. Anthony - segundo Lynn Sherr, sua biógrafa, e Ann Gordon, editora da obra de Anthony e historiadora feminista - nunca tomou posição pública contra o aborto, nem pareceu interessar-se pelo assunto, e vivia numa sociedade (e numa família) que aceitava o aborto quando se tratava de uma gravidez indesejada; apenas se lhe conhece uma breve referência ao problema, quando a cunhada ficou presa a uma cama por motivo de um aborto mal realizado, a frase é uma – única - e é ambígua. «Depois de uma visita com o irmão, Anthony anota no seu diário que a cunhada tinha abortado, as coisas não tinham corrido bem e ficara entrevada. Anthony conclui, «ela lamentará o dia em que contrariou a natureza” Claramente Anthony não aplaude a acção da cunhada, mas a referência é ambígua. É o acto abortivo que ela lamenta ou as suas consequências, com o risco que a própria vida da pessoa corre? »*
Esta escassa e ambígua referência não impediu a mediática Sara Palin que, desde a corrida à vice-presidência dos Estados Unidos em 2008, não pára de nos surpreender, de discursar numa reunião da Susan B. Anthony List usando e abusando da palavra feminismo, referindo-se a um feminismo conservador e a feministas conservadoras que estariam a repor o feminismo na sua «pureza original»
A ideia que tudo isto dá, de facto, é que ela e outras que tais querem cavalgar a onda do feminismo, imprimindo-lhe outra direcção; o que, segundo Amanda Marcotte, não constitui novidade nenhuma pois Palin «é a última encarnação de uma longa e nobre linhagem de feministas antifeministas: mulheres que se auto-intitulam feministas, mas que colocam objeção à existência do movimento feminista e se organizam para se lhe oporem.»
De resto, se Palin parasse para pensar - o que me parece pouco provável - teria de reconhecer que só foi escolhida pelos republicanos para candidata à vice-presidência, como uma tentativa de manobra para derrotar Hillary Clinton; de outra maneira, nem o partido se teria lembrado dela nem ela teria o protagonismo que veio a conseguir. Teria de reconhecer que a direita conservadora só dá voz às mulheres quando se trata de derrotar o feminismo, porque percebe que é sempre mais credível colocar mulheres a dizer mal das feministas do que homens; estes têm um óbvio interesse na matéria que nas mulheres está camuflado. Teria de reconhecer o cinismo do partido republicano que escolheu uma mulher (ela própria) que se está nas tintas para a luta pelos direitos das mulheres, que pretende ilegalizar o aborto e a contracepção de emergência, que propõe que se retire financiamento ao programa estatal de luta contra a violência doméstica e que é contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Teria de reconhecer que o partido não escolheu outra - de entre as várias hipóteses que se lhe ofereciam - porque temia que o tiro lhe saísse pela culatra, coisa que com ela de certeza não iria acontecer.

Estas manobras e contra-manobras, bem como a cooptação do feminismo para a causa antifeminista, são muito interessantes mas, apesar de tudo, embora preocupantes, revelam que o feminismo, na aparência adormecido, continua a assustar muita gente instalada que tem medo da mudança como o diabo da cruz.

*Sarah Palin is no Susan B. Anthony, By Ann Gordon and Lynn Sherr

1 comentário:

  1. Perfeito o texto.
    Fico cá a imaginar: seria esse movimento "feminista" antifeminista também um dos tentáculos reflexos do backlash?
    Abraço!

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