sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Mulheres são escravas naturais?!

Aristóteles disse: «(a escravatura) é a condição de todos aqueles cuja função é mero serviço físico e que são incapazes de outra coisa melhor; esses são escravos naturais.»

No século XIX, havia um entendimento bastante amplo de que a função da mulher se reduzia à preservação da espécie e à criação dos filhos e cuidados com o lar; era esse entendimento que justificava que lhe fosse completamente vedado o acesso à participação na vida política, esta, dizia-se, não era a sua esfera - nem Deus nem a natureza a tinham capacitado para essas funções.
Não é necessária grande reflexão para se perceber que deste modo se transformavam as mulheres em autênticas servas domésticas, escravas naturais, como diria Aristóteles. Pessoas apenas capazes de serviço físico, serviço físico para preservar a espécie e serviço físico para prestar os concomitantes cuidados. Participar na vida pública, contribuir para a tomada de decisões que interessavam à sociedade, desenvolver-se enquanto ser livre e autónomo, isso estava completamente fora de cogitação
Em troca do serviço prestado, as mulheres recebiam comida, vestuário, abrigo e protecção, tal como os escravos. É certo que umas viviam em gaiolas douradas, outras em casebres, mas o estatuto não se alterava significativamente. Num caso ou no outro, não podiam abandonar os seus senhores – não podiam abandonar o domicílio conjugal nem requerer divórcio, esse direito era restringido aos maridos; os filhos que geravam eram propriedade dos maridos; não tinham o direito de propriedade nem mesmo sobre os bens que traziam para o casamento e se trabalhassem fora de casa, o salário pertencia ao marido que o podia administrar a seu bel-prazer. E isto ocorria não faz assim tanto tempo!
Hoje, em muitos países, as coisas são diferentes, mas mesmo assim ainda há mulheres que abdicam da sua participação na vida social e política para se colocarem na dependência dos maridos, esquecendo que afinal estão a seguir um padrão antiquíssimo que implica um enorme risco: o risco de sacrificarem a sua liberdade e de comprometerem a sua autonomia.
Claro que a escravatura das mulheres, pelo menos em tempos mais recentes, era atenuada por um tratamento mais humano do que aquele que normalmente era dispensado aos escravos tradicionais, mas isso não modifica substancialmente a situação e o facto desta não ser reconhecida como escravatura também não a altera, porque, realmente, que outro nome podemos dar a pessoas que não gozavam nem de direitos civis nem de direitos políticos e às quais era exigida subserviência e submissão?

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Sexismo, racismo e democracia – convivência improvável? Ou nem tanto assim!

Vem esta questão a propósito de Belford Bax (1854-1926), jornalista e socialista britânico, defensor das oprimidas classes trabalhadoras, paladino da democracia e, simultaneamente, antagonista enérgico do sufrágio feminino e da mistura racial.

Para compatibilizar o seu «amor» pela democracia com a rejeição do reconhecimento de direitos políticos às mulheres, Bax fundamentava-se em causas orgânicas, isto é, biológicas, não em causas sociais. Para ilustrar essas causas dava como exemplo, as crianças, que não têm acesso ao exercício de certos direitos precisamente por causas orgânicas, no caso, falta de maturidade biológica, mas também referia que, se na sociedade houvesse pessoas de uma raça considerada inferior, deveria ser-lhes vedado o mesmo direito com base nas mesmas causas e isso não interferia com a natureza democrática do regime. E, acrescenta, «a razão é óbvia – as raças inferiores estão em relação às superiores no mesmo nível que estão as crianças em relação aos adultos». Nesse sentido, para acautelar os interesses da sociedade, Bax preconizava uma espécie de regime de apartheid: «a verdadeira solução é que a raça organicamente inferior deve ser entregue a si mesma para resolver o seu próprio destino social»

Bax considera que excluir elementos organicamente inferiores ou organicamente diferentes da participação na vida política não elimina a natureza democrática do regime político pois que entidades tão diferentes como brancos e negros ou mulheres e homens não permitem que se fale em igualdade. Mesmo assim, em relação aos negros norte-americanos ainda defende uma ideia algo bizarra: nos estados do Norte seriam excluídos da participação, mas nos estados do Sul, onde constituíam a maioria, seriam os brancos os excluídos. E com esta ideia «tão liberal» e «revolucionária» pretende demonstrar quão democrático é e como aprecia a democracia. Já em relação as mulheres, sendo as condições diferentes, não considera qualquer alternativa, como veremos a seguir.

Bax começa por referir que lhe parece correcto, a fim de garantir o bem geral da sociedade, que sejam colocadas restrições às camadas sociais organicamente inferiores: «Penso que é claro, portanto que temos justificação para impedir qualquer tipo de pessoas do direito de voto, se elas, como classe, indiciarem uma inferioridade, baseada numa diferença orgânica, que é provável que torne a sua cooperação na vida política ou administrativa num perigo ou numa desvantagem para a comunidade no seu todo.» Isto para concluir que no caso de se provar que as mulheres têm uma diferença orgânica que as inferioriza em relação aos homens, devem ser impedidas de votar. E a tarefa que vai empreender é a de aduzir argumentos para mostrar que de facto há razões para se supor que as mulheres são inferiores aos homens, pelo menos em aspectos importantes.

Começa por citar os trabalhos de Cesare Lombroso, um cientista da época, hoje completamente desacreditado, para mostrar as diferenças ao nível do tamanho do cérebro que apontariam no sentido de uma menor capacidade intelectual.

Num outro registo, aponta a inexistência de mulheres que se tenham salientado nos domínios das mais altas criações do espírito humano: filosofia, ciências, invenções, etc. e, embora responda às objecções das feministas que apontavam a opressão e falta de oportunidade das mulheres, ele refere domínios da literatura em que se poderiam ter salientado mas em que também nada realizaram de importante, esquecendo que nesses domínios muitas mulheres escritoras dos séculos anteriores tiveram de publicar os livros sob pseudónimos masculinos o que prova bem como era difícil dedicarem-se a um mester aparentemente tão inofensivo.

Uma outra prova da inferioridade das mulheres seria a sua tendência para a histeria, um estado de excitação mental e emocional que logicamente não lhes permitiria o discernimento necessário para lidar com as questões políticas. Esquece mais uma vez que as perturbações histéricas, detectadas muito mais em mulheres do que em homens, na época, eram meros sintomas precisamente da situação de repressão de desejos e de necessidades que as mulheres vivenciavam. Hoje, por exemplo, deixamos completamente de ouvir falar, a sério, em tal tipo de perturbações histéricas.

Bax, ainda argumenta que as mulheres não têm sentido de justiça - o que viciaria o seu carácter moral - que decorreria da sua incapacidade para atingirem princípios abstractos e gerais: «Elas preocupam-se não com princípios mas com pessoas; elas odeiam e amam, não causas, mas homens.»

Por último, um receio, porventura o fundamento mais forte do seu antagonismo em relação ao sufrágio feminino: sendo as mulheres o que são, ou pelo menos o que ele pensa que são e que julgou ter provado com a variedade e força dos argumentos apresentados, há um argumento final que deveria desencorajar a concessão do voto às mulheres: se as mulheres puderem votar e se se unirem elas poderão derrotar o voto masculino porque são a maioria da população e as consequências obviamente só podem ser calamitosas: conceder o voto às mulheres significaria a sujeição de todo o sexo masculino.

domingo, 17 de outubro de 2010

Dona de casa - profissão em vias de extinção?


Em vez de assestarem baterias contra os remanescentes das estruturas patriarcais que, apesar de todos os desenvolvimentos, ainda subsistem, as anti-feministas contemporâneas culpabilizam as feministas e o feminismo por terem incentivado as mulheres a prosseguirem carreiras profissionais que, dizem, se revelam desgastantes, e defendem que as mulheres se devem centrar nos seus papéis tradicionais.
Em vez de lutarem pela humanização do mercado e das condições de trabalho e pelo empenhamento dos homens na partilha equitativa das tarefas domésticas, em vez de exigirem apoio estatal a creches e a jardins de infância de qualidade, contestam todas as medidas propostas pelas feministas neste sentido. Hasteando o fantasma do colectivismo na educação das crianças, consideram negligentes as mães que têm crianças pequenas mas entendem prosseguir as suas carreiras.
Afirmam que, bem no fundo, o que as mulheres querem é criar os seus filhos e cuidar dos seus maridos e que isso as realiza, continuando assim a defender a tese de que a essência da mulher é ser mãe e esposa e que as feministas fizeram um mau serviço ao sexo feminino ao inculcarem nas mulheres a ideia de que tal projecto não preenche as suas vidas.
Claro que encontram receptividade por parte de muitas mulheres que têm profissões mal remuneradas e ainda por cima arcam com as tarefas domésticas naquilo que ficou consignado como dupla jornada de trabalho. Além disso, as anti-feministas contemporâneas cooptaram a linguagem do feminismo e acenam-lhes com os conceitos de liberdade e de escolha, tentando fazer passar a ideia de que uma mulher pode escolher entre a carreira profissional e a vida doméstica e a segunda escolha é tão ou mesmo mais digna e enriquecedora do que a primeira. Mas aqui está a escamotear-se um aspecto fundamental e é o de que, para além do prazer que podemos tirar do trabalho dito socialmente produtivo em termos de relações interpessoais e de abertura de outros horizontes, o trabalho remunerado dá à mulher capacidade de independência e de autonomia e não a prende irremediavelmente a uma situação que pode vir a querer alterar. Conheço algumas mulheres que optaram por ficar em casa, apesar de capacitadas com títulos universitários e que vieram a descobrir mais tarde, com os filhos criados e os maridos «esfriados» e à procura de companhias mais estimulantes, que afinal fizeram a aposta errada. Só que então se torna difícil e em alguns casos impossível retomar uma vida que abandonaram à partida.
Hoje, mesmo a vida familiar heterossexual alterou-se profundamente, os casais decidem ter normalmente um ou dois filhos, e a frequência do infantário começa cedo com benefícios para as crianças. Constata-se ainda que as escolinhas são normalmente muito atractivas para as crianças que aprendem e brincam com outras num ambiente muito mais estimulante do que aquele que encontram em casa. Por outro lado, as tarefas domésticas ocupam um número reduzido de horas não tendo qualquer comparação com o que se passava há algumas décadas atrás. Por tudo isto, as pretensões das anti-feministas revelam-se completamente deslocadas e só poderiam fazer algum sentido se o relógio da história andasse para trás como elas gostariam que acontecesse.

P.S. Quando falo em anti-feministas não se pense que estou a invocar uma entidade abstracta, elas andam por aí bem activas, a título de exemplo, conheçam Danielle Crittenden e Wendy Shalit que fizeram carreiras profissionais prósperas e lucrativas a aconselharem as mulheres a desistirem das carreiras.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Mulheres e capacidade política

Vem este texto a propósito do ataque empreendido, não só pelas pessoas comuns, mas também por cientistas, intelectuais e filósofos, contra a reivindicação do sufrágio para as mulheres. Um dos argumentos utilizados invocava a manifesta falta de capacidade das mulheres para os assuntos políticos. David Ritchie, na época, denuncia brilhantemente a hipocrisia do argumento e a falácia circular em que repousava:

“É hipócrita negar a capacidade política das mulheres simplesmente porque a sua incapacidade política foi diligentemente cultivada através dos séculos, mas este é sempre o tipo de argumento favorito dos campeões do privilégio: primeiro para impedir uma raça, classe ou sexo de adquirir uma capacidade e depois para justificar a recusa de direitos com base nessa ausência de capacidade – encerrar um pássaro numa gaiola apertada e depois argumentar que ele é mantido nela porque é incapaz de voar.”

David G. Ritchie, Darwinism and Politics, 1890.

sábado, 9 de outubro de 2010

Auguste Comte - intelectuais progressistas e misoginia

Augusto Comte (1798 - 1857), o fundador do Positivismo e da Sociologia, um dos mais prestigiados intelectuais do século XIX, também não mostrou grande apreço pelas mulheres e pela justeza das suas reivindicações, embora tenha sido mais ambivalente e ambíguo em relação ao assunto do que Proudhon, como se pode constatar pelas atitudes variáveis e contraditórias que assumiu ao longo davida.

Comte considerava essenciais as diferenças entre homens e mulheres, mas vacilou entre a valorização dessas diferenças e um outra entendimento que implicava inferiorização. Segundo Mary Pickering, essas mudanças de opinião “reflectem, por um lado, o seu próprio relacionamento com a esposa e outras mulheres … ; por outro, apontam para tensões no culto da domesticidade do século XIX. Tais inconsistências de pensamento, particularmente no que respeita à representação das mulheres, revelam um foco de contestação na cultura em geral.”*

Comte oscilou entre uma atitude de devoção e de enlevo em relação as mulheres, que revelou quando jovem adulto, influenciado por Olympes de Gouges autora da Déclaration des Droits de la Femme (1791) e por Condorcet, o único filósofo que aberta e declaradamente assumiu posição a favor dos direitos da mulher. Nessa época da sua vida, considerou as mulheres vítimas da opressão masculina e do abuso de poder do mais forte, reduzidas, quando pobres, à opção entre vender o próprio corpo ou trabalhar nas profissões mais mal pagas. Chegou mesmo a condenar o Código Napoleónico por legalizar o sistema patriarcal e negar direitos de cidadania às mulheres. Mais tarde, no fim da vida parece ter reassumido esta postura.

Em consonância com as ideias que perfilhava na juventude, casou, contra a vontade dos pais, com uma mulher inteligente e determinada, Caroline Massin, filha ilegítima de dois actores, mas em breve mostrou que na prática não conseguia aceitar as implicações da igualdade, defendidas em teoria, de modo que, para ultrapassar aquilo que hoje designamos de dissonância cognitiva, acabou modificando a teoria.
Numa carta a um amigo, exprime a opinião de que homens de mérito deviam casar com donas de casa, intelectualmente medíocres, mas com um carácter obediente, condições que considera indispensáveis para assegurarem a felicidade no matrimónio; estas advertências parecem revelar que o casamento com Caroline não corria bem e que Comte atribuía tal facto ao carácter forte e determinado da esposa, insubmissa e «controladora».

Comte ainda lamentou e criticou as mulheres independentes que revelavam, em sua opinião, moralidade duvidosa e escassos hábitos domésticos e até mesmo tendências para o ateísmo. Quer dizer o criador do positivismo e defensor da independência de pensamento achava que tais atitudes nas mulheres eram muito inconvenientes e em paralelo promoveu o ideal da mulher como um anjo, submissa, generosa e sempre pronta a sacrificar-se pela família e a suportar o seu «homem», na qual a inteligência e o conhecimento eram qualidades irrelevantes ou até mesmo nocivas.

Paralelamente ao anti-feminismo, Comte reagiu contra o liberalismo na convicção de que esta corrente política implicaria o individualismo e, por uma lógica interna, a própria emancipação das mulheres. Desse modo, enfatizava que a igualdade sexual e o individualismo acabariam por minar a família que considerava ser o fundamento da vida social.

Com estas posições nitidamente conservadoras e apostadas na manutenção do statu quo, Comte foi mais um intelectual de esquerda a defender arranjos sociais que implicavam que a mulher mantivesse o seu ancestral estatuto de apêndice e subsidiária do homem.

*Mary Pickering, Angels and Demons in the Moral Vision of Auguste Comte, in Journal of Women's History. Volume: 8. Issue: 2. 1996, p. 10

domingo, 3 de outubro de 2010

Proudhon - Intelectuais progressistas e misoginia

“A tradição de todas as gerações mortas sobrecarrega como um pesadelo o cérebro dos vivos” (Karl Marx)

Esta observação de Marx vale para intelectuais politicamente progressistas, mas socialmente conservadores, com horizontes tacanhos no que as mulheres diz respeito e aplica-se como uma luva a homens considerados na época tais como Pierre Joseph Proudhon (1809-1875).
Proudhon, o fundador do anarquismo francês, expôs com minúcia e sem qualquer rebuço ideias profundamente reaccionárias em relação as mulheres, mesmo se levarmos em conta as coordenadas da época.
As mulheres, dizia, eram fisicamente inferiores aos homens e sexualmente passivas. Os seus atributos físicos, ancas largas e seios volumosos, predestinavam-nas para a tarefa da procriação que seria definidora da sua identidade e função social. O cérebro menos volumoso demonstraria inferioridade intelectual; por isso, tudo apontava para a necessidade de protecção e, consequentemente, de obediência ao homem: “ O génio “é virilidade” de espírito acompanhada de poder de abstracção, generalização, criatividade e capacidade de formar conceitos; a criança, o eunuco e a mulher são carentes destes dotes em igual medida.”

Segundo Proudhon, o papel da mulher esgota-se na função reprodutiva, ela é o instrumento de que a natureza se serve para preservar a espécie; socialmente a sua responsabilidade é cuidar da saúde e do bem estar das crianças e essa é a razão de ser da sua existência, o homem tem de se sacrificar para a manter e fá-lo apenas para assegurar essa função que ela deve cumprir.

Para qualquer mulher apenas se apresentam duas opções: ou mãe ou prostituta: “Qualquer mulher que sonha com a emancipação perdeu por esse facto a saúde da sua alma, a lucidez do seu intelecto, a virgindade do seu coração.”
Assim Proudhon reconhece ao marido o direito de matar a esposa em determinadas circunstâncias que podiam incluir adultério, impudência, traição, alcoolismo ou devassidão, gastos perdulários, furto e persistente insubordinação.” Como se vê um leque de tal modo amplo que parece dar carta branca ao marido para dispor a seu bel prazer da vida da esposa.
Àqueles que defendiam os direitos das mulheres, Proudhon chamava “eunucos literários” e dizia que: “as consequências inevitáveis (da emancipação das mulheres) são o amor livre, a condenação do casamento e da feminilidade, inveja e ódio secreto aos homens e, para coroar o sistema, inextinguível lascívia: tal é invariavelmente a filosofia da emancipação da mulher.”

Estas observações foram proferidas por alguém que aprendemos a estimar a partir dos bancos da escola como um benfeitor da humanidade, só se esqueceram de nos dizer que nós, mulheres, não estávamos incluídas nessa humanidade!!